Por Eduardo Jardim[1]
GERALIDADES
A contribuição denominada PIS foi criada pela Lei Complementar nº 7, de 7 de setembro de 1970, com o escopo de integrar o empregado do setor privado ao desenvolvimento da empresa. Já a Cofins, por sua vez, foi instituída pela Lei Complementar nº 70, de 30 de dezembro de 1991, e ambas foram modificadas por legislação superveniente, bem como são exigíveis das pessoas jurídicas de direito privado e as que lhes são equiparadas.
O fato jurídico tributário consiste na obtenção de faturamento ou receita bruta, conforme quer a legislação aplicável à espécie e em obséquio à orientação jurisprudencial. A base de cálculo, a seu turno, é representada pela receita bruta ou faturamento, expressões, diga-se de passo, qualificadas como sinônimas pela legislação e pelo Pretório Excelso.
Como se vê, as expressões faturamento ou receita bruta afiguram-se equivalentes e, portanto, não comportam novos questionamentos. Por outro lado, é importante reconhecer que as contribuições sob comento abrigam significativa relevância no patamar arrecadatório, uma vez que se situa entre os tributos que produzem uma das mais expressivas receitas em prol da União Federal
Tanto assim é, que, somente a Receita da Cofins, isoladamente considerada, representa a terceira maior fonte de arrecadação da União e a quarta no plano nacional, consoante estampado no site do Centro de Estudos Tributários e Aduaneiros da Receita Federal e do Ministério da Economia.[2] Com efeito, o arrecadamento da Cofins perfez 221,6 bilhões de reais em 2017 e 244,2 bilhões de reais no ano de 2018.
Outrossim, conquanto as aludidas contribuições rendam margem a inúmeros questionamentos, quer-se esclarecer que o presente ensaio tem por desígnio examinar outros aspectos da PIS/Cofins, no caso o binômio fato jurídico tributário e a respectiva base de cálculo e, posteriormente, a sua cobrança cumulativa que ainda remanesce.
Atualmente compreende dois modelos de apuração, vale dizer, o cumulativo e o não-cumulativo. O primeiro importa no percentual de 0,65% de PIS e 3,0% de Cofins, totalizando 3,65%. Já o segundo é gravado com alíquotas de 1,65% referente ao PIS e 7,60% em relação à Cofins, perfazendo 9,25% sobre o faturamento.
FATURAMENTO
Deveras, a conjugação da equação fato jurídico tributário e base de cálculo da Cofins revela tratar-se de uma fórmula de tributação do faturamento, o que contraria frontalmente os pressupostos lógicos e ontológicos de qualquer espécie tributária, como será sustentado em seguida.
A propósito é necessário sublinhar que a criação de qualquer tributo pressupõe a presença de um fato dotado de conteúdo econômico revelador de capacidade contributiva. Verdade seja, o faturamento ora questionado, embora exprima matizes econômicos, não tem o condão de demonstrar a presença de capacidade contributiva.
A bem ver, merece lembrada a cáustica advertência de Dino Jarach ao dizer que seria vedado tributar alguém por ter nariz aquilino, não só pela ausência de cores econômicas, como também pela evidente ausência de capacidade contributiva.
Deveras, qualquer que seja o nomen juris empregado pela legislação para prover os cofres do Fisco, seja faturamento ou receita bruta ou equivalentes, a verdade é que mesmo com prejuízo acumulado ou em recuperação judicial ou caminhando para a insolvência e consequencial falência, ainda assim a empresa que estiver em atividade haverá de obter algum faturamento.
A hipótese apontada exprime que o conceito de faturamento, por si só, não tem o condão de manifestar a completude da capacidade contributiva, daí a ausência de um dos antessupostos impostergáveis para legitimar a instituição e exigibilidade de quaisquer tributos, quer entre nós, quer alhures, pois trata-se de uma categoria jurídica fundamental e universal da Teoria Geral do Direito.
