Por Kiyoshi Harada.
Nunca um tema suscitou tanta controvérsia no STJ como este da prescrição tributária.
É conhecida a velha tese de que o lançamento tributário é o marco divisor entre a decadência e a prescrição tributária: antes dele, o prazo é de decadência; depois dele, o prazo é de prescrição.
Dispõe o art. 174 do CTN:
A ação para a cobrança do crédito tributário prescreve em cinco anos, contados da data de sua constituição definitiva”.
Parágrafo único. A prescrição se interrompe:
I – pelo despacho de juiz que ordenar a citação em execução fiscal;
II – pelo protesto judicial;
III – por qualquer ato judicial que constitua em mora o devedor;
IV – por qualquer ato inequívoco, ainda que extrajudicial, que importe em reconhecimento do débito pelo devedor.
Logo, para fixar o termo inicial da prescrição é preciso definir o momento da constituição definitiva do crédito tributário. Esse momento está definido no art. 145 do CTN, ou seja, a notificação do lançamento ao sujeito passivo.
Constituído definitivamente o crédito tributário, abrem-se duas possibilidades: a) o sujeito passivo efetua o pagamento, hipótese em que se extingue o crédito tributário; b) o sujeito passivo resiste à pretensão do fisco, apresentando impugnação ao crédito tributário, dando nascimento ao processo administrativo tributário que outra coisa não é senão o meio de solucionar a lide.
A Fazenda sabe de antemão que precisa encerrar esse processo antes dos cinco anos, sob pena de prescrição. Alguns autores de renome sustentam que o procedimento só se encerra com a final manifestação do fisco no processo administrativo. Acrescentam que, se suspensa está a exigibilidade do crédito tributário pela impugnação ou recurso (art. 151, III, do CTN), não poderia estar fluindo um prazo prejudicial à cobrança do crédito tributário, bem como que, enquanto não houver manifestação final irrecorrível do fisco, aquele crédito tributário constituído pelo lançamento a que se refere o art. 142 do CTN poderá ser alterado.
Respeitamos esse posicionamento, mas com ele não concordamos.
Primeiramente, porque confunde procedimento do lançamento, que se encerra com o ato do lançamento, com processo administrativo tributário, que é instrumento de solução da lide surgida pela impugnação do sujeito passivo (resistência à pretensão do fisco). Em segundo lugar, essa tese conduz necessariamente à existência de um crédito tributário provisório que não tem abrigo em nenhum dispositivo do CTN. Se o pagamento extingue o crédito tributário (art. 156, I, do CTN), é porque ele não era provisório. E também descabe a cogitação de notificação para pagamento de crédito tributário provisório. Em terceiro lugar, acaba conferindo efeito jurídico ao ato potestativo da Fazenda. Se ela levar 10, 15 ou 20 anos para proferir a decisão final no processo administrativo, o prazo prescricional de 5 anos não estará fluindo. Em quarto lugar, porque, se provido o recurso do contribuinte em última instância administrativa, extingue-se o crédito tributário (art. 156, IX, do CTN), a demonstrar que o crédito estava constituído definitivamente desde a data da notificação do lançamento. Da mesma forma, a decisão judicial passada em julgado extingue o crédito tributário (art. 156, X, do CTN). Em quinto lugar, não há como pretender a ultimação do lançamento tributário pelo órgão colegiado de última instância administrativa, onde existem representantes de contribuintes que nem servidores públicos são. E o lançamento é ato privativo do servidor público integrante da carreira de auditor fiscal ou de agente fiscal de rendas ao teor do art. 142, do CTN, c.c. o inciso XXII, do art. 37, da CF. Cabe ao tribunal administrativo, assim como ao Poder Judiciário desconstituir o crédito tributário total ou parcialmente, e não constituí-lo ou aperfeiçoá-lo como pretende parcela da doutrina vigorante. Em sexto lugar, essa tese conspira contra o princípio da segurança jurídica, que fundamenta tanto a prescrição como a decadência. De fato, não estará fluindo o prazo decadencial, porque o crédito tributário já foi constituído, ainda que de forma provisória, e nem estará fluindo o prazo prescricional, porque o processo administrativo tributário ainda não foi encerrado por opção do fisco.
