“Se bem ouvi, alguém terá afirmado, em audiência parlamentar, que pelo simples facto de não haver na lei sanções para a recusa de notas e moedas com curso legal em pagamento de bens de consumo, quem assim proceda não comete qualquer ilegalidade, antes se tem por legal uma tal conduta.

Não há aqui uma contradição nos termos?”

Cumpre opinar:

  1. “A partir de 1 de Janeiro de 2002, o BCE e os bancos centrais dos Estados-membros participantes porão em circulação notas expressas em euros: essas notas… serão as únicas notas com curso legal em todos esses Estados-membros” (Regulamento n.º 974/98: art.º 10.º)

 

  1. “Quando exista uma obrigação de pagamento, o curso legal das notas e moedas em euros deve implicar:
  1. Aceitação obrigatória: O credor de uma obrigação de pagamento não pode recusar notas e moedas em euros a menos que as partes tenham acordado entre si outros meios de pagamento (Recomendação 2010/191/UE, de 22 de Março, da Comissão Europeia: n.º 2).

 

  1. A aceitação de notas e moedas em euros como meio de pagamento deve ser a regra nas transacções no comércio retalhista: só deve ser possível uma recusa quando fundamentada em razões ligadas ao «princípio de boa-fé» (Idem: n.º 3).

 

  1. Há, porém, no plano interno, restrições legais ao pagamento em numerário

“ … transacções de montante igual ou superior a 3.000 €; o limite ascende a 10 000 € no caso de estrangeiros, que não sejam nem empresários nem comerciantes.” Lei n.º 92/2017: art.º 2.º)

    1. “Tais restrições não se aplicam às entidades financeiras que recebem depósitos, prestem serviços de pagamento, emitam moeda electrónica ou realizem operações de câmbio manual: e não se aplicam ainda aos pagamentos correntes." (Lei n.º 92/2017: art.º 2.º)

 

  1. Eis as directrizes emanadas do Banco Central Europeu:

 

    1. Os comerciantes não podem recusar pagamentos em numerário, a menos que as partes [os próprios e os consumidores] tenham acordado entre si a adopção de outros meios de pagamento.
    2. A afixação de etiquetas ou cartazes a indicar que o comerciante recusa pagamentos em numerário, ou pagamentos em certas denominações de notas, não é por si só suficiente nem vinculante para os consumidores.
    3. Para que colha, terá o comerciante de invocar fundadamente uma razão legítima para o efeito às entidades que superintendam nos sistemas de pagamento.
    4. Entidades públicas que prestem serviços essenciais aos cidadãos não poderão aplicar restrições ou recusar em absoluto pagamentos em numerário sem razão válida, devidamente fundada e sancionada por quem de direito…

 

  1. A violação destas regras não tem, porém, entre nós uma qualquer sanção directa: trata-se de normas imperfeitas, não assistidas de coercibilidade. O que não quer significar que por tal facto a ilegalidade se converta em legalidade.

 

  1. «De uma tal recusa decorrem, porém, consequências no quadro da relação contratual entre partes; nos termos do Código Civil, o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está adstrito, podendo inclusive o credor incorrer em mora, quando, sem motivo justificado, recusar a prestação oferecida»…

 

  1. Para que o sistema se aperfeiçoe, curial será que à recusa na aceitação de notas e moedas, como meio de pagamento, corresponda uma sanção, proporcional, adequada e dissuasiva.

 

  1. A omissão legislativa terá de ser suprida pelo legislador, já que dura entre nós desde que o euro entrou em circulação como moeda com curso legal em 2002.

 

EM CONCLUSÃO

 

    1. A circunstância de um qualquer estabelecimento mercantil se recusar a receber notas e moedas com curso legal em pagamento de um qualquer bem constitui ilegalidade não assistida de sanção.

 

    1. Exceptuam-se obviamente as hipóteses previstas na lei: o limite admissível dos montantes, o acordo entre partes, as recusas legitimamente fundadas.

 

    1. O facto de não haver uma sanção prevista no caso não convalida uma ilegalidade em acto legal.

 

    1. Para que o sistema se aperfeiçoe (para que a lei se torne perfeita) curial será que à recusa na aceitação de notas e moedas, como meio de pagamento, corresponda uma sanção, proporcional, adequada e dissuasiva.

 

Este é, salvo melhor juízo, o nosso parecer.

 

Mário Frota

presidente emérito da apDC – DIREITO DO CONSUMO, Portugal