Resenha: A LC nº 214/2025 assegura o crédito tributário em serviços prestados por pessoas jurídicas autônomas, reconhecendo a pejotização legítima, desde que haja autonomia real e vínculo empresarial, conforme o STF.
Juarez Arnaldo Fernandes1
A entrada em vigor da Lei Complementar nº 214/20252, inaugurou uma nova fase na reforma tributária brasileira. A norma regulamenta o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), duas colunas do novo sistema de tributação sobre o consumo, e com ela o país busca corrigir antigas distorções, simplificar obrigações e aproximar o modelo nacional da lógica de neutralidade fiscal que predomina nas economias mais modernas.
Entre as inovações da lei, os artigos 47 a 56 ganharam destaque, pois definem as hipóteses em que o contribuinte pode aproveitar créditos referentes a bens e serviços adquiridos para uso em sua atividade econômica. O dispositivo estabelece que o crédito só é possível quando a despesa possui natureza empresarial, ou seja, quando se relaciona diretamente ao ciclo produtivo, comercial ou de prestação de serviços.
Essa distinção, aparentemente simples, tornou-se mais delicada diante de um fenômeno cada vez mais presente no mercado: a pejotização. Em muitos setores, profissionais que antes eram contratados pela CLT passaram a atuar como pessoas jurídicas, emitindo notas fiscais e assumindo responsabilidades empresariais, e o avanço dessa prática comum na advocacia, na medicina, na tecnologia e em outras atividades intelectuais, trouxe à tona uma dúvida inevitável: as despesas pagas a prestadores de serviço pejotizados podem gerar crédito de IBS e CBS?
Antes, porém, importante analisar a questão, quando o Supremo Tribunal Federal enfrentou essa demanda ao julgar o Tema 725, no qual fixou tese3 reconhecendo lícita a contratação de pessoa jurídica para prestação de serviços intelectuais, científicos, artísticos ou culturais, ainda que desempenhados pessoalmente pelo sócio, desde que inexistam subordinação e fraude à legislação trabalhista. Em outras palavras, o STF reconheceu a pejotização como forma legítima de exercício da atividade econômica e de organização produtiva, desde que haja autonomia real e risco próprio na relação contratual.
Esse entendimento tem reflexo direto na aplicação da LC nº 214/2025, sendo que, ao afirmar o Supremo que a pejotização legítima é manifestação da liberdade econômica, então os pagamentos feitos a essas pessoas jurídicas, quando vinculados à atividade empresarial e devidamente documentados, devem ser reconhecidos como despesas essenciais e legítimas, portanto, aptas a gerar crédito tributário.
Assim, os critérios de essencialidade e relevância dos serviços para fins de crédito, têm atribuição de natureza técnica: serve para disciplinar a forma de comprovação, e não para redefinir o conceito jurídico de serviço legítimo. O conteúdo material da regra já está delineado pelo STF — o que é essencial e legítimo, em termos de serviço, é aquilo que decorre de uma relação empresarial verdadeira, não de uma simulação trabalhista.
Dessa forma, o sistema criado pela LC nº 214/2025 não pretende coibir a pejotização, mas sim separar o que é autêntico do que é fictício. Quando há efetiva prestação empresarial, com nota fiscal idônea, autonomia técnica e vínculo direto com a atividade do tomador, o crédito de IBS e CBS é legítimo, e quando há disfarce de vínculo empregatício, o crédito é vedado, por se tratar, na essência, de remuneração pessoal.
Essa diferenciação é mais profunda do que uma questão contábil. Ela traduz uma mudança de paradigma: a neutralidade fiscal deixa de ser apenas um princípio abstrato e passa a representar uma postura do Estado diante da liberdade de organização produtiva. Penalizar a pejotização legítima seria contrariar o próprio espírito da reforma tributária, que busca eliminar interferências indevidas e permitir que as decisões empresariais sejam guiadas pela eficiência econômica, não pela forma jurídica do contrato.
Ainda assim, a aplicação prática da norma impõe desafios, como por exemplo, a ausência de regras claras sobre contratos continuados com pessoas jurídicas unipessoais cria uma zona de incerteza, que pode levar à glosa de créditos mesmo em situações de plena legitimidade.
Outro ponto sensível é a atuação fiscalizatória. Em setores onde a pessoalidade é inerente como medicina, advocacia e consultoria, o fisco poderá exigir provas adicionais de autonomia e risco empresarial. Essa postura tende a deslocar para o contribuinte o ônus de provar a legitimidade da operação, abrindo espaço para interpretações subjetivas e, consequentemente, para litígios.
Há, ainda, o risco de desalinhamento entre a visão constitucional e a aplicação administrativa. Enquanto o STF analisou a pejotização sob a ótica da liberdade econômica, os fiscos podem agir com viés arrecadatório, desconsiderando a substância econômica da operação, podendo esse conflito de perspectivas enfraquecer a coerência do sistema e gerar um contencioso desnecessário, justamente o que a reforma pretendeu evitar.
Apesar desses obstáculos, a conjugação entre a LC nº 214/2025 e a jurisprudência do Supremo representa um avanço real. O reconhecimento de créditos sobre serviços prestados por pessoas jurídicas autônomas materializa o princípio da não cumulatividade e reforça a liberdade de iniciativa como valor constitucional, e o que se espera daqui em diante, é que a regulamentação preserve esse equilíbrio e não distorça o alcance da norma, garantindo segurança jurídica às empresas que atuam de forma legítima.
Por fim, a segurança jurídica não depende apenas da letra da lei, mas da capacidade institucional de aplicá-la com coerência e bom senso, pois quanto mais verdadeira for a autonomia da relação contratual, mais legítimo será o crédito reconhecido, e assim, conclui-se que, no contexto da LC nº 214/2025, a pejotização legítima integra o regime de neutralidade fiscal e, em observância à liberdade econômica, deve ensejar o reconhecimento de crédito tributário sempre que configurada relação empresarial efetiva.
