Por Eduardo Marcial Ferreira Jardim*.
- INTRODUÇÃO
A União pretende extinguir a atual PIS/Cofins, substituindo-a por uma nova modalidade tributária denominada Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços, contida na sigla CBS. O referido gravame é objeto do Projeto de Lei nº 3887/2020, que tramita no Congresso Nacional.
Na óptica deste breve ensaio, o novel tributo não se escoima de censuráveis descompassos e inexatidões que tendem a comprometer de modo inexorável a sua validez, consoante será demostrado nos itens subsequentes.
- ASPECTOS FORMAIS
Falta de referência ao fundamento constitucional
O Projeto de Lei in casu não alude ao fundamento constitucional, como seria de mister, no que descumpre exigência contida na Lei Complementar nº 95, de 26 de fevereiro de 1998, a qual, em seu artigo 6º, determina que o preâmbulo faça referência ao supedâneo que autoriza a produção do respectivo diploma normativo, senão vejamos: “O preâmbulo indicará o órgão ou instituição competente para a prática do ato e sua base legal”.
Por óbvio, a aludida omissão pode macular a validade do diploma que resultar do Projeto de Lei sob exame, fato, diga-se de passo, que pode ser supresso antes da eventual conversão do PL em Lei.
Ausência de fato gerador
Outro ponto a ser reexaminado consiste na grave omissão do PL que, em vez de dizer qual é o fato gerador, faz tábula rasa e define tão somente a base de cálculo, conforme estampado no artigo 2º, a saber:
Do fato gerador
Art. 2º A CBS incide sobre o auferimento da receita bruta de que trata o art. 12 do Decreto-Lei nº 1.598, de 26 de dezembro de 1977, em cada operação.
- 1º A CBS incide ainda sobre as receitas decorrentes de acréscimos à receita bruta de que trata o caput, tais como multas e encargos.
- 2º A CBS não incide sobre receitas decorrentes da exportação para o exterior, assegurada a apropriação dos créditos a elas vinculados.
CBS e tributação de multa
A tributação da multa encontra-se positivada no § 1º, do artigo 2º, do PL, que assim dispõe: “A CBS incide ainda sobre as receitas decorrentes de acréscimos à receita bruta de que trata o caput, tais como multas e encargos”.
Embora sabido que o tributo jamais poderia recair sobre penalidades, o PL em apreço prevê exatamente ao contrário, porquanto estabelece que a CBS incide sobre a totalização das receitas, inclusive multas e encargos, contrariando, assim, a natureza não sancionatória que preside o perfil tipológico dos tributos.
Como se vê, tal fato revela mais um problema que circunda a questionada CBS, podendo, portanto, repercutir negativamente sobre a sua validade.
Excessivas remissões
Os mandamentos contidos nos artigos 85 usque 130, do Projeto de Lei da CBS, abrigam um número excessivo de remissões a dispositivos de outras leis, os quais, de seu turno, reportam-se a interpostas legislações, tornando de dificultosa compreensão o texto novo.
Tal fato configura um incredível paradoxo, pois, em vez de simplificar, a nova Lei haverá de redimensionar a burocracia, a complexidade e a segurança jurídica.
Matéria de Lei Complementar
Em veras, a CBS reveste a natureza de uma nova contribuição de seguridade social, razão pela qual somente poderia ser instituída por meio de Lei Complementar e não por Lei Ordinária, conforme ocorre no caso vertente.
Por sem dúvida, a criação de novas contribuições de seguridade encontra-se prevista no artigo 195, § 4º, da Constituição Federal, combinado com o disposto no artigo 154, I, do mesmo Texto, razão pela qual a União Federal pode fazê-lo, só que por diploma de natureza complementar.
Força é reconhecer que a apontada equivocidade compromete a CBS com a coima de nulidade pleno jure.
- DE MERITIS
Campo de incidência: Bens e Serviços
Ao que tudo indica, o desígnio governamental com relação à CBS seria gravar o mesmo universo que a atual PIS/Cofins, encampando, assim, tanto a indústrias quanto o comércio, bem assim os serviços, incluídas quaisquer outras atividades. É dizer, nada escapa do seu raio de atuação.
Entrementes, o Projeto de Lei faz referência tão somente a Bens e Serviços, nada dizendo com relação a mercadorias, o que reduz o campo de incidência e por consequência restringe o seu potencial arrecadatório.
Com efeito, independentemente da intenção do legislador, torna-se forçoso reconhecer que a atividade comercial não integra o raio de incidência da CBS, máxime porque o preâmbulo e o artigo 1º são de clareza solar ao grafarem o epíteto Bens e Serviços.
Nem se diga que a palavra Bens alcançaria as mercadorias, até porque o Direito não se compagina com imperfeição terminológica desse jaez, isso sem contar que a carga semântica do vocábulo Mercadoria não se confunde com a expressão Bens.
Realmente, as palavras sub examen são inconfundíveis, na dimensão em que Mercadoria diz respeito a coisa situada no âmbito do comércio e, por isso mesmo, é algo destinado à operação de venda e compra, ao passo que os Bens, a contrario sensu, são coisas a serem utilizadas ou consumidas e, portanto, situadas fora do comércio.