Por todas as veras, em estreita síntese, é de mister concluir que a PIS e a Cofins ora analisadas ou qualquer modalidade de tributação do faturamento são maculadas de nulidade pleno jure, tudo em virtude de falecerem de predicados essenciais à moldura do conceito jurídico de tributo.
Ressalta à evidência que o caráter social da PIS, bem assim os matizes da intensa fiscalidade inerente à COFINS como uma das mais significativas fontes de receitas da União, não autorizam a sua exigibilidade em face de não preencherem o perfil tipológico do conceito universal e legal de tributo, a exemplo do caso vertente.
CUMULATIVIDADE
A cumulatividade exprime a contraparte da tributação não-cumulativa, a qual, dentre outras hipóteses, se encontra consagrada e expressamente positivada na Carta Magna ao versar sobre o IPI e o ICMS.
No tocante ao IPI e ao ICMS, por exemplo, a não cumulatividade vem contemplada no Texto Excelso por meio dos artigos 153, IV, II e 155, inciso II conjugado com o § 2º, inciso I, a saber:
Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre:
IV - produtos industrializados;
II - será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores;
[...]
Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993)
II - operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993)
- 2º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993)
I - será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal;[3]
Consoante dispõem os preceitos constitucionais ora citados, o princípio da não cumulatividade determina que o valor do tributo devido numa dada operação seja descontado com a importância paga na operação anterior ou anteriores.
Ademais, não se trata de uma mera autorização, uma vez que o direito à referida fórmula compensatória não pode ser restringido nem pelo Legislativo e muito menos pelo Executivo, conforme a arguta lição de Geraldo Ataliba.[4]
Por conseguinte, ao contrário da cumulatividade que preside a legislação do IPI e do ICMS, dentre outros gravames, a tributação cumulativa traduz um meio de apuração de tributos plurifásicos em que ocorre a incidência total em cada operação, a exemplo daquela realizada pela indústria ao atacadista, já a segunda envolvendo o atacado em relação ao varejista e, finalmente, a derradeira compreendendo o varejo e o consumidor, isso se não houver uma fase intermediária adicional na fase de produção e circulação.
Obviamente, a referida fórmula ocasiona uma superposição de incidências sobrepostas, culminando em uma somatória de tributos em cada etapa das operações a contar da primeira até a final. Tal fato repercute no preço final do produto ou mercadoria ou serviço, comprometendo a atividade econômica, podendo gerar desempregos e potencializando efeitos inflacionários, enfim, afigura-se algo indesejável e detrimentoso para a vida social.
Pois bem, ao ensejo de sua criação, a contribuição de seguridade social – Cofins revestia natureza integralmente cumulativa, nos termos da Lei Complementar n. 70, de 30 de dezembro de 1991, já mencionada, aliás, no introito deste ensaio.
O referido diploma normativo, outrossim, estabeleceu igual regime no tocante à PIS, o qual, conforme prefalado, foi instituído pela Lei Complementar n. 7/70. Após muitas discussões e pleitos, a sua cumulatividade foi mitigada, uma vez que a Lei n. 10.833, de 29 de dezembro de 2003, estabeleceu hipóteses de não cumulatividade.
Assim, em sua versão atual a PIS e a Cofins ainda são cumulativas com relação a algumas hipóteses e não-cumulativas noutras, em consonância, aliás, com a legislação de regência.
A não cumulatividade, de seu turno, ganhou o patamar constitucional por intermédio da Emenda n. 18, de 1º de dezembro de 1965, a qual teve o condão de instalar um novo sistema tributário, cujo arcabouço e arquitetura remanescem até os dias de hoje.
Com efeito, desde o advento da referida Emenda à Carta de 1946, até a atualidade, a não cumulatividade encampa tão somente os tributos incidentes sobre a produção e a circulação, fato de obviedade cristalina, diga-se àvol d’oiseau.
A contrario sensu, os demais tributos sujeitos à incidência monofásica não poderiam ser cumulativos, razão pela qual não teria sentido qualificá-los com tal, a teor dos impostos sobre a propriedade ou do imposto sobre a renda e a maioria dos que integram o universo da tributação.
