Por Francisco Pedro Jucá*
Com bastante frequência acontece em decisões de matéria trabalhista, especialmente reclamações, quais sejam ações ajuizadas e julgadas na Justiça do Trabalho, dois problemas de natureza fiscal atinentes à incidência e cobrança da Contribuição Previdenciária e do Imposto de Renda e, não raro, se instalam divergências e questionamentos que alongam o processo trabalhista, retardam a consumação da prestação jurisdicional, onerando as partes, seja pelo retardamento, seja pelo pagamento inadequado.
A solução do problema demanda necessariamente de que se recorra ao ferramental conceitual e legislativo do Direito Tributário, forçosamente, assim, conduzindo o exame do tema ao que chamamos metodologicamente de transversalidade, através do qual os dois ramos do direito se articulam, colmatam e complementam, até porque, o direito é uno e suas divisões são metodológicas e didáticas.
Por óbvio não se vai aqui oferecer senão modesta contribuição à reflexão sobre o tema. Longe, portanto, imaginar-se como uma solução propriamente.
Com efeito, decorrem efeitos econômicos das sentenças e acordos trabalhistas, consequentemente na maioria das hipóteses se tem a ocorrência de fato gerador ou hipóteses de incidência dos dois tributos: o IR e a Contribuição Previdenciária, e exatamente nestas hipóteses a relação tributária apresenta a complicação da participação do órgão jurisdicional entre o fisco e o contribuinte, seja por imperativo legal, como veremos adiante, seja pelo conteúdo do título executivo judicial. Fato é que nas duas alternativas se estabelece conflito relativo à constituição dos respectivos créditos tributários, exatamente porque se atribui ao Juízo fixar a natureza das verbas e títulos deferidos, se de caráter indenizatório, quando se tem a isenção, ou se de caráter remuneratório, quando se tem configurada a hipótese de incidência.
Modestamente temos resistência a atribuição à jurisdição de fixar a natureza das verbas, bem assim como a de quantificar e, noutras palavras, lançar os dois tributos, quando nada pela discrepância frontal à natureza da separação dos poderes, e mais ainda, pela confusão jurídica entre contribuinte, autoridade fiscal e autoridade judiciária, num imbróglio que muito complica e pouco aproveita.
Que não se discorde da jurisdição trabalhista, anômala e excepcional, para a execução de tais créditos, é uma coisa, até como uma leitura ainda que peculiar da vis atrativa, atribuindo competência em homenagem ao princípio da economia processual e mesmo da duração razoável do processo, outra é dar-se à Jurisdição poder para a prática de atos fiscais, como implicitamente a legislação o faz. E o faz porque determina que o Juízo fixe a natureza das verbas e assim caracterize a ocorrência do fato gerador, e, mais do que isso, dispõe que identificada a base de cálculo, que são tais verbas e títulos, faça a liquidação – quantificação – da prestação pecuniária respectiva. Tal ato constitui lançamento, ato fiscal típico, e, ainda mais, a mesma norma impõe ao juízo que assuma a obrigação acessória de retenção e pagamento. Sem dúvida que são coisas conexas, porém claramente de natureza distinta, juridicamente incompatíveis, vulnerando, como se demonstra, a separação de poderes.
Não será excesso trazer, a esta altura, o comentário de Amílcar de Araújo Falcão, em monográfica seminal e clássica sobre o tema[1]:
Fato gerador é, pois, o conjunto de fatos ou o estado de fato, a que o legislador vincula o nascimento da obrigação jurídica de pagar um tributo determinado. Nesta definição estão mencionados, como elementos relevantes para a caracterização do fato gerador, os seguintes elementos: a) a previsão em lei; b) circunstancia de constituir o fato gerador, para o Direito Tributário, um fato jurídico, na verdade um fato econômico de relevância jurídica; c) a circunstância de tratar-se de pressuposto de fato para o surgimento ou a instauração de obrigação ex lege de pagar um tributo determinado.
