Por Adilson Abreu Dallari **.
Se for correto o entendimento predominante na doutrina, no sentido de que não há como controlar abusos de poder cometidos pelo STF, há um equívoco no texto do caput do art. 5º da Constituição, ao dizer que todos são iguais perante a lei. O correto seria dizer que quase todos são iguais perante a lei, pois 11 brasileiros são totalmente diferentes dos demais.
Neste texto, volto ao que já escrevi neste mesmo espaço em 07/05/20 (“Supremo não é sinônimo de absoluto”) do qual transcrevo fragmentos. Supremo, conforme registram os dicionários, é o que está acima de todos, num determinado grupo. O Supremo Tribunal Federal é apenas um órgão do Poder Judiciário, que está acima dos demais órgãos desse mesmo Poder. Supremo é o órgão, o colegiado, não seus integrantes individualmente. Estes são apenas ministros, tais como os outros ministros, integrantes dos tribunais superiores. Em síntese, o Poder Judiciário é apenas um dos poderes da República; não é superior (nem muito menos supremo) com relação aos demais.
O artigo 2º da Constituição afirma que o Legislativo, o Executivo e o Judiciário são poderes independentes e harmônicos. Cada um deles tem funções próprias e específicas, que são estabelecidas no Título IV — Da Organização dos Poderes, a partir do artigo 44 até o artigo 75. Já é cediço que a separação (ou especificação) dos poderes da República serve exatamente para evitar excessos, para delimitar atribuições e, fundamentalmente, para que qualquer um dos poderes não invada a área de atribuições constitucionalmente reservada a outro poder.
Não há dúvida de que eventuais abusos cometidos pelo Legislativo ou pelo Executivo podem ser corrigidos pelo Judiciário: em última análise, pelo STF. Mas o grande problema surge quando se trata de ilicitudes, abusos e arbitrariedades cometidas no âmbito do judiciário. O foco deste artigo está no controle externo do poder judiciário, mas vale registrar que no âmbito interno desse poder também existem dificuldades, não só, mas muito especialmente, quanto a desmandos cometidos por ministros do STF. Em entrevista concedida ao jornal O Estado de S.Paulo, de 08/06/20 (“Cada vez que Bolsonaro abre a boca, dá um tiro no pé”), disse o desembargador Walter Maierovitch: “Existe um mecanismo de punição, que pode levar até ao impeachment, mas há nele uma falha. O falecido jurista Márcio Thomaz Bastos vendeu a ideia de que haveria um órgão, um Conselho Nacional de Justiça, que seria o disciplinador de condutas inadequadas. Mas o CNJ foi colocado, na Constituição, abaixo do Supremo. Se está abaixo, o Supremo entendeu que este conselho não tem qualquer poder perante seus ministros. Quem o preside é o presidente do STF. Ele acabou não sendo um órgão de controle externo, da sociedade sobre o poder. A maioria de seus conselheiros é de magistrados, e assim ele se tornou um conselho corporativo”.
Nessa mesma linha, mas com maior ênfase, em vídeo que corre pela internet, falando sobre a operação “lava jato”, disse a ministra Eliana Calmon: “Eu já estive conversando com os integrantes da força-tarefa, o que eles dizem é o seguinte: os próprios advogados dos colaboradores não querem que os seus clientes falem sobre juízes. Porque falam sobre juízes, os juízes ficam e o advogado se inutiliza, porque o juiz nunca mais perdoa. E existe o espírito de corpo”. Em resumo, disse ela que não há denúncia, e sem denúncia é muito difícil punir juiz. E complementa: “Sabe o que os meus colegas do CNJ diziam? É inconstitucional investigar juiz”. No caso dos advogados, é até compreensível esse temor reverencial, mas, nos últimos dias, esses limites foram largamente ultrapassados, com a assinatura de “informes publicitários” e manifestos em defesa do STF.
Todos eles em termos vagos, sem dizer quem estaria ameaçando e, principalmente, quais eram as tais supostas ameaças. Obviamente, não se trata de ameaças físicas, mas não há como saber nem mesmo de que espécie seriam tais ameaças. De todo modo, no mínimo, é despropositado proteger quem já é superprotegido e verdadeiramente intangível.
