Mário Frota

 

Moçamedense pelo nascimento, benguelense pelo coração

 

 

Havia um sem-número de figuras típicas em Benguela, como as houve sempre alhures.

Os traços distintivos é que padeceriam decerto de um tipicismo muito próprio.

O Abel, ‘cangalheiro’, perdoe-se-nos o epíteto por que todos se lhe referiam, era havido como protagonista de um bom par de episódios tocados como que pelo grotesco.

Como exímio zelador dos seus interesses, pairava pela cidade como os grifos o fazem em busca de espécies em estado de putrefacção.

Benguela bem poderia dispensar eventual corpo de guardas nocturnos que nas sistemáticas rondas do Abel a cidade bem poderia dispensar-lhe perene gratidão porque não havia viela que o Abel não esquadrinhasse, do Coringe à Peça, do Massangarala ao Porta-Aviões, à Marginal da Praia Morena.

Não nos recordamos se o Abel funcionava em “monopólio” ou se acaso haveria eventual concorrente a ombrear o negócio.

O facto é que o Abel, a haver uma ténue concorrência, primava pela eficiência e pelos métodos singulares adoptados.

Afadigava-se por ter o arquivo em dia. Registava decerto a ocorrência dos padecimentos de todos e cada um, no afã de oferecer de imediato os seus funestos serviços a quem deles carecesse. Ou, com maior propriedade, aos supérstites, que não consta que as vítimas, em vida, se preocupassem em celebrar eventuais contratos funerários.

Com as estratégias hodiernas nem sequer disso ainda há notícia. Conquanto se saiba que um dado casal de professores, a dar-se de barato o que se contava, houvesse providenciado “em vida” a compra e venda de duas urnas, bem a seu gosto, de molde a evitar contratempos aos sucessíveis. E tinham os belos exemplares em arrecadação que ‘vistoriavam’ amiúde… não fora desaparecerem às mãos de eventuais “amigos do alheiro” ou como singular partida de carnaval…

Nem sequer se sabe se teria “informadores” no Velho Hospital Central, em que a veneranda figura de um dos filhos da terra, o Urbano Frestas, preponderava, ali prás bandas da Rua 31 de Janeiro, à semelhança do que em geral ora ocorre em determinados estabelecimentos do “Puto” com o depósito de ‘cartões de visita’ junto aos corpos, com visibilidade tal para que a estratégia mercadológica de todo não escape aos interessados.

Estratégia que era comum a determinados advogados que destarte ofereciam os seus préstimos aos familiares se o óbito houvesse sido fruto de sinistro indemnizável…

Mas o Abel primava pela eficiência. Já que o decesso dos mais era, de forma assegurada, “dinheiro em caixa”…

O Abel nada deixava ao acaso. Programava meticulosamente as suas investidas, deambulava pelas artérias da urbe das Acácias Rubras em busca de sinais de um decesso anunciado. Só lhe escapavam os que, sem pré-aviso, debandavam, “iam desta para melhor”, mas de pronto, aos primeiros rumores, apresentava-se sem rebuço a oferecer os seus prestimosos serviços, não se sabe se com a tabela de preços devidamente aparelhada em função das características e das propriedades do féretro e das cerimónias fúnebres pretendidas.

O Abel aspiraria decerto a “disputar o mercado” nos áureos tempos em que a M’ombaka de outrora era, a justo título, apodada de “cemitério de brancos”, terra pantanosa prenhe de doenças tropicais a que poucos escapavam.

Daí talvez, em busca do melhor das etnias em coexistência, a fim de resistir vigorosamente ao “AedesAegypti”, Benguela se tivesse convertido na urbe mestiça de uma Angola surpreendente que se sobrepujou e superou as adversidades dos males com que a mãe natura bafejava os que a golpes de audácia lhe esventravam o ser…

Mas com o saneamento apurado, as “febres” como que domesticadas, haveria que fluir ao que os desígnios da Providência consentiam, com os que com conta, peso e medida se finavam, numa performance cada vez mais apurada dos meios de combate ao paludismo demolidor que não pedia sequer meças para fazer das “suas”...

Mas isso são contas de outro rosário, que nem sequer em juízo de prognose póstuma seria susceptível de comprazer Abel, o cangalheiro, homem com os pés bem assentes na terra que não fazia projecções à distância, antes se havia com a realidade próxima que o alimentava sobejamente.

A memória já se nos esvai e nem sabemos se, ao tempo, Abel aderira ao “morra agora, pague depois”, que se transformara em estratégia de sucesso, a fim de minorar os imediatos encargos das famílias de parcos proventos e de menor capacidade económica, o que nem sequer seria determinante para incentivar os mortais a despedirem-se mais cedo deste “Vale de Lágrimas”, com natural excepção dos que já registariam decerto fortes tendências suicidas.

Abel, ao contrário do seu confrade lubanguense, de seu nome Judas, era homem de boas contas, honrando os seus próprios compromissos que os investimentos na indústria a que se votara não são despiciendos.