Esclareça-se que do prazo de cinco anos o contribuinte é responsável pela utilização de apenas 75 dias (30 dias para impugnar e 30 dias para interpor recurso ordinário), acrescido, eventualmente, de mais 15 dias para apresentação, quando cabível, de recurso especial.
Por isso, Ruy Barbosa Nogueira sustenta que a revisão do lançamento decorrente de impugnação do sujeito passivo “tem que estar concluída dentro do prazo de prescrição que, precisamente para possibilitar o trabalho procedimental de reexame, suspende a exigibilidade por tempo considerado pela vontade objetivada na lei, não só como suficiente para terminá-lo (cinco anos), mas ainda com a flexibilidade da sua interrupção judicial, se necessária, para ser terminado esse trabalho”.[1]
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça reflete a imprecisão doutrinária, e ora dá a entender que a impugnação administrativa suspende a prescrição, ora afirma que o recurso administrativo interrompe a prescrição, conforme se verifica das ementas a seguir:
“Execução fiscal – Auto de infração – Início do prazo prescricional – Término do processo administrativo – Precedentes.
É pacífico no âmbito desta Corte Superior que a interposição de recurso administrativo tem o efeito de suspender a exigibilidade do crédito tributário, obstando o início do prazo da prescrição, o qual passa a fluir somente após o respectivo julgamento. Precedentes. Agravo Regimental improvido” (AgRg no Resp 108811-SP, Rel. Min. Humberto Martins, Segunda Turma, DJE 24-3-2009).
“Recurso especial. Processual civil e tributário. Dies a quo do prazo prescricional. Decisão final na esfera administrativa. Constituição definitiva do crédito tributário. Ocorrência de erro material. Irrelevância. violação do art. 535 do CPC. Inocorrência.
- Consoante o cânone do art. 174 do CTN, o prazo prescricional começa a ser contato da data definitiva da constituição do crédito tributário. A existência de discussão administrativa a respeito do crédito tributário obsta sua constituição definitiva, interrompendo a contagem do prazo prescricional, que tão somente reinicia-se com a manifestação definitiva da autoridade administrativa. (Precedentes: REsp 396.699 – RS, Relator Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, 4a Turma, DJ 15 de abril de 2002; REsp 190.092 – SP, Relator Ministro FRANCIULLI NETTO, Segunda Turma, DJ de 1o de julho de 2002)” (Resp no 751132/RS, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, DJ de 15-10-2007, p. 229).
“Processual civil e tributário. Ofensa ao art. 535 do CPC. Não ocorrência. Impugnação de débito tributário na via administrativa. Suspensão do prazo prescricional. Inteligência dos arts. 151, III, e 174 do CTN. Acórdão recorrido. Revisão de entendimento. Reexame de fatos e provas. Súmula 7/STJ. Inobservância das normas legais. Afronta à boa-fé objetiva. Venire contra factum proprium. Divergência jurisprudencial. Exame prejudicado.
- Não se configura ofensa ao art. 535, II, do Código de Processo Civil, uma vez que o Tribunal de origem julgou integralmente a lide e solucionou a controvérsia, tal como lhe foi apresentada. Não é o órgão julgador obrigado a rebater, um a um, todos os argumentos trazidos pelas partes em defesa da tese que apresentaram. Deve apenas enfrentar a demanda, observando as questões relevantes e imprescindíveis à sua resolução. Nesse sentido: REsp 927.216/RS, Segunda Turma, Relatora Ministra Eliana Calmon, DJ de 13/8/2007; e REsp 855.073/SC, Primeira Turma, Relator Ministro Teori Albino Zavascki, DJ de 28/6/2007.
- A Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial 1.113.959/RJ, submetido ao rito do art. 543-C do CPC, firmou o entendimento de que ‘o recurso administrativo suspende a exigibilidade do crédito tributário, enquanto perdurar o contencioso administrativo, nos termos do art. 151, III do CTN, desde o lançamento (efetuado concomitantemente com auto de infração), momento em que não se cogita do prazo decadencial, até seu julgamento ou a revisão ex officio, sendo certo que somente a partir da notificação do resultado do recurso ou da sua revisão, tem início a contagem do prazo prescricional, afastando-se a incidência da prescrição intercorrente em sede de processo administrativo fiscal, pela ausência de previsão normativa específica’ (REsp 1.113.959/RJ, Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, DJe de 11/03/2010).
