A reforma tributária, já objeto de referência neste mesmo espaço[1], acrescentou mais uma preocupação para os 5.568 municípios brasileiros – ou pelo menos para a esmagadora maioria deles. A forte centralização da competência tributária e da arrecadação das receitas públicas no governo central, ponto que está bastante evidente no projeto de reforma em curso, deixará os municípios brasileiros ainda mais dependentes do que já são das transferências de recursos, reduzindo perigosamente sua autonomia financeira e aumentando o temor de que não disponham de receitas suficientes para cobrir as despesas obrigatórias e cumprir com suas funções constitucionais.
O Brasil é uma Federação, cláusula pétrea que vem já no caput do primeiro artigo da Constituição, e composta, além da União, pelos estados, Distrito Federal e também pelos municípios. A autonomia financeira dos municípios integra a essência de nossa organização federativa, e tem como um de seus pilares a garantia de recursos que sejam suficientes para suas despesas e obtidos de forma independente dos demais entes da Federação.
As principais fontes de receita que lhes asseguram essa autonomia são as competências tributárias próprias e as transferências constitucionais de natureza obrigatória. No entanto, o que se tem observado cada vez mais é ver essas fontes próprias e desvinculadas serem totalmente consumidas pelas despesas de custeio, notadamente os gastos com pessoal, ficando os investimentos dependentes de transferências voluntárias de outros entes da federação, especialmente a União.
Com isso, a necessária autonomia financeira dos municípios vai sendo mitigada, a ponto de sequer existir em boa parte deles. Os prefeitos vivem com o “pires na mão” circulando pelos ministérios do Planalto Central em busca de recursos sem os quais não conseguem fazer avançar suas políticas públicas[2]. E com isso os pilares do federalismo tornam-se por demais frágeis, o que é inadmissível, por ser um dos fundamentos estruturantes de nosso Estado.
Para que se tenha uma noção aproximada desse quadro, dados de 2021 mostram que “[o]s Municípios de menor porte demográfico são dependentes de receitas de transferências [constitucionais, legais e voluntárias]. A participação supera os 80% para os grupos com população até 50 mil habitantes (84,93% dos Municípios do país) e supera os 70% para os grupos com população até 100 mil habitantes, ou seja, para 91,09% do total de Municípios”[3].
Nos últimos anos, em razão do período de pandemia, esse sistema só não ruiu por completo em função da criação de várias formas de transferências intergovernamentais que foram mais do que suficientes para suprir as reduções na arrecadação, e deram um grande fôlego financeiro para os Municípios brasileiros, como foi o caso do auxílio financeiro instituído pela LC 173/2020 (que criou o Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus), o apoio financeiro previsto na Lei 14.041/2020, o aumento no repasse do FPM (Emenda Constitucional 112/2021), entre outras medidas.
Vê-se que a margem de ajustes nas finanças municipais é tão pequena, que o último censo demográfico realizado em 2022, ao recalcular as populações, identificou redução de habitantes em alguns municípios. Isso levou ao recálculo da cota que lhes era destinada no Fundo de Participação dos Municípios (FPM), uma de suas principais fontes de receita.
E uma pequena redução na transferência dos recursos do fundo, que é apenas uma das fontes de receita dos municípios, mostrou-se suficientemente grave para inviabilizá-los financeiramente, o que resultou na Lei Complementar 198, de 28 de junho de 2023, prevendo que “[a] partir de 1º de janeiro do ano subsequente à publicação da contagem populacional do censo demográfico, realizado pelo IBGE, ficam mantidos os coeficientes do FPM atribuídos no ano anterior aos Municípios que apresentarem redução de seus coeficientes pela aplicação do disposto no caput do art. 1º desta Lei Complementar”. Uma lei feita sob encomenda para esses casos, para impedir essa redução dos repasses, evidenciando que, por menor que seja a redução das receitas, elas não conseguem ser suportadas e são suficientes para inviabilizar financeiramente esses municípios.
Os pedidos de “socorro” são constantes e permanentes, como se viu recentemente, com a pressão dos municípios por recursos federais: “Metade dos municípios tem contas no vermelho, e prefeitos pressionam por ajuda da União”, noticiou a Folha de S.Paulo em 20 de agosto de 2023, trazendo a informação de que, nesse primeiro semestre, 2.362 cidades gastaram mais do que arrecadaram, multiplicando por sete o número registrado no mesmo período do ano anterior (342)[4].
Com poucas perspectivas de redução nos gastos, dado o “engessamento” das despesas, muitas delas obrigatórias e com vinculações pré-determinadas, os prefeitos ficam com pouca ou nenhuma alternativa, dependendo cada vez mais das transferências intergovernamentais, especialmente as voluntárias, por vezes sujeitas a critérios discricionários e nem sempre transparentes, criando dependências políticas indesejáveis para um federalismo republicano.
Há que se reconhecer alguma parcela de responsabilidade dos municípios por essa situação, uma vez que poucos esforços são realizados por um aumento na eficiência e modernização da gestão pública, o que permitiria alcançar melhores resultados com os mesmos recursos, ou até menos[5].
Falta de vontade política também integra as explicações para esse quadro pouco animador. Reportagem recente do Estadão constata que, mesmo recebendo mais recursos, como ocorreu nos últimos anos, a desigualdade se manteve. Registra que em 2020 as transferências de recursos federais para os municípios atingiram o recorde de R$ 322 bilhões, representando um crescimento de 50% em uma década.
