Por Marcelo Campos*
- Premissa constitucional e Evolução do Procedimento Administrativo Tributário no Brasil
Algumas reflexões prévias fazem-se necessárias, tendentes a delimitar o foco do presente trabalho e os aspectos envolvidos na interpretação que se busca.
Trazemos como premissa que o processo administrativo, assim como todo o direito, é regido pelos princípios constitucionais vigentes, cuja formação, foi muito cara ao cidadão[1].
Sem dúvidas, a própria criação do Estado de Direito busca, e sempre buscou, no que concerne ao aspecto tributário, estabelecer linhas de atuação, a fim de que fosse delimitada a própria atividade fiscal do Estado.
Por este motivo, a administração pública, no exercício das suas atribuições, possui hoje limites constitucionais muito bem definidos, sobretudo em face da fixação expressa das garantias dos contribuintes.
Mas não foi sempre assim, no Brasil, como esclarece Marilene Talarico Martins Rodrigues[2], “O processo administrativo, ao longo de nossa formação histórica sempre se mostrou assistemático e lacunoso”. Sendo que tais características advêm de uma construção normativa irregular fruto de nossa origem colonial.
Um passo importante na evolução descrita certamente se deu com a criação do Conselho de Contribuintes por força do Decreto 20.350/31, e, muito tempo depois com o surgimento do Código Tributário Nacional em 66.
Bases fundamentais foram lançadas na Constituição Brasileira de 1967, com a alteração ocasionada pela EC 1/69, que, dispôs sobre a existência de normas gerais de direito tributário, regulando conflitos de competência, competências que apoiadas na pulsante evolução doutrinária, resultaram nas bases sedimentadas na Constituição de 1988.
I.1. Dos Procedimentos Fiscais
Procedimento Celso Antônio Bandeira de Mello[3] conceitua procedimento administrativo como sendo “uma sucessão encadeada de atos administrativos que tendem, todos, a um resultado final e conclusivo”.
No exercício da atividade de fiscalização, a Secretaria da Receita Federal realiza toda sorte de atos tendentes verificação do cumprimento das obrigações tributárias.
Este procedimento, é o lançamento, prescrito no artigo 142 do Código Tributário Nacional.
“Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível.”
Marcos Vinícius Neder e Maria Tereza Martínez López afirmam que “o lançamento é ato administrativo, que decorre de um procedimento fiscal, de caráter declaratório de um fato ocorrido, imponível e constitutivo de uma relação jurídico-tributária entre o sujeito ativo, representado funcionalmente pelo agente fiscal do ato, e o sujeito passivo a quem fica acometido um dever jurídico, cujo objeto é o pagamento de uma obrigação pecuniária”.[4]
Rubens Gomes de Souza[5], coautor do anteprojeto que gerou o CTN, define nos seguintes termos: “Falar de procedimento fiscal, é falar de lançamento. Lançamento é, em tese, o objetivo do procedimento fiscal. Para efeitos práticos, procedimento tributário e lançamento são a mesma coisa. Procedimento é o processo administrativo e processo é o processo judicial. Como tantas outras coisas, está certo e está menos certo. Procedimento, em direito, como em qualquer outra ciência, pode ser latinizado como “modus procedendi”, ou como maneira de proceder. Procedimento é todo e qualquer complexo de atos, ligados por um nexo lógico, tendentes a um mesmo objetivo final.”
Desta forma, a obrigação tributária nasce através do lançamento, instrumentalizado, quando de ofício, através do Auto de Infração, sendo facultada a Impugnação no caso do entendimento de tratar-se de exação ilegítima.
A impugnação dá início ao processo administrativo fiscal, em que a Constituição assegura o contraditório e a ampla defesa, desenvolvidos num devido processo legal, ou seja, por meio de processo legal adequado, deverão ser observados os princípios constitucionais pertinentes: legalidade, impessoalidade, moralidade, eficiência, juiz natural, motivação e publicidade.
I.2. O Procedimento Administrativo Tributário na Carta de 88
Garantia Constitucional do Contribuinte
Via de regra, os conflitos de interesse em Direito Tributário resultam de discordância entre fisco e contribuinte sobre a legalidade de uma exação, sendo, portanto, necessária, ou impositiva, a busca pela verdade material com a participação direta do fisco, dentro do processo administrativo.
Assim, assevera Lidia Maria Lopes Rodrigues Ribas[6]: “O devido processo legal aplica-se à atividade da Administração Pública e significa DIREITO a um processo regular e ordenado, revestindo-se de amplo sentido, em face do seu vínculo com o art. 5º, LV, da CF, que diz: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”
Desta forma, o processo administrativo, encontra-se amparado pelo princípio do devido processo legal, que garante que ninguém será condenado sem que lhe seja assegurado o direito à ampla defesa e o contraditório.
Nas palavras de Ives Gandra, tais princípios poderão ser entendidos “como o conjunto dos seguintes direitos e garantias: a) é direito de todos os litigantes; b) é direito que deve ser exercido nos processos administrativos e judiciais; c) é garantia a quem for alvo de acusação de qualquer natureza; d) tem como consequência o contraditório e a ampla defesa nos litígios administrativos e judiciais; e) assegura todos os recursos e meios inerentes a seu exercício pela Constituição Federal. [7]
Assim, o princípio do contraditório e da ampla defesa estampado no art. 5º, inciso LV, da Constituição Federal apresenta-se mesmo como uma consequência natural do Estado Democrático de Direito.
