Juarez Arnaldo Fernandes 1
Resenha: A Reforma Tributária pode gerar riscos penais se mal conduzida: insegurança jurídica, criminalização indevida e uso excessivo do Direito Penal.
Em meio à euforia econômica gerada pela aprovação da Reforma Tributária, um aspecto crucial permanece perigosamente negligenciado: os impactos penais decorrentes da transição fiscal e da nova configuração tributária. A tão esperada Reforma Tributária finalmente é realidade, e a proposta ambiciosa e necessária, promete simplificar o sistema, reduzir distorções e dar mais racionalidade à cobrança de tributos no Brasil.
Mesmo em meio aos aplausos e expectativas, há temas delicados que não podem ser deixados de lado, sob pena de graves consequências para a segurança jurídica. Nesse sentido, a doutrina destaca que o garantismo penal é um modelo normativo de Direito vinculado ao Estado de Direito e ao minimalismo penal, orientado à maximização da liberdade e à minimização da violência punitiva, assegurando os direitos individuais2. Em resumo, o garantismo penal representa o modelo jurídico que vincula o poder punitivo ao princípio do poder mínimo, sendo, ainda, a ideologia jurídica hegemônica entre os teóricos do Direito Penal 3.
Mais do que uma preocupação secundária, trata-se de um alerta que precisa ser feito antes que seja tarde. Sempre que há reestruturação tributária, há também um deslocamento dos marcos que definem o que é ou não crime fiscal, e no Direito Penal, diferentemente do Direito Tributário, não há espaço para zonas cinzentas: a definição daquilo que constitui crime precisa ser clara e certa, em respeito ao princípio da legalidade. Segundo BITENCOURT 4, “a rigor, não se pode nunca perder de vista a exigência legal-dogmática da tipicidade estrita, que impõe que a execução da conduta incriminada abranja todas as suas elementares — objetivas, normativas e subjetivas — constitutivas do tipo penal”.
Hoje, os crimes contra a ordem tributária são disciplinados, principalmente, pela Lei nº 8.137/1990, que, no artigo 1º. criminaliza condutas como suprimir ou reduzir tributo mediante omissão, fraude ou falsificação, sendo severa: até cinco anos de reclusão, além de multa. Ocorre que esses tipos penais estão diretamente ligados à existência de tributos como ICMS, ISS, PIS, COFINS e IPI — justamente os que estão sendo extintos ou substituídos na reforma, o que impõe a necessidade de atenção redobrada para que não se perpetuem incriminações apoiadas em tributos que deixarão de existir, sob pena de grave insegurança jurídica.
Além disso, o período de transição entre o antigo e o novo sistema será, inevitavelmente, um terreno fértil para incertezas, e com a adaptação à nova lógica de arrecadação demandará tempo, ajustes e, sobretudo, compreensão institucional. Ademais, o contribuinte que errar por interpretar mal um sistema ainda instável não pode ser tratado como criminoso, sendo fundamental, nesse contexto, a aplicação do princípio da intervenção mínima, que limita o Direito Penal aos casos de dolo manifesto e fraude efetiva.
No entanto, é justamente nesses momentos que o Estado costuma recorrer ao velho atalho da criminalização, um risco real de que o uso do Direito Penal como mecanismo de cobrança indireta possa aumentar, com autuações fiscais que podem rapidamente se transformar em representações penais — e o que era uma dúvida de interpretação vira, sem muita cerimônia, uma denúncia criminal.
Mas o alerta não para por aí. A Reforma Tributária traz também novas discussões em torno da lavagem de dinheiro, com a modernização dos sistemas de controle e a digitalização das operações, o cruzamento de dados fiscais com movimentações financeiras será ainda mais preciso — e potencialmente mais agressivo.
A Lei nº 9.613/1998, que trata da lavagem de capitais, alterada em 2012, permite que qualquer crime antecedente possa fundamentar uma acusação por lavagem, incluindo, evidentemente, os crimes tributários, assim, uma suposta sonegação pode ser o gatilho para uma acusação muito mais grave: a de que os valores não declarados foram ocultados ou dissimulados, caracterizando lavagem.
Esse movimento, já em consolidação nos últimos anos, tende a se intensificar no novo cenário tributário, agravando a banalização da acusação de lavagem de dinheiro como consequência automática de qualquer infração fiscal. Muitas vezes, o simples reinvestimento dos recursos no próprio negócio é interpretado como tentativa de ocultação, numa leitura que desconsidera a exigência essencial do crime de lavagem de capitais: a demonstração do dolo específico — a intenção deliberada de ocultar ou dissimular a origem ilícita dos bens ou valores —, o que não pode ser presumido a partir de atos empresariais regulares.
Trata-se de interpretação forçada, que distorce o tipo penal e transforma o Direito Penal em instrumento de intimidação — verdadeira tortura psicológica fiscal — e mecanismo de arrecadação. Em reforço a essa necessidade de comprovação do dolo específico, FONSECA 5 é cristalino ao afirmar que “o dolo faz parte da culpabilidade, elemento do crime”, evidenciando que sua demonstração é imprescindível. No mesmo sentido, BADARÓ e BOTTI 6 ressaltam que “sempre será necessária a demonstração de todos os elementos subjetivos inerentes ao tipo penal, quais sejam, a vontade ou intenção de limpar o capital e reinseri-lo no círculo econômico com aparência lícita”.
O problema é que, uma vez aberta a porta da lavagem, tudo muda, decorrendo as penas mais altas, o processo mais rigoroso, e o estigma devastador, onde havia um debate técnico sobre tributo, se transforma em uma narrativa de crime organizado, com todos os efeitos sociais e jurídicos que isso implica.
Não se trata de defender a impunidade, pois quem frauda deliberadamente, quem atua com dolo e má-fé, deve sim ser responsabilizado com firmeza, mas é igualmente indispensável distinguir o erro de boa-fé da fraude dolosa, sob pena de fomentar um ambiente de medo e insegurança que só agrava a crise de confiança entre contribuinte e Estado.
Assim, temos na Reforma Tributária uma oportunidade de reconstruir o pacto entre fisco e sociedade, não obstante, para isso, é preciso que o Direito Penal seja usado com inteligência, critério e moderação, não podendo o processo penal substituir a responsabilidade do próprio Estado em criar normas claras e sistemas de arrecadação acessíveis e compreensíveis.
Se quisermos um sistema mais justo, ele precisa ser igualmente justo no momento de punir, o que significa respeitar os limites da legalidade, distinguir erro de dolo e aplicar os princípios da proporcionalidade, da intervenção mínima e da presunção de boa-fé do contribuinte, que não pode ser tratado como adversário, mas sim como parceiro na construção do interesse público. Dificuldades de adaptação a um novo sistema tributário são, antes de tudo, questões normativas e contábeis — e não devem ser confundidas com condutas criminosas. A Constituição deveria ser o guia correto para a identificação dos bens jurídicos que podem ser objeto de proteção penal, e essa apuração, necessariamente, deve avançar em duas direções: em uma primeira etapa, buscando a maior eficácia dos direitos fundamentais; e, em seguida, avaliando a proporcionalidade da repressão de certas ações, com fundamento no princípio da proibição de excesso.7
O Brasil tem agora uma chance histórica de virar a página, e espera-se que não a estrague com mais do mesmo: excesso, abuso e criminalização cega, fazendo com que o Direito Penal neste novo capítulo da história tributária brasileira cumpra seu verdadeiro papel: o de proteção excepcional dos bens jurídicos fundamentais, sem servir como instrumento de arrecadação ou intimidação do setor produtivo.