Por Adilson Abreu Dallari*
A Resolução nº 23.606/19 do Tribunal Superior Eleitoral estabelece o calendário para as eleições municipais de 4 de outubro de 2020. Não é o caso de se examinar tudo, bastando lembrar que o dia 4 de abril é a data limite para definição do domicílio eleitoral e da filiação partidária, bem como para a desincompatibilização de governadores e prefeitos que queiram concorrer a outros cargos. Daí para diante, há uma série de obrigações, impedimentos e providências necessárias para o normal desenvolvimento do pleito.
O grande problema, sequer imaginado pelo TSE, é o advento da pandemia designada como COVID-!9, ou coronavírus, perturbando totalmente a vida normal de cidadãos comuns, políticos, autoridades e partidos políticos, e, ainda, da própria Justiça Eleitoral. Neste momento é preciso pensar num problema decorrente da necessidade de afastamento social e da recomendação básica para que todos fiquem em casa, pois o processo eleitoral não dispensa reuniões, manifestações e outras formas de comportamento contrárias ao isolamento havido como necessário ao combate dessa pandemia.
Por mais que se pretenda ignorar o problema, cada vez mais parece irremediável a necessidade de postergar as eleições; seja pelo simples adiamento, seja por sua supressão. A matéria é realmente polêmica. Em qualquer seminário em que se examinem questões inerentes ao sistema político, eleitoral e partidário, é impossível haver unanimidade, salvo quanto à imprestabilidade do quadro vigente. Todos acham que é preciso mudar, mas divergem quanto às possíveis soluções.
A Constituição Federal, ao dispor sobre os Direitos Políticos, no Art. 14, diz que “a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos”. Já tivemos oportunidade de examinar esse dispositivo em artigo publicado: “Numa leitura descuidada, que não ultrapasse os limites da literalidade, essa parte final poderia significar, apenas e tão-somente, uma proibição ao voto de qualidade. Mas, na verdade, aí está dito muito mais: está afirmado o princípio da igualdade entre os eleitores, que determina, entre outras coisas, a igualdade de informação eleitoral, a igualdade de acesso aos locais de votação, a proteção contra influências do poder econômico e também do poder político.”(ADILSON ABREU DALLARI, “Abuso de Poder Político”, in Direito Eleitoral, coordenadores: Carlos Mário da Silva Velloso e Cármen Lúcia Antunes Rocha, Editora Del Rey, Belo Horizonte, 1996, p.240.
Salta aos olhos que, no presente momento, não há igualdade entre os eleitores, pois diferentes pessoas serão diferentemente afetadas pela pandemia, com enormes consequências para o desenvolvimento de atividades políticas. Os partidos políticos não terão funcionamento regular, sendo importante, agora, enfocar o papel atual dos partidos políticos, para, ao final, enfocar a relevância da periodicidade das eleições.
Partido político é uma entidade com sede constitucional, prevista para desempenhar uma determinada função, necessariamente ligada à representação do povo (titular do poder político), como instrumento da democracia. Essa vocação constitucional é incompatível com os desvios que na prática se observam, conforme comenta o Eminente Ministro Carlos Velloso: “A democracia representativa realiza-se através dos partidos políticos. Estes devem refletir, pelos seus programas, o pensamento de setores da sociedade, devem conter um ideário, de modo que as pessoas possam escolher os seus candidatos a partir da discussão de ideias e de temas de governo e não em razão do carisma ou de discursos individuais, que refletem, em última análise, pensamentos afastados da realidade partidária, quase sempre demagógicos e inviáveis.” CARLOS MÁRIO DA SILVA VELLOSO, “A Reforma Eleitoral e os Rumos da Democracia no Brasil”, in Direito Eleitoral, coordenadores: Carlos Mário da Silva Velloso e Cármen Lúcia Antunes Rocha, Editora Del Rey, Belo Horizonte, 1996, p.17.
Há uma distância abissal entre o que deveria ser um partido político e a realidade existente. A CF, no Art. 17 afirma a liberdade de criação de partidos políticos, que, entretanto, não é ilimitada, pois está sujeita à observância de alguns preceitos, dentre os quais, para os fins deste estudo, se destaca o inciso I, - “caráter nacional”. A periodicidade das eleições tem tudo a ver com essa exigência. A realidade mostra que a cada dois anos, os partidos se acomodam aos interesses daquela específica eleição, formando um cenário totalmente heterogêneo, completamente contrário ao que se deve entender como “caráter nacional”. Neste corrente ano de 2020 essa desordem política ficará mais acentuada.