Essa intangibilidade é apenas de fato; não jurídica, conforme reconhece, expressamente, um dos supostos ameaçados: “O postulado da separação de poderes, no entanto, ainda que traduza uma clara limitação material ao poder de investigação parlamentar do Congresso, não pode ser invocado para excluir a possibilidade de responsabilização penal ou disciplinar dos magistrados faltosos.” (STF, ministro Celso de Mello, no Habeas Corpus 79441-6 – DF de 15/09/1999). Nem se cogita de qualquer forma de controle ou ingerência por parte do poder executivo no judiciário.
Por exclusão, é possível chegar ao entendimento de que a suposta ameaça (insisto muito no “suposta”) estaria no artigo 142 da CF, que se transcreve: “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República, e destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Negritamos para destacar o essencial. O que estaria sendo garantido? Quais poderes? De quem? Quem poderia ameaçar algum dos poderes? Como se sabe, a lei não tem palavras inúteis e, muitíssimo menos, se pode negar qualquer sentido aos termos da Constituição. Todas essas indagações apontam para uma só direção: a defesa da integridade de um dos poderes contra a invasão perpetrada por qualquer dos outros poderes.
Ressalte-se o caráter excepcionalíssimo dessa garantia. Normalmente, abusos cometidos pelo Legislativo ou pelo Executivo podem ser corrigidos pelo Judiciário. Mas, e se este poder se omitir? E se este poder, o Judiciário, for o invasor? Como disse Rui Barbosa: “A pior ditadura é a ditadura do Poder Judiciário. Contra ela, não há a quem recorrer”. A doutrina tradicional, num eloquente silêncio, se conforma em que não há o que fazer. Paciência! Haveria uma lacuna, insuscetível de ser preenchida, no sistema jurídico brasileiro. Sem dúvida é uma posição bastante cômoda, especialmente para quem milita na advocacia, mas que não pode ser aceita pela doutrina. Cabe a esta buscar a solução, mediante um exame mais aprofundado do texto constitucional, o que deveras já foi feito por um dos mais respeitáveis juristas brasileiros, o professor Ives Gandra da Silva Martins. *
Em diversos vídeos que correm pelas redes sociais, Ives Gandra deixa claro que o artigo 142 pode ser aplicado se o STF desobedecer, confrontar ou conflitar com os mandamentos constitucionais, destacando que as Forças Armadas nunca podem descumprir a CF; sua atuação não seria para romper a ordem, mas, sim, para recompor a ordem constitucional. Confira-se com o que foi publicado pela Gazeta do Povo: “Ives Gandra da Silva Martins acompanhou muito de perto os trabalhos da Constituinte, próximo ao relator Bernardo Cabral. Em diversas e recentes manifestações, Gandra Martins assegura a intenção normativa e a finalidade político-institucional do artigo 142 de prever uma intervenção pontual das Forças Armadas, uma espécie desidratada de poder moderador, para garantir os poderes da República e também a lei e a ordem, sempre que convocadas por esses mesmos poderes e nos estritos limites do chamamento”.
Nesse mesmo sentido, mas numa análise mais detalhada, em texto publicado no informativo Migalhas de 08/06/20 (Quem tem medo do artigo 142 da Constituição? ), Amauri Ferres Saad pondera que, no texto constitucional vigente, “o povo é a fonte do poder que a constituição disciplina e não se pode admitir que um dos poderes possa atuar fora dos limites que lhe são traçados”. Examinando, cuidadosamente, textos produzidos durante os trabalhos da Constituinte, demonstra que havia uma preocupação muito grande no sentido de buscar meios para evitar a repetição de revoluções, crises institucionais, e repetidas alterações constitucionais de ocasião, o que lhe permite afirmar que “O primeiro aspecto a ser levado em conta na compreensão da intervenção prevista pelo artigo 142 é a sua natureza de mecanismo constitucional de superação de crises. Dito de outra forma: o equilíbrio entre poderes na atual constituição leva em consideração necessariamente o conteúdo do art. 142 e não pode ser compreendido sem ele”.