[...]
- A inobservância das normas legais para ver-se livre do pagamento de tributo afronta a boa-fé objetiva, nos termos do brocardo venire contra factum proprium.
- Fica prejudicada a análise da divergência jurisprudencial quando a tese sustentada já foi afastada no exame do Recurso Especial pela alínea ‘a’ do permissivo constitucional.
- Agravo Regimental não provido” (AgRg no AREsp no 705.069/RJ, Rel. Min. Herman Benjamin, DJe de 04-02-2016).
Ora, por imperativo lógico a afirmativa de que superveniência da inexigibilidade do crédito tributário interrompe ou suspende o prazo prescricional implica o reconhecimento de que esse prazo estava fluindo desde a sua constituição definitiva pelo lançamento, o que contraria outros julgados do STJ no sentido de que a contagem do prazo de prescrição só tem início a partir da notificação do resultado do recurso (Resp nº 435.896, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ 20-10-2010; Resp nº 113.959, Rel. Min. Luiz Fux, DJe de 11-3-2010). Aliás, a suspensão da exigibilidade do crédito pressupõe que ele está definitivamente constituído. Somente o crédito tributário definitivamente constituído pelo procedimento administrativo do lançamento é que comporta suspensão, por exemplo, por via de uma liminar no mandado de segurança impetrado contra ato do agente lançador.
Na verdade, não importa a situação de inexigibilidade do crédito tributário nos casos elencados no art. 151 do CTN. A tese da suspensão simultânea da exigibilidade do crédito tributário e do prazo prescricional não tem apoio no CTN. Ao contrário, o Código proclama exatamente o contrário, como se verifica do art. 155 a seguir transcrito:
Art. 155. A concessão da moratória em caráter individual não gera direito adquirido e será revogado de ofício, sempre que se apure que o beneficiado não satisfazia ou deixou de satisfazer as condições ou não cumprira ou deixou de cumprir os requisitos para a concessão do favor, cobrando-se o crédito acrescido de juros de mora: I – com imposição da penalidade cabível nos casos de dolo ou simulação do beneficiado, ou de terceiro em seu benefício daquele; II – sem imposição de penalidade, nos demais casos. Parágrafo único. No caso do inciso I deste artigo, o tempo decorrido entre a concessão da moratória e sua revogação não se computa para efeito da prescrição do direito à cobrança do crédito; no caso do inciso II deste artigo, a revogação só pode ocorrer antes de prescrito o referido direito.
Agora, a jurisprudência do STJ evoluiu para o pior ao editar a Súmula 622 com o seguinte teor:
A notificação do auto de infração faz cessar a contagem da decadência para constituição do crédito tributário; exaurida a instância administrativa com o decurso do prazo para a impugnação ou com a notificação de seu julgamento definitivo e esgotado o prazo concedido pela Administração para o pagamento voluntário, inicia-se o prazo prescricional para a cobrança judicial.
Claro como água a inovação legislativa.
Como se verifica, o instituto da prescrição no direito tributário praticamente desapareceu por condicionar o início de sua contagem à prática de um ato potestativo da Fazenda. Enquanto esta não promover a notificação não estará correndo o prazo de pagamento do tributo. E enquanto não se esgotar o prazo de pagamento não estará fluindo o prazo prescricional.
Toda essa confusão resultou da equivocada doutrina que confundiu o procedimento administrativo do lançamento, que se encerra com a notificação do ato do lançamento, normalmente representado por um auto de infração, com o processo administrativo tributário, que é um meio de dirimir a controvérsia que se instaurou com a impugnação do crédito tributário.
Ora, é próprio de um ato jurídico perfeito comportar impugnação administrativa ou judicial. O estranho é impugnar um ato ainda não constituído definitivamente. Aliás, jurídico em constituição não pode ser impugnado a não ser por inobservância da forma prescrita em lei.
SP, 23-11-2020.
[1] Curso de direito tributário, 9ª ed.. São Paulo: Saraiva, 1989. p. 298.