A descoincidência das eleições, no plano nacional e regional e no plano local, milita em favor da incoerência, do absurdo e da falsificação da representatividade política. No estágio atual, a cada dois anos é possível um rearranjo no quadro eleitoral e partidário, com a celebração de novas coligações, precedidas de negociações nada republicanas. Por outro lado, a coincidência geral das eleições, na medida em que dificulta tais negociações, acaba por desestimular a criação de legendas de aluguel e milita em favor de uma representatividade mais autêntica, ou, no mínimo, menos falsa. Pelo menos, não será possível ser aliado no plano local e adversário no plano nacional, e vice-versa.
Desde longa data defendemos a unificação de todas as eleições. Seja permitido simplesmente transcrever o que já publicamos em favor dessa tese: “Em termos práticos, não é possível ignorar que eleições custam muito dinheiro, tanto para os partidos políticos quanto para os cofres públicos e, em última análise, para os cidadãos. Além disso, conturbam a regularidade da atuação administrativa, pela instabilidade dos quadros dirigentes, que precisam se amoldar às mutações do ambiente partidário. Com a coincidência geral das eleições esses problemas não são eliminados, mas, sem dúvida, são reduzidos. Outro importantíssimo efeito reflexo da redução da periodicidade é viabilizar a formulação e execução de políticas públicas de Estado. Com muita frequência, a racionalidade e o dever de boa administração demandam a adoção de medidas impopulares, cujos bons efeitos somente aparecerão a médio ou longo prazo. Com a periodicidade estreita das eleições é usual que os governos substituam aquilo que deveria ser feito, por algo politicamente mais rentável, embora danoso ao interesse público. Não é incomum que o governo atenda a interesses corporativos, com vistas a possíveis vantagens eleitorais. Com o distanciamento maior entre os pleitos, é possível que medidas necessárias, mas impopulares, sejam adotadas, ao mesmo tempo em que também é possível reduzir o contubérnio entre governos e corporações” (ADILSON ABREU DALLARI, “Periodicidade das eleições e representatividade”, in Direito Eleitoral, Estudos em homenagem ao Desembargador Mathias Coltro, coord. Luiz Guilherme da Costa Wagner Jr. e Petrônio Calmon, Ed. Gazeta Jurídica, 2014, p. 11)
O distanciamento maior entre as eleições, conjugado com sua unificação, pode reduzir o vergonhoso nível de corrupção, a deslavada demagogia e a falta de representatividade, que caracterizam o ambiente político administrativo em todos os níveis. Além de proporcionar economia na corrupção lícita (viabilizada por meio de emendas parlamentares e de bancada, e dos fundos partidário e eleitoral), diminui a corrupção paralela (os acordos espúrios) e contribui para o saneamento do pútrido quadro partidário.
O momento atual é de incertezas quanto ao desenvolvimento do processo eleitoral, mas talvez seja a melhor oportunidade para uma depuração partidária e para dar autenticidade à representação popular. É simplesmente impossível reduzir o número de partidos por meio de alterações na legislação, pois quem pode não quer. No momento atual, o simples adiamento das eleições para dezembro não vai eliminar as incertezas e inseguranças decorrentes dos desdobramentos incertos da pandemia. A prorrogação dos mandatos, com vistas à unificação das eleições em 2022, não terá resistência dos atuais mandatários (muito pelo contrário) e proporcionará tempo suficiente para um ajuste a essa nova ordem.
A miríade de arranjos de conveniência, de feudos e de balcões de negócios que integram a grande maioria dos chamados partidos políticos (que agora resolveram adotar denominações de fantasia, já que desprovidos de conteúdo político ideológico), certamente será reduzida, pois a quase totalidade não tem expressão nacional. A necessidade de aglutinação (para garantir a sobrevivência) certamente proporcionará um saneamento, em favor da autêntica representatividade, que até hoje não existe.
SP, 2-4-2020.
* Adilson Abreu Dallari é Professor Titular de Direito Administrativo pela PUC-SP e consultor jurídico.