A propósito, um remédio numa farmácia ou um produto alimentício num supermercado, ou ainda um automóvel numa loja, representam exemplos inequívocos de Mercadorias, pela simples razão de serem destinados à venda e compra.
Outrossim, as referidas Mercadorias se transformam em Bens sempre que forem adquiridas para utilização ou consumo, asserto, diga-se de passo, que faz coro com as lições de Carvalho de Mendonça (in Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 11, 1977, p. 137), Plácido e Silva (2010,p.911), Kiyoshi Harada (2005, p. 261), Roque Carrazza (2017, p. 582-583) e Geraldo Ataliba (1991, p. 90-104), dentre outros, podendo até dizer que se trata de uma das poucas unanimidades na seara do Direito.
Não é diferente a lição de Geraldo Ataliba, Mestre dos Mestres: “um remédio na prateleira da farmácia, para o farmacêutico é mercadoria, para mim não; não compro aquilo para revender, compro aquilo para curar minha doença. O livro na prateleira do livreiro é, para ele, mercadoria, para mim é um bem inestimável de cultura” (1991, p. 90-104). Harada, em seu Dicionário de Direito Público, compartilha de igual entendimento e nos esclarece que Mercadorias são coisas destinadas à comercialização (2005, p. 261).
- X. Carvalho de Mendonça é enfático ao versar o assunto. Ouçamo-lo: “As coisas móveis consideradas como objeto da circulação comercial tomaram o nome específico de mercadorias”. Já o conceito de Bens, a contrario sensu, na trilha da lição de Sílvio de Macedo, diz respeito a coisas susceptíveis de apropriação e, portanto, fora do comércio (in Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 11, 1977, p. 137).
Adistinção ora versada foi consagrada também no Pretório Excelso, consoante revela o seguinte excerto da lavra do Ministro Marco Aurélio ao sintetizar que “mercadoria é coisa móvel destinada à comercialização, que geralmente é adquirida por pessoas do comércio para revenda” (AgReg 131.941SC, RTJ 136/146).
Confiscatoriedade da alíquota de 12%
O artigo 8º do mencionado Projeto de Lei estabelece que a alíquota da CBS importa em doze por cento (12%) em relação à equação resultante da receita bruta e as respectivas deduções contidas nos incisos I a IV, do artigo 7º, tudo na estrita conformidade com os termos do Projeto de Lei sob exame.
Por todas as veras, causa perplexidade verificar que a novel contribuição eleva a alíquota do regime cumulativo de 3,65% para 12%, o que não significa apenas algumas unidades percentuais, mas, sim, 228,76%!!! Outrossim, a percentagem da não cumulatividade que totaliza 9,25% também será elevada em 27,5%, o que não é pouco.
Enfim, vencerá o receituário de sempre, ou seja, haverá considerável majoração da carga tributária, fato, diga-se de passo, estreme de dúvidas.
Complexidade da cobrança não-cumulativa
Se é verdade que a atual PIS/Cofins compreende imensurável complexidade na aferição do quantum debeatur em face da não-cumulatividade, não menos verdade é que a CBS será ainda mais burocratizada, gerando custos contábeis mais elevados para o contribuinte, além de dificultar a própria gestão do tributo por parte da Receita Federal do Brasil. Em suma, todos perdem, inclusive a cidadania, uma vez que estamos diante de um tributo que mais uma vez grava o consumo, na contramão dos postulados de justiça fiscal.
- CONCLUSÕES
Ante o exposto, força é reconhecer que ao lado de abrigar uma série de impropriedades formais que, per se, poderiam comprometer a sua validez, cumpre ressaltar que a CBS não pode ser exigida de operações com Mercadorias, bem como a novel contribuição não resiste a um contraste de constitucionalidade em virtude de ser veiculada por Lei Ordinária, quando seria de mister ser produzida por Lei Complementar.
Ademais, a referida espécie tributária exprime um aumento de 228,76% com relação aos 3,65% do regime cumulativo da PIS/Cofins, representando, outrossim, uma elevação de 27,5% quando comparada aos 9,25% do regime não cumulativo, o que representa uma censurável majoração de carga tributária, agravada por ocorrer num período de terrível crise econômica em face da pandemia da Covid-19.
Por derradeiro, não se pode olvidar, também, que, ao revés de simplificar a contabilização fiscal e o dia a dia do contribuinte, o referido gravame se move em direção oposta, na medida em que o questionado PL burocratiza em gradação máxime a administração da CBS.
- REFERÊNCIAS
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BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei Complementar nº 95, de 26 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, conforme determina o parágrafo único do art. 59 da Constituição Federal, e estabelece normas para a consolidação dos atos normativos que menciona. Brasília, DF. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/LCP/Lcp95.htm. Acesso em: 23 ago. 2020.
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 3887/2020. Institui a Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços - CBS, e altera a legislação tributária federal. Apresentação:21 jul. 2020. Brasília, DF. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=496C301CC67EFC372F6909B08A199D39.proposicoesWebExterno1?codteor=1914962&filename=PL+3887/2020. Acesso em: 23 ago. 2020.
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* Mestre e Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Professor Titular de Direito Tributário – Graduação – Mestrado – Doutorado – na Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Membro da Academia Paulista de Letras Jurídicas, Cadeira nº 62. Membro Fundador do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário – IBEDAFT. Parecerista e Sócio de Eduardo Jardim e Advogados Associados.