Elucida Eduardo Arruda Alvim que “Muito embora a doutrina, já à luz da Constituição Federal de 1967 com a Emenda Constitucional 1/69, entendesse que a garantia do contraditório se estendia ao processo civil e aos procedimentos administrativos, a Constituição Federal de 1998 inovou ao expressamente mencionar no inciso acima citado o processo judicial (não especificando o processo penal) e os procedimentos administrativos”.[8]
Vislumbra-se, ainda, a ampla defesa e o contraditório, cuja observância se dá de duas diferentes formas, sejam elas, pela ciência da existência de processo em andamento e pelo direito de defesa no que lhe afrontar as garantias constitucionais, por todos os meios em direito admitidos, não se possibilitando a existência de restrições.
A legislação vigente que regula o processo administrativo – Lei n.° 9.784/99 – reforça tal garantia, através do seu artigo 2. °, inciso X, que estabelece “a garantia dos direitos à comunicação, à apresentação de alegações finais, à produção de provas e à interposição de recursos, nos processos de que possam resultar sanções e nas situações de litígio”.
O exercício do direito à ampla defesa e ao contraditório, ainda, alberga o direito à petição, independente do pagamento de taxas, garantindo o direito contra ilegalidade ou abuso do poder (artigo 5°, XXXIV, CF).
Nota-se que o preceito constitucional supra invocado assegura maior amplitude de atração àqueles que vêm questionar as decisões proferidas em vias administrativas ou judiciárias.
Assim, a Constituição Federal visou propiciar aos litigantes a observância do devido processo legal em sua mais ampla acepção afastando, quaisquer outros obstáculos previstos pela legislação infraconstitucional que tolham o acesso à defesa dos interesses lesados.
E o devido processo legal, conceito no qual se inserem os princípios do contraditório e da ampla defesa previstos em sede constitucional, aplicável também ao procedimento administrativo.
Concluímos com Ricardo Mariz de Oliveira[9], ao pregar pela correta leitura do art. 5º LV nos seguintes moldes:
“Não se pode ler esse dispositivo constitucional como dizendo tão somente que, se houver um processo administrativo, concedido pela benevolência de um legislador ordinário, o contribuinte terá assegurado o contraditório e a ampla defesa, com os meios e os recursos a ela inerentes.
Uma tal leitura seria reduzir o alcance da norma constitucional, e seria limitá-la ao que é secundário no direito outorgado, ou seja, limitá-la a dizer haver o direito ao contraditório e à ampla defesa com os meios e os recursos a ela inerentes, entendendo-se secundário não no sentido da importância desse direito, mas, sim, no sentido de ser um posterius em relação ao prius de haver o direito ao processo administrativo.
Isto é, a Constituição não se limita a regular aspectos internos do processo – o contraditório e a ampla defesa, com os meios e os recursos que lhe são inerentes – deixando o essencial e primeiro, que é a própria existência de um processo, ao sabor da vontade do legislador ordinário.
Ao contrário disso, a Carta Máxima ocupa-se de outorgar a garantia por inteiro, vale dizer, deve haver um processo administrativo além do judicial, e nele, tanto quanto no judicial, são assegurados os atributos essenciais do contraditório e da ampla defesa, com os meios e os recursos que lhe são inerentes.”
- Conclusão
Inafastável, portanto a conclusão A evolução histórica do Procedimento Administrativo Tributário culmina com sua inserção expressa no rol das garantias constitucionais do Contribuinte.
- Referências bibliográficas
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[1] “os princípios que se encontram hoje consagrados, tanto naquilo que diz respeito à própria tributação material, quanto na parte processual, foram o produto de grandes lutas profundamente sangrentas que se travaram na Europa, especialmente, das quais foram vitoriosos os cidadãos contra o Poder Público. Essas vitórias dos cidadãos consagraram-se integralmente com a instauração da Idade Contemporânea, na Revolução Francesa, através da cristalização desses princípios que passaram a constar de todas as Cartas e de todas as Constituições”. Processo Judicial Tributário, p. 146 e s. in obra coletiva Novo Processo Tributário, p. 141-176, Ed. Resenha Tributária, SP,1975.
[2] Pesquisas Tributárias, Nova série – 5, Processo Administrativo Tributário – Coord. Ives Gandra da Silva Martins – Coedição C.E.U/RT, São Paulo, 2002, 2ª Edição, p.309.
[3] In “Curso de Direito Administrativo”, 9ª ed., Malheiros, São Paulo, 1997, p. 348.
[4] In “Processo Administrativo Fiscal Federal Comentado”, 2.ª edição, Dialética, São Paulo, 2004, p. 115.
[5] In Procedimento Tributário, p. 368-409, Ed. RT, 1978, apud Vittorio Cassone et al, op. Cit. P. 19.
[6] Processo Administrativo Tributário, Malheiros Editores, 3ª Edição, São Paulo, 2008, p.41
[7] Apud Marcos Vinícius Neder e Maria Tereza Martinez López, “Processo Administrativo Fiscal Federal Comentado”, 2.ª edição, Dialética, São Paulo, 2004, p. 43.
[8] Eduardo Arruda Alvim, “Curso de Direito Processual Civil”, volume 1, São Paulo: Ed.RT, 1999, p.127.
[9] Pesquisas Tributárias, Nova série – 5, Processo Administrativo Tributário – Coord. Ives Gandra da Silva Martins – Coedição C.E.U/RT, São Paulo, 2002, 2ª Edição, p.195.
* Advogado, Professor Universitário, Presidente do Conselho Diretor da Academia Brasileira de Direito Tributário – ABDT, Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário – IBEDAFT – Acadêmico titular da cadeira nº 30 da Academia Brasileira de Direito Tributário – ABDT e Coordenador da Revista Tributária e de Finanças Públicas – RTFP.