Deveras, tal hipótese configuraria um sin sentido, parafraseando a linguagem expressiva de Genaro Carrió, pois seria inimaginável a existência de uma regra constitucional estabelecendo que o IPVA ou o IPTU, por exemplo, seriam não-cumulativos.[5]
Realmente, seria um rematado dislate supor uma regra desse jaez, donde, a fortiori, torna-se forçoso reconhecer que somente os tributos sujeitos à cumulatividade é que poderiam ser discriminados como não-cumulativos por disposição legislativa do patamar constitucional ou até mesmo legislativo.
Portanto, uma vez firmada a premissa segundo a qual somente os tributos sobre a produção e a circulação é que poderiam ser cumulativos, cabe ao legislador, caso queira, fazê-los não-cumulativos.
Outrossim, não demasia sublinhar que a vedação à cumulatividade se espraia em todos os quadrantes do direito brasileiro, tanto que, afora os impostos susceptíveis de cobrança cumulativa, como é o caso do IPI e do ICMS, o constituinte estabeleceu semelhante regime jurídico em relação aos impostos residuais e às contribuições de seguridade social também residuais.
Nesse sentido, dispõe o mandamento contido no art. 154, I, do Texto Supremo, a saber:
Art. 154. A União poderá instituir:
I - mediante lei complementar, impostos não previstos no artigo anterior, desde que sejam não-cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados nesta Constituição.[6]
Como se vê, ante a possibilidade de vir a ser criado um novo imposto ou uma nova contribuição de seguridade social, a Carta Magna, o legislador haverá de fazê-lo sob o regime da não cumulatividade, o que revela a dimensão de plenitude do aludido postulado constitucional.
Em suma, dado que os tributos potencialmente cumulativos são categorizados como não-cumulativos no Texto Excelso, sem qualquer exceção, força é dessumir que o tributo cumulativo é vedado no contexto lógico do sistema constitucional tributário.
Diante dos escólios trazidos à colação, temos que a cobrança cumulativa da PIS e Cofins destoa do contexto e das entrevozes do figurino constitucional, conclusão, a bem ver, apoiada na memorável lição de François Geny que, ao referir-se ao Código Civil Francês, pugnou pela interpretação do Código além da letra, mas de acordo com o Código.[7]
[1]Mestre e Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor Titular de Direito Tributário na Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie e Professor nos Cursos de Especialização do IBET, bem como no Damásio Educacional, sob a Coordenação da Professora e Ministra do STJ Regina Helena Costa. Palestrante e Conferencista com participação em Congressos Nacionais e Internacionais. Membro da Academia Paulista de Letras Jurídicas, Cadeira n. 62. Membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário. Autor de inúmeros Estudos e Artigos Acadêmicos publicados em Revistas Especializadas, bem assim Capítulos de Livros e, sobretudo, Livros de Direito publicados pelas Editoras Saraiva, Noeses e Mackenzie.
[2] Disponível em: https: www.receita.economia.gov.br. 2020, p. 41. Acesso em: 27 abr. 2020.
[3]BRASIL. Constituição Federal de 05 de outubro de 1988. Diário Oficial da União - Seção 1 - 5/10/1988. (Publicação Original). Brasília/DF.
[4] ICM-Abatimento constitucional-Princípio da não cumulatividade. Revista de Direito Tributário n. 29-30, p. 110-125. São Paulo: RT, 1977.
[5]Sobre los limites del linguaje normativo. Buenos Aires: Editorial Astrea, 1973.
[6]BRASIL. Constituição Federal de 05 de outubro de 1988. Diário Oficial da União - Seção 1 - 5/10/1988. (Publicação Original). Brasília/DF.
[7] “Au-delàduCode civil, mais par leCode civil!” Méthode d’interprétación et sourcesendroitprivépositif, v.I, Paris: LibrairieGénérale de Droit& de Jurisprudence, p. XXV, 1919.