É de se inferir desde logo que o eixo central do que se estuda está no exercício de trabalho remunerado, assim, o pagamento/recebimento de remuneração, indiferentemente a forma, é a gênese, em ambas as hipóteses do fato gerador da obrigação tributária. Portanto, desde que haja pagamento pelo trabalho, tem-se configurada a hipótese legal abstrata (pagamento), ponto inicial e desencadeador da constituição do fato gerador. Tal porém, não esgota o assunto, porque a ocorrência ou configuração do fato faz nascer o crédito, em princípio, porém, pendem ainda a quantificação que dá o estabelecimento da liquidez e certeza, inerente ao crédito tributário, e as ações concernentes ao pagamento, como o que se conclui o processo contributivo.
Em recentíssima monografia que como outras de sua vasta obra já nasceu clássica, Kiyoshi Harada[2], pontua:
Uma vez praticada a conduta tipificada na lei tributária material tem-se como ocorrido em concreto o fato gerador, fazendo surgir, ipso facto, a obrigação tributária correspondente. Como a obrigação tributária é uma relação jurídica ela contém necessariamente aqueles elementos que já são conhecidos no direito comum: elemento subjetivo, elemento quantitativo, elemento espacial e elemento temporal.
Dentro da abordagem que se faz, o exercício de trabalho remunerado implica em vinculação compulsória com o sistema previdenciário, assim, o recebimento de remuneração ou paga faz surgir, como se viu antes, o fato gerador da obrigação de pagar, tanto a contribuição previdenciária, quanto ao imposto sobre a renda. O problema surge quando há que se constituir o crédito tributário através do lançamento, que consiste na quantificação do valor devido. Em ambos os casos temos mais um ponto em comum, qual seja a forma do ou tipo do lançamento, que em nosso ver é o tipo do “lançamento por homologação”, no qual o contribuinte assume o encargo e a responsabilidade de fazer esta quantificação, obedecendo às normas fiscais respectivas, e faz o pagamento, remetendo exame a posteriori pela Autoridade Fiscal, que tem a faculdade de negar a homologação, fazendo a correção do cálculo e cobrança do que considera efetivamente devido, ou pura e simplesmente aceitando o pagamento tal como feito.
Nos dois casos é o contribuinte, aquele que vai solver a obrigação contida no título judicial trabalhista, que tem a obrigação acessória de fazer o lançamento, isto é, o cálculo do que é devido ao fisco pertinente aos dois tributos e, além disso, reter o valor, entregando-o, em seguida, ao erário.
A propósito, a doutrina de Hugo Brito Machado esclarece bem o tema, quando diz[3]:
O lançamento por homologação é aquele que ocorre quanto aos tributos cuja legislação atribui ao sujeito passivo o dever de fazer a apuração do valor devido e antecipar o respectivo pagamento – isto é fazer o pagamento do valor apurado antes da manifestação da autoridade administrativa sobre o mesmo.
Neste ponto já é possível ver-se o fundamento da impossibilidade jurídica de o judiciário praticar o ato do lançamento tributário, mesmo por homologação, quando muito pode oferecer os elementos para o estabelecimento da base de cálculo, sendo, em nosso ver, excesso de poder ir além.
O óbice está no art. 142 do CTN, que estabelece:
art. 142 – Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação tributário correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identifica ro sujeito passivo e, sendo o caso, propor a aplicação da penalidade cabível.
Parágrafo Único: A atividade administrativa do lançamento é vinculada e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional.
É forçoso inferir da disposição legal expressa que o lançamento é ato administrativo vinculado de competência exclusiva da autoridade fiscal, portanto ela, e somente ela, pode praticá-lo. A exceção admissível, que é do que se trata neste brevíssimo estudo, é aquela que a mesma lei elege e excepciona, como é o caso do lançamento por homologação, em que é atribuído ao contribuinte lançar e quantificar o tributo, antecipando o pagamento, inclusive, fixando obrigações acessórias à principal de pagar.
No caso em exame é aquele que paga pelo trabalho que faz o lançamento, isto é, calcula o devido, retém e remete à fazenda pública.
