“Estamos em negociações com um dos condóminos de um prédio em propriedade horizontal para a celebração de um contrato de arrendamento para habitação.
Sucede que o meu marido tem uma cadelinha que é essencial para o seu equilíbrio emocional, algo que a psicóloga que o assiste já atestou.
O proprietário compreende a situação e está disposto a celebrar o contrato, mas hesita porque há uma disposição no regulamento das partes comuns que proíbe a existência nas fracções autónomas de quaisquer animais de estimação.
O contrato estará condenado ao fracasso?”
Apreciada a factualidade, cumpre responder:
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Com efeito, quem possa dar de arrendamento (proprietário, comproprietário, usufrutuário…) é livre de estipular no contrato as cláusulas que lhe aprouverem, no âmbito do seu poder de disposição. Ponto é que não firam disposições legais de carácter imperativo: serão lícitas regras que proíbam a existência nos fogos de animais domésticos?
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O Decreto-Lei n.º 314/2003, de 17 de Dezembro estabelece, no n.º 2 do seu artigo 3.º:
“Nos prédios urbanos podem ser alojados até três cães ou quatro gatos adultos por cada fogo, não podendo no total ser excedido o número de quatro animais, excepto se, a pedido do detentor, e mediante parecer vinculativo do médico veterinário municipal e do delegado de saúde, for autorizado alojamento até ao máximo de seis animais adultos, desde que se verifiquem todos os requisitos hígio-sanitários e de bem-estar animal legalmente exigidos.”
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E, no seu n.º 3:
“No caso de fracções autónomas em regime de propriedade horizontal, o regulamento do condomínio pode estabelecer um limite de animais inferior ao previsto no número anterior.”
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Parece, com efeito, de harmonia com o que precede, que o regulamento não pode proibir, mas limitar: é um entendimento possível, mas os regulamentos vêm proibindo e afirma-se que tal se acha nopoder de disposição dos condóminos. Importante o elemento literal, mas não único, bem entendido, numa qualquer interpretação.
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No entanto, sem prejuízo, circunstâncias haverá, ponderadas em concreto pelo proprietário da fracção ou pelos tribunais, susceptíveis de constituir excepção às normas constantes dos regulamentos de condomínio com proibições do estilo.
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Há, na doutrina, um interessante e bem fundamentado estudo de Sandra Passinhas (“Os animais e o regime português da propriedade horizontal”, ‘in’ Revista da Ordem dos Advogados 66 (2006), pp.833-873) que entende que há que ponderar, em concreto, a relevância de um animal de companhia para o estado emocional, biopsíquico do seu detentor, como indissociável ou elemento integrador da sua personalidade ou completude, situação em que se ultrapassaria a proibição constante de um qualquer contrato ou regulamento.
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Além do mais, em 2019, se aditou ao Código Civil, o artigo 1067-A cujo n.º 1 reza: “ninguém pode ser discriminado no acesso ao arrendamento em razão de sexo, ascendência ou origem étnica, língua, território de origem, nacionalidade, religião, crença, convicções políticas ou ideológicas, género, orientação sexual, idade ou deficiência.”
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Um acórdão da Relação do Porto de 21 de Novembro de 2016 (relator: Manuel Domingos Fernandes) considera, numa dada factualidade, que
“V - Os animais … estão ligados à auto-construção da personalidade, razão pela qual … o juiz tem de atender ao valor pessoalmente constitutivo que o animal possa ter para o seu dono.
VI - … não deve o arrendatário, pese embora a existência de cláusula contratual proibitiva, ser compelido à retirada de um canídeo do locado quando se prove que… reveste importância no seio da família e no bom desenvolvimento de um filho que tem perturbações de ansiedade, devendo, nestes casos, a referida cláusula considerar-se não escrita.”
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Na circunstância, ponderados os factos, somos de parecer que a regra constante do regulamento do condomínio deve ceder e concretizar-se o arrendamento, permitindo-se que a cadelinha que constitui factor de equilíbrio emocional do cônjuge, quiçá algo que o complete, possa acompanhar o aspirante a arrendatário na fracção objecto de locação.
Tal é, salvo melhor, juízo o nosso parecer.
Mário Frota
presidente emérito daapDC – Direito do Consumo - Portugal