Ressalta o jovem jurista que não há um desequilíbrio em favor do executivo, pois a proteção prevista no artigo 142 está disponível para todos os poderes, e completa: “Quando se analisa a dinâmica do seu funcionamento, resta inevitável a conclusão de que a intervenção das forças armadas prevista no artigo 142 faz parte do equilíbrio institucional desejado pelo constituinte de 1988”. Ou seja: ambos os juristas concordam em que o artigo 142 deve ser aplicado para recompor o equilíbrio entre os poderes.
A polêmica atual sobre a interpretação e aplicação do artigo 142 foi deflagrada pelo Inquérito 4.781 (ADPF 572) instaurado pelo presidente do STF, por meio da Portaria GP 69, com base no artigo 43, do Regimento Interno: “Art. 43. Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro”.
Os destaques são essenciais para mostrar que esse dispositivo foi inquestionavelmente violado. Além disso, a distribuição de quaisquer feitos, com base no princípio do juiz natural e como manda o artigo 66, “será feita por sorteio ou prevenção, mediante sistema informatizado, acionado automaticamente, em cada classe de processo”. No caso em exame, o presidente designou, arbitrariamente, um ministro de sua confiança, o ministro Alexandre de Moraes.
Tal inquérito, conhecido como das fake news, não tem objeto determinado, corre em segredo de justiça e já obrigou a respeitável Polícia Federal a cometer uma série de violências jurídicas (não físicas; os policiais são educadíssimos). Nem os advogados das vítimas dessas arbitrariedades “legais” podem ter acesso aos autos.
O STF está usurpando funções institucionais privativas do Ministério Público (Art. 129 da CF) além de violar diversos incisos do Art. 5º, da CF (que estabelece os direitos e garantias fundamentais), que se transcrevem: LIII — ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente; LIV — ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes; LVI — são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”.
A instauração desse inquérito é manifestamente desprovida de fundamento e claramente inconstitucional. Para piorar, conforme consta de parecer emitido pelo consagrado professor René Ariel Dotti, emitido por solicitação do Colégio de Presidentes do Instituto dos Advogados do Brasil, e amplamente divulgado pela internet, ao juiz-investigador, escolhido pelo presidente do STF, foram conferidos amplos poderes para: decretar o segredo das averiguações, ordenar medidas cautelares de restrição à liberdade, determinar o sigilo dos autos, autorizar buscas e apreensões domiciliares e pessoais, permitir a interceptação de comunicações telefônicas, valer-se de meios para obtenção de prova relativos às hipóteses de organização criminosa etc..
Em síntese, não há como, numa perspectiva estritamente jurídica e absolutamente fiel ao texto da Constituição, negar que o STF está desbordando de suas atribuições, invadindo a esfera de competência de outros poderes. No momento em que este artigo está sendo escrito o STF está decidindo sobre a validade, ou não, da Portaria GP 69, que instaurou o malsinado inquérito 4781. Não se pode antecipar o resultado. Embora o relator ministro Edson Fachin seja digno de confiança, há um enorme risco de que o corporativismo do colegiado supere a apreciação estritamente jurídica, dado o interesse direto dos ministros Dias Toffoli e Alexandre de Moraes.
Uma última e importante consideração: não se pode confundir a instituição Supremo Tribunal Federal com os atuais ocupantes de seus cargos; ela é permanente e eles são temporários. Não é possível deixar de considerar que a quase totalidade dos ministros foi nomeada por uma determinada corrente política agora em extinção. O atual presidente do STF é praticamente um representante de quem o nomeou (e que está fora da prisão graças ao voto desse presidente). Mas, no corrente ano, haverá troca de presidente e aposentadoria de um ministro, abrindo-se a perspectiva de que o STF venha a recuperar sua antiga dignidade, seu prestígio e o respeito da coletividade.
SP, 11 de junho de 2020.
* Texto publicado na Revista Consultor Jurídico, 11 de junho de 2020, 8h00
** Adilson Abreu Dallari é professor titular de Direito Administrativo da PUC-SP e consultor jurídico.