Sendo o lançamento ato administrativo privativo da autoridade fiscal por determinação legal expressa, não é delegável nem transferível a competência para a sua prática, senão nas restritas hipóteses em que a lei tributária o faça. É preciso deixar claro desde logo que estamos diante de reserva competencial normativa, isto significa que sendo tributo, o regime jurídico é o tributário, portanto, as normas reguladoras serão necessária e restritamente tributárias, obedecendo à natureza das coisas, sendo inaceitável que outra norma que não seja de natureza tributária trate do assunto, menos ainda, regulando forma de lançamento peculiar, ainda que parcialmente. Portanto, claramente não se pode admitir a atribuição ao Juízo Trabalhista competência de fazer o lançamento, falta-lhe legitimidade para substituir o sujeito passivo da obrigação acessória, porque não é contribuinte, é Estado; não pode homologar porque não é autoridade fiscal, nem pode ser. Sua investidura é outra, integra outro poder do Estado.
Não baste, é de se registrar que a atividade arrecadatória é pertinente ao Poder Executivo, a ele pertence e integra as autoridades fiscais, permitir que outro, que não o Executivo e seus agentes, ou excepcionalmente o contribuinte pratiquem ato fiscal é violar a separação de poderes, além do que a se reforça tudo isso pelo fato de ser, por natureza jurídica e definição legal, o lançamento ato vinculado e formalmente restrito.
Tudo o que se trouxe até agora se considera pertinente aos títulos executivos judiciais, aos julgados. Cabe destaque que, mesmo quando neste título estão contidos os títulos deferidos, ainda não temos qualquer participação do judiciário no procedimento fiscal, apenas e tão somente se defere os pedidos procedentes e seus valores virão a ser base de cálculo, nada mais. A parte interessada, ela sim, contribuinte, sujeito passivo na relação jurídico-tributária, ao promover a liquidação do julgado, onde explícitos ficarão os títulos e valores respectivos, é que quantifica e lança, sendo indispensável deixar claro que, por limitação jurídica, a homologação de cálculos está restrita em seus efeitos aos valores dos títulos, jamais à tributação, vez que este último diz respeito à relação jurídica entre o contribuinte e o fisco, inclusive escapando à competência material da justiça do trabalho o executivo fiscal tributário, sendo-lhe deferido apenas, neste particular, o relativo à contribuição previdenciária.
O problema se agrava e ganha contornos mais difíceis no caso das conciliações, especialmente diante do mandamento contido no art. 2ª da Lei n. 13.876/2019, que impõe ao Juízo que homologa o acordo determinar a natureza jurídica dos títulos acordados e estabelecer as incidências fiscais, afrontando com lei ordinária o contido em Lei Complementar, como é o acaso do CTN, antes colacionado. A Lei Ordinária da Reforma Trabalhista que trouxe inovações úteis, importantes e pertinentes, aqui cometeu pecado irremissível, atropelando o direito e o sistema constitutivo da ordem jurídica, revelando mais intenção arrecadatória a qualquer preço, embora seja indispensável, em homenagem à verdade, mencionar que não se pode admitir que a jurisdição trabalhista seja instrumento de evasão ou sonegação fiscal em nenhuma hipótese.
A respeito das conciliações, é essencial que se compreenda o fenômeno no contexto da ordem jurídica em toda a sua sistematicidade, é preciso considerar as articulações intrasistêmicas na sua totalidade. Neste enfoque, a conciliação é um negócio jurídico, em que direitos controversos, eis que existe discussão judicial em curso ou iminente e tem-se o escopo de preveni-la ou evita-la, por meio do qual as partes, através de concessões recíprocas, no exercício da autonomia da vontade de que são detentores naturais, fazem extinguir suas pretensões, e utilizando-se da figura jurídica da novação, expressamente prevista na lei civil, sendo instituto jurídico ancianíssimo, satisfazem ou prestam as obrigações controvertidas fazendo surgir uma nova obrigação, que é o fruto natural deste negócio jurídico.