No entanto, não se vê melhoras significativas, citando o exemplo da cidade de Jaraguá (GO), que recebeu proporcionalmente muito mais recursos do que a capital Goiânia, tendo sido a maior parte dos recursos destinadas a pagamento de despesas com pessoal, e uma parcela menor voltada a investimentos e custeio de escolas e hospitais. Enquanto isso, a cidade continua com apenas 15,6% da população de esgoto tratado e 3,5% das ruas com asfalto, evidenciando que os recursos não são adequadamente aplicados[6].
Situação que não difere significativamente em outros municípios semelhantes. O que se constatou é que boa parte dos novos recursos que ingressam não são destinados a investir em equipamentos públicos como escolas e hospitais, mas em contratar mais gente, como reconheceu o prefeito de Araguainha (MT), admitindo que encontrou a prefeitura superlotada de funcionários, o que cresceu muito no último ano, consumindo todos os recursos e não deixando sobrar nada para as demais necessidades[7].
O que se tem, segundo o economista Maílson da Nóbrega, é “um orçamento para lá de ruim”, cujas despesas obrigatórias consomem 99% do total, enquanto no resto do mundo giram em torno de 50%[8]. Expansão dos gastos, falta de planejamento e rigidez orçamentária excessiva em nada colaboram para a solução dos problemas orçamentários e fiscais, que tendem a se agravar se não houver mudança de rumos.
E, nessa linha, vê-se que o cenário não se mostra animador.
O novo arcabouço fiscal recém-aprovado (Lei Complementar 200, de 30 de agosto de 2023), que trouxe novas regras para disciplinar os gastos públicos, em substituição ao anterior regime de “teto de gastos”, pouco toca nessas questões fundamentais para reverter esse quadro, flexibilizando as possibilidades de gastos e apostando em aumento na arrecadação, sem exigências rígidas para melhorar a qualidade do gasto público[9].
E a reforma tributária em curso tem como principal característica a concentração do poder financeiro na União, reduzindo ainda mais a autonomia financeira dos estados e municípios, o que tende a agravar ainda mais a dependência das transferências intergovernamentais. A extinção do IPI, que compõe a arrecadação do Fundo de Participação dos Municípios, e a extinção do ISS, que se fundirá ao ICMS para se transformar no Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), entre outras alterações, geram incertezas sobre a nova arrecadação que caberá a cada município, que, como já se constatou, contam os centavos para pagar suas despesas obrigatórias. Sem que, novamente, sejam atacados problemas fundamentais, como o excesso de despesas públicas e a falta de qualidade do gasto[10].
O cenário para as finanças municipais não se mostra promissor, e não se vislumbram soluções para atenuar o desespero que tem tomado conta dos prefeitos recentemente. É preciso corrigir os rumos enquanto há tempo. A demora pode tornar os danos irreversíveis.
JOSÉ MAURICIO CONTI – Professor de Direito Financeiro da Faculdade de Direito da USP. Mestre, doutor e livre-docente em Direito Financeiro pela USP.
[1] CONTI, José Mauricio. O voo cego da reforma fiscal. Coluna Fiscal Jota, 20.7.2023 (https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-fiscal/o-voo-cego-da-reforma-fiscal-20072023)
[2] A questão é antiga, como se pode ver em meu texto Transferências tributárias geral desequilíbrio federativo (In CONTI, José Mauricio. Levando o Direito Financeiro a sério. 3ª ed. São Paulo: Blucher, 2019, p. 19-22 – https://www.blucher.com.br/levando-o-direito-financeiro-a-serio_9788580394023)
[3] BREMAEKER, François. As finanças municipais em 2021. Observatório de Informações Municipais. Maricá (RJ), julho de 2022, p. 13.
[4] Metade dos Municípios em contas no vermelho, e prefeitos pressionam por ajuda da União. Folha de S. Paulo, 20.8.2023 (https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2023/08/metade-dos-municipios-tem-contas-no-vermelho-e-prefeitos-pressionam-por-ajuda-da-uniao.shtml).
[5] CONTI, José Mauricio. Não falta dinheiro à administração pública, falta gestão. (In CONTI, José Mauricio. Levando o Direito Financeiro a sério. 3ª ed. São Paulo: Blucher, 2019, p. 255-258 – https://www.blucher.com.br/levando-o-direito-financeiro-a-serio_9788580394023)
[6] Municípios recebem cada vez mais dinheiro, e desigualdade no Brasil se mantém. Estadão, 17.9.2023 (https://www.estadao.com.br/politica/municipios-recebem-cada-vez-mais-dinheiro-e-desigualdade-no-brasil-se-mantem/)..
[7] Prefeitos gastam todo o dinheiro contratando pessoal e deixam cidades sem escola e hospital. Estadão, 24.9..2023 (https://www.estadao.com.br/politica/prefeitos-gastam-todo-o-dinheiro-contratando-pessoal-e-deixam-cidades-sem-escola-e-hospital/).
[8] Um orçamento pra lá de ruim. Veja, 22.9.2023 (https://veja.abril.com.br/coluna/mailson-da-nobrega/um-orcamento-para-la-de-ruim).
[9] CONTI, José Mauricio. Novo ‘arcabouço’ e expectativas que não seja ‘calabouço’ da gestão fiscal responsável. Coluna Fiscal Jota, 4.5.2020 (https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-fiscal/novo-arcabouco-e-expectativas-que-nao-seja-calabouco-da-gestao-fiscal-responsavel-04052023).
[10] CONTI, José Mauricio. O voo cego da reforma fiscal. Coluna Fiscal Jota, 4.5.2020 (https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-fiscal/o-voo-cego-da-reforma-fiscal-20072023).