Por Eduardo Marcial Ferreira Jardim*.
O presente artigo tem por objeto uma análise da reunião ministerial realizada no dia 22 de abril deste ano, a qual, diga-se de passo, deu margem a uma série de repercussões de natureza política e jurídica.
Verdade seja, consoante será visto, o evento foi permeado por pronunciamentos incisivos e, por vezes, desrespeitosos, bem como, não raro, pontilhado por uma linguagem informal e destituída da solenidade tradicional que circunda as situações desse jaez.
A propósito, o Estado de S. Paulo, do dia 23 de maio deste ano, estampou na página A1 um conjunto de manifestações ocorridas ao ensejo da referida reunião ministerial, as quais encontram-se abaixo reproduzidas, senão vejamos:
“22 de abril, reunião ministerial.
País tinha 2.906 mortes por covid-19 até aquele dia
- O Estado de S. Paulo
- 23 May 2020
- /AMANDA PUPO, JUSSARA SOARES, RAFAEL MORAES MOURA, FAUSTO MACEDO, PEPITA ORTEGA, PAULO ROBERTO NETTO, JULIA LINDNER, BIANCA GOMES
Jair Bolsonaro (presidente da República): “Eu não vou esperar foder a minha família toda, de sacanagem, ou amigos meu (sic), porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha que pertence à estrutura nossa. Vai trocar! Se não puder trocar, troca o chefe dele!
Não pode trocar o chefe dele? Troca o ministro!” ▪ “Como é fácil impor uma ditadura no Brasil. O povo tá dentro de casa. Por isso que eu quero que o povo se arme! (...) Por que que eu tô armando o povo? Porque eu não quero uma ditadura!” ▪ “Sistemas de informações, o meu funciona. O meu particular funciona. Os que têm oficialmente desinforma (sic)” ▪ “O dia que for proibido de ir... pra qualquer lugar do Brasil, pelo Supremo, acabou o mandato (...) Eu não vou meter o rabo no meio das pernas.” ▪ “Os caras querem é a nossa hemorroida! É a nossa liberdade! O que esses caras fizeram com o vírus, esse bosta desse governador de São Paulo, esse estrume do Rio de Janeiro, entre outros, é exatamente isso” ▪ “Se for a esquerda (que ganhar a próxima eleição), eu e uma porrada de vocês aqui têm que sair do Brasil, porque vão ser presos.” ▪ Abraham Weintraub (ministro da Educação):
“Eu, por mim, botava esses vagabundos todos na cadeia. Começando no STF” ▪ “Odeio o termo ‘povos indígenas’, odeio esse termo, odeio” ▪ Paulo Guedes (ministro da Economia): “A gente aceita, politicamente a gente aceita. Vamos fazer todo o discurso da desigualdade, vamos gastar mais, precisamos eleger o presidente. Mas o presidente tem que pensar daqui a três anos. Não é daqui a um ano não” ▪ “A China é aquele cara que cê sabe que cê tem que aguentar, porque pro cês terem uma ideia, pra cada um dólar que o Brasil exporta pros Estados Unidos, exporta três pra China.”
▪ Damares Alves (ministra dos Direitos Humanos): “A pandemia vai passar, mas governadores e prefeitos responderão a processos e nós vamos pedir inclusive a prisão de governadores e prefeitos” ▪ Ricardo Salles (ministro do Meio Ambiente): “Enquanto estamos neste momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só fala de covid, é ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas. De Iphan, de Ministério da Agricultura, de Ministério de Meio Ambiente”.
O vídeo da reunião no Palácio do Planalto, divulgado por decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Celso de Mello, é considerado uma peça-chave nas investigações que apuram as acusações, feitas pelo ex-juiz Sérgio Moro, de que o presidente Jair Bolsonaro tentou interferir na Polícia Federal. Entre ameaças, ofensas e palavrões, as imagens mostram o chefe do Executivo cobrando mudanças no governo e fazendo pressão sobre Moro e os demais auxiliares.
Na reunião, ocorrida no mês passado, Bolsonaro afirmou que já havia tentado trocar “gente da segurança nossa no Rio de Janeiro”, e que não teria conseguido. “E isso acabou. Eu não vou esperar foder a minha família toda, de sacanagem, ou amigos meu, porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha que pertence à estrutura nossa. Vai trocar! Se não puder trocar, troca o chefe dele! Não pode trocar o chefe dele? Troca o ministro! E ponto final! Não estamos aqui pra brincadeira”, disse o presidente da República.
