Renan Clemente Gutierrez
Muito se fala a respeito dos efeitos da Reforma Tributária sobre o consumo. Sobretudo, a respeito de sua legalidade frente ao Pacto Federativo. Mas, no sentir desse modesto autor, pouco se discute a respeito dos reais efeitos econômicos decorrentes das políticas implementadas pela novel legislação. Portanto, esse breve artigo traz breves reflexões de direito tributário e econômico.
Como comumente sabido, o Pacto Federativo objetiva o cumprimento dos preceitos constitucionais fundamentais da República. No art. 1º da Carta Constitucional, pode-se observar que a República Federativa do Brasil é “formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) – II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (...)”.
No art. 3º, constam os objetivos fundamentais da República, dentre os quais se destacam “II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”.
É importante realizar o seguinte recorte: os objetivos fundamentais da República exprimem seus próprios fundamentos. Afinal, garantir a (i) cidadania, (ii) a dignidade da pessoa humana e (iii) os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, desemboca na (i) garantia do desenvolvimento nacional, (ii) erradicação da pobreza e marginalização e (iii) na redução das desigualdades sociais e regionais.
A forma pela qual o constituinte distribuiu competências para a consecução desses objetivos, espelha o que se chama Pacto Federativo, que pode ser entendido na leitura do art. 18, da CF, que disciplina que “a organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição”. Portanto, trata-se de uma organização, político administrativa, que outorga autonomia aos entes federativos para a consecução dos objetivos já examinados.
O Pacto Federativo, inclusive, goza do status de cláusula pétrea, pois expressamente previsto no art. 60, §4º, I, CF.
Pois bem.
Diante dessa breve explicação, questiona-se: poderá a Reforma Tributária afetar o Pacto Federativo, nos termos apontados acima?
O primeiro ponto a se observar é o de que o Sistema Constitucional Tributário, expresso na Constituição Federal, compreende as acentuadas diferenças regionais. Políticas como tributação na origem, possibilidade de isenções e benefícios fiscais para o fomento de atividade econômica em áreas menos privilegiadas, e a multiplicidade de tributos para sustento desse Estado, demonstram o que se acaba de afirmar.
O segundo ponto a se observar é a estrutura jurídico-tributária que até agora se tem a respeito da reforma, preconizada pela Emenda Constitucional 132/2023 e regulamentada pela LCP 214/2025. Recentemente, o IBEDAFT promoveu debate sobre tal regulamentação1.
A instituição do IVA-Dual (CBS no plano federal, e IBS no plano estadual/municipal), a tributação no destino e as deliberadas concessões de reduções na alíquota padrão para alguns setores da economia (regimes específicos e diferenciados), representa uma política deveras inovadora, mas que merece toda a reflexão por parte da comunidade jurídica, sob a pena de se materializar uma estrutura que poderá causar distorções inimagináveis nas próximas décadas.
Analisa-se, portanto, se essa estrutura poderá afetar a ordem econômica.
Preconiza o art. 170, da Constituição, que
“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
(...)
IV – Livre concorrência;
(...)
VII – Redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII – Busca do pleno emprego;
(...)
IX – Tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.
Veja-se que os ditames da livre iniciativa, livreconcorrência, redução das desigualdades regionais e sociais, busca do pleno emprego e tratamento favorecido para empresas que necessitam desse tipo de concessão, espelham os valores fundamentais e objetivos fundamentais da República, como dito nas linhas iniciais desse breve artigo. Desse modo, qualquer medida tendente a prejudicar quaisquer desses valores, tem alto potencial de violar o Pacto Federativo e incorrer em inconstitucionalidade.
Isso porque, como predito, o Pacto Federativo nãorepresenta um mero enfeite na Constituição, mas, sim, objetiva efetividade da cidadania, a redução da marginalização, das desigualdades sociais e regionais, o que é garantido por meio da livre iniciativa que, por sua vez, depende da plenitude da livre concorrência. Em outras palavras, compreende esse autor que o Pacto objetiva o equilíbrio econômico, justamente para evitar distorções na federação.
Veja-se, nas linhas seguintes, alguns elementos da Reforma Tributária que podem afetar o equilíbrio econômico.
- A tributação no destino: é uma excelente medida para o fim da guerra fiscal. Contudo, a tributação do destino pode representar uma migração da atividade econômica para polos com grandes mercados consumidores. Há de se analisar, acuradamente, se essa migração não representará acentuação das desigualdades regionais, sobretudo nas regiões norte, nordeste e centro-oeste (regiões bastante refletidas pelo Pacto Federativo). Poderá essa política ferir o objetivo fundamental de redução das desigualdades, preconizada pelo art. 3º, III, e 170, VII, ambos da CF?
- A tributação por meio do IVA-Dual, que retira a competência dos Municípios para instituição do ISS, poderá afetar a receita desses entes? Sabe-se que há fundo de compensação para a garantia das receitas dos municípios, bem como que muitos municípios sequer instituíram o ISS. Mas, a chamada competência compartilhada para instituição do IBS, bem como a partilha da arrecadação pelo Comitê Gestor, poderá ferir a autonomia dos entes federativos, preconizada no art. 18, da CF2?
- Ainda a respeito do art. 18, da CF: O Comitê Gestor, que contará com a participação de 1 representante de cada um dos Estados e 1 representante dos municípios (por Estado), poderá garantir o Pacto Federativo? A falta de participação de todas as entidades não fere o Estado Democrático do Direito, que garante a autonomia dos Estados e municípios, preconizado no caput do art. 18 da CF?
- A concessão de tratamentos diferenciados e descontos consideráveis na alíquota padrão, sobretudo para a indústria e comércio (60%/40%), poderá afetar o setor de serviços, cujo desconto não ultrapassa 30%? Trata-se de setor que conta com diversos ramos que não empregam insumos em sua atividade (sobretudo os profissionais liberais), bem como negociam com pessoas físicas e empresas incluídas no Simples Nacional, reduzindo sobremaneira o creditamento. Sabe-se, outrossim que o setor de serviços é o setor que mais emprega no Brasil (60/65%3), bem como representa 70% do PIB nacional4. Essa política poderá afetar os ditames da valorização do trabalho, pleno emprego e livre iniciativa, preconizados nos artigos 1º, IV, e 170, caput, da CF?
São perguntas. São perguntas passíveis de reflexão por meio da academia e do parlamento, pois medidas contrárias à ordem constitucional vigente, conforme demonstrado nesse breve artigo (máculas aos artigos 1º, 3º, 18 e 170, da CF), podem acarretar diversos prejuízos à coletividade. A violação ao Pacto Federativo, pautada na violação aos fundamentos e ditames da ordem econômica, realmente ocorre com a EC 132/2023 e LCP 214/2025? O Comitê Gestor poderá garantir o Pacto?
São reflexões propostas.
1Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=_eDs2ryhBlY. Acesso em 04/05/2025.
2 Há muitas outras questões a respeito do Comitê Gestor, mas que não são objeto desse breve artigo.
3Disponível em: https://cofecon.org/setor-de-servicos-gera-de-60-dos-empregos-em-2023/#:~:text=No%20total%20de%20empregos%20gerados,%2C%2060%25%20dos%20empregos%20formais. Acesso em 04/05/2025.
4Disponível em: https://veja.abril.com.br/economia/setor-de-servicos-o-maior-do-pib-cresce-acima-do-esperado-em-abril/. Acesso em 04/05/2025.