Ora, da novação surge um título obrigacional com um valor, sendo que a natureza do que se contenha nele é própria e nova, tudo o que existiu antes desaparece. Exatamente por ser própria e nova tem outra natureza jurídica, impondo se verifique ab initio a ocorrência ou não de fato gerador de obrigação tributária ou não.
Como se trata de negócio jurídico novo, surgido do poder negocial das partes, que é jurígeno porque dá nascimento à direito subjetivo e obrigação, como tal necessariamente há de ser encarado, cabe às partes que o celebram determinar a natureza jurídica das verbas nele contidas e, a partir daí, enfrentar a implicação tributária decorrente, por sua conta e risco.
Atribuir ao juízo a obrigação de fixar natureza do que é negociado implica em violação à autonomia da vontade das partes sem justificativa nem fundamento jurídico, atribuir a obrigação de fazer lançamento e cobrança da tributação, seja imposto ou contribuição, é violar a separação de poderes por atribuir poder fiscal típico do Executivo à agente/integrante de outro poder, com investidura e função constitucional diversa, e mais, incluir na relação jurídico-tributária como sujeito passivo de obrigação acessória o próprio Estado é violenta contradição de termos.
Neste particular, o dispositivo legal em comento viola flagrantemente a constituição, sendo, portanto, írrito.
Como solução, entretanto, pode-se estabelecer que haja incidência fiscal sobre os valores deste acordo, porém, a norma que o fizer deve observar o perfil do fato gerador, que seria a celebração do acordo e seu efetivo cumprimento, com o pagamento se estabeleceria base de cálculo para a tributação, podendo fixar alíquota especial para a hipótese, tanto do IR quanto da Contribuição Previdenciária, tanto no que toca ao empregado, quanto ao que toca ao empregador. Tendo como referência a pragmaticidade, sugere-se a incidência percentual de 50% do valor total do acordado, e se fixe a alíquota de incidente, tanto para a contribuição previdenciária, quanto para o imposto de renda, também com critério próprio para a hipótese.
É oportuno deixar claro que se opta por estabelecimento de percentual do valor total, porque em todo e qualquer acordo, por fundar-se em obrigação anterior e vencida, há quantum indenizatório, sem dúvida, mas há também, e sempre, quantum remuneratório, pelo que este último será sempre tributável, e deve sê-lo porque se as obrigações houvessem sido cumpridas no tempo próprio, tributação haveria.
Talvez, a solução escolhida pelo legislador neste particular haja sido feita no calor da hora, e, rememorando Eduardo Coulture, vê-se o tempo vingando-se do que é feito sem a sua ajuda.
Referência bibliográfica
____ Código Tributário Nacional, 1964.
ARAÚJO Falcão, Amílcar de. Fato Gerador da Obrigação Tributária, ed. Noesis, SP, 2003;
HARADA, Kiyoshi. Lançamento Tributário, Teoria e Prática. Ed. Foco, SP, 2019;
MACHADO, Hugo Brito. Curso de Direito Tributário, ed. Malheiros, 2015;
[1] Fato Gerador da Obrigação Tributária, ed. Noesis, SP, 2003, pp.2-3
[2] Lançamento Tributário, Teoria e Prática. Ed. Foco, SP, 2019, p.2
[3] Curso de Direito Tributário, ed. Malheiros, 2015, p.183
* Pós-Doutorado em Direito Público, Universidade de Salamanca, Espanha; Pós-Doutorado em Direito Social, Universidade Nacional de Córdoba, Argentina; Livre Docente em Direito Financeiro, USP. Doutor em Direito do Estado, USP; Doutor em Direito das Relações Sociais, PUC/SP. Professor Titular da Faculdade de São Paulo – FADISP. Membro da Academia Paulista de Letras Jurídicas e da Academia Paulista de Magistrados. Sócio Efetivo e Membro do Conselho Superior de Orientação do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário. Juiz do Trabalho em São Paulo.