[Judas, nas altaneiras Terras da Chela, era muito pouco contemplativo com os credores. Não lhes dispensava, pois, grandes‘créditos’. Certo dia, Judas foi contemplado com a taluda. Oportunidade de ouro para os credores que desde então esfregaram as mãos de contentes. Judas morava numa casa de linhas bem modernas ali para as Lajes, bairro a que se dera o nome de um empreendedor presidente da Câmara Municipal, o Major José Ramos Camisão, que fora comandante do Depósito Geral de Adidos, em Luanda, e mais tarde “trasladado” para a capital da Huíla para presidir ao Município. Homem de boa memória para os huilanos, já que expandira a cidade e lhe dera traços de modernidade, importa afirmá-lo. Pois Judas morava em zona nobre da cidade. E mal soou que havia sido bafejado pela lotaria, cedo se dispuseram os credores a engrossar as hostes dos que se postaram frente à casa de habitação para resgatar os seus malparados. Quando a coisa assumiu foros de escândalo, Judas, que se refugiara no interior da mansão, veio corajosamente à porta e lançou um repto à “multidão de credores”:

Mas então a quem é que saiu a lotaria, a mim ou a Vocês?”

Fim de capítulo…]

Abel era homem probo. Os seus métodos de agenciamento de clientes talvez pouco ortodoxos. Não esperava que os familiares do decesso lhe tocassem à campainha. Ia afanosamente de rua em rua, de travessa em travessa, de beco em beco, de viela em viela, à cata de possíveis ‘clientes’. Que o negócio se faz de oportunidades. E nada lhe poderia escapar para que com a diligência exigível cumprisse os tempos para as exigentes cerimónias fúnebres dependentes de férreos calendários impostos pelas autoridades da saúde.

Constava que um dos membros mais velhos da Família Figueiredo e Faro, que habitava cerca de uma dependência da Escola Industrial e Comercial de Benguela [o polo principal situar-se-ia no antigo complexo do Cabo Submarino, a caminho da Praia Morena], ali para as bandas do Corinje, estaria a padecer de males de saúde.

Abel rondava como o fazem os necrófagos [perdoem-nos a crueza do paralelo]. E não havia madrugada em que não deambulasse por aquelas paragens, algo expectante, sempre diligente, não fosse eventualmente escapar-lhe a oportunidade do negócio, quem sabe se para qualquer dos “concorrentes” da Catumbela ou do Lobito [20, 30 Kms. naquela extensão telúrica não era nada!]…

Abel porfiava. E, pelos vistos, na Cidade das Acácias Rubras, outras novidades se não vislumbravam. Os deuses, na sua tocante generosidade, haviam dado tréguas à cidade!

Abel não desmobilizava. As madrugadas eram propícias às surpresas. Daí que permanecesse mais desperto, mais vigilante, mais preocupado.

Numa ocasião, rondando o bairro [chamar-se-ia mesmo do Corinje? - eis algo que a esta distância nos escapa…], numa dada madrugada, ter-se-á dado conta de algo de anormal: as luzes, da energia distribuída pela eficientíssima CELBI, reduzem-se no interior da moradia. Pairava um ar funesto, a redução da intensidade luminosa nas dependências da residência ter-lhe-á evocado algo de irreversível, uma quase fundada suspeita de que a enferma se finara, que o seu termo existencial teria, finalmente, soado.

O diligente Abel, mal se apercebeu do fenómeno, sem paralelo nas noites e noites que por ali passara a rondar a casa [e não seria homem para agourar…] estaciona, sai da viatura e ousa, de forma respeitosa, bater de forma quase inaudível com os nós dos dedos na porta. Ao acercar-se um dos familiares presentes para o atender, Abel disparou em voz trémula: “Há novidade? Há novidade?”

Abel equivocara-se nos sinais, interpretara com excesso os traços daquela madrugada, fora longe demais nas suas excogitações.

A senhora superara a crise, ao que parece! Frustrou-se uma indeclinável oportunidade de negócio.

Abel continuaria decerto a patrulhar as ruas tranquilas de uma Cidade em que a sã convivência entre as suas gentes propiciava um clima de tranquilidade sem a necessidade de guardas nocturnos nem a intervenção dos Paula, dogentil Rodrigues [evocado nos escritos do Artur Pestana], que pontificava elegantemente no trânsito, e dos mais que, sob o comando do pai da Maria de Deus, que fora nossa colega, e do Telésforo Afonso, dignificaram as cores das autoridades policiais na vetusta Benguela de então, sob o concelebrado Cerveira Pereira.

Benguela continuaria a ter em Abel um atento, venerador e obrigado homem dos serviços fúnebres a cuidar diligentemente dos seus interesses e dos da saúde pública!

Que dar aos mortos sepultura é função ingente, é obra de misericórdia!

Benguela rejubilaria por tamanha diligência, por significativa eficácia, por tão expressiva eficiência!