Bolsonaro alega que se referia à sua segurança pessoal, que é feita pelo Gabinete de Segurança Institucional (GSI), e não pela PF. De acordo com a transcrição feita pela PF, o ministro do GSI, Augusto Heleno, não fez nenhuma intervenção nesse momento. Reportagem do Jornal Nacional, veiculada na semana passada, mostrou que o presidente fez alterações – e até promoveu servidores – em sua segurança pessoal semanas antes da reunião sem dificuldade.
Moro, por sua vez, afirma que a reunião seria uma prova da tentativa de Bolsonaro de interferir no órgão. O ex-ministro também entregou aos investigadores troca de mensagens no celular.
Ao levantar o sigilo do vídeo, Celso de Mello não fez juízo de valor sobre esse trecho da reunião. O ministro, por outro lado, apontou “aparente prática criminosa” na fala do ministro da Educação, Abraham Weintraub, que disse que “botava esses vagabundos todos na cadeia. Começando no STF”.
De acordo com a transcrição, Moro falou pouco no encontro, não questionou as declarações do presidente e limitou-se a pedir que o plano de recuperação social e econômica Pró-Brasil também abordasse questões de segurança pública e de controle de corrupção.
Durante a reunião com o primeiro escalão do governo, Bolsonaro reclamou que não pode ser “surpreendido com notícias”. “Pô, eu tenho a PF que não me dá informações”, reclamou o presidente na ocasião.
No encontro, o presidente afirmou que não esperaria o “barco começar a afundar pra tirar água” e que, portanto, iria interferir em todos os ministérios. “A pessoa tem de entender. Se não quer entender, paciência, pô! E eu tenho o poder e vou interferir em todos os ministérios, sem exceção”, disse Bolsonaro. “E não dá pra trabalhar assim. Fica difícil. Por isso, vou interferir! E ponto final, pô! Não é ameaça, não é uma extrapolação da minha parte. É uma verdade”, completou o presidente, olhando para o lado onde estava Moro.
Próximos passos. Com a divulgação do vídeo, a investigação vai se concentrar agora em novos depoimentos que serão recolhidos na semana que vem. O empresário Paulo Marinho prestará depoimento na terça-feira, às 9 horas, no Rio de Janeiro. O empresário acusa o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) de ter recebido informações vazadas da Operação Furna da Onça. Ele já depôs à PF e ao Ministério Público Federal, mas no âmbito de outra investigação.
Bolsonaro deverá ser o último a prestar depoimento no processo e, por ser presidente da República, pode enviar as respostas por escrito. Caberá ao procurador-geral da República, Augusto Aras, decidir se vai apresentar ou não uma denúncia contra o chefe do Executivo. O STF precisa de aval da Câmara para analisar uma eventual denúncia contra o presidente.”
Como se vê, os excertos trazidos à colação confirmam a presença de uma linguagem imprópria para uma reunião ministerial, bem como revelam palavras ofensivas e outros descompassos ocorridos na aludida sessão.
Preliminarmente, cabe obtemperar que as reflexões ora expostas traduzem o ponto de vista do autor ao lume da Ciência do Direito, sem qualquer animus de cunho pessoal ou ideológico ou partidário e muito menos de confrontação com quaisquer dos Poderes, especialmente o Pretório Excelso.
Destarte, força é esclarecer, desde logo, que o autor do presente artigo não compartilha com nada do que foi dito, mas obtempera que, em sua percepção, a reunião ministerial é protegida pelo direito à liberdade de pensamento, bem assim de expressão, desde que manifestada no âmbito da intimidade, nos termos proclamados no art, 5º, incisos IV, IX e X, do Texto Supremo, assim averbado:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; [...]
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
Primeiramente, convém ponderar que a liberdade de pensamento é obviamente indevassável, ao passo que a sua concreção por meio da expressão compreende uma considerável latitude, mas comporta sutis disciplinamentos.
Entrementes, as liberdades supratranscritas estão a salvo de quaisquer limitações quando exercidas em caráter reservado ou privativo ao do caso versado. A bem ver, a intimidade, foi bem definida por Pedro Nunes em seu Vocabulário Jurídico, que assim predicou: “Direito à Intimidade. É a proteção do indivíduo contra a interferência do Estado e da sociedade em sua vida privada.”[1].
Consoante a concepção de Pedro Nunes, a intimidade hospeda um aspecto multidimensional na proporção em que não só o Estado, mas também a sociedade não pode invadir um dado núcleo qualificado como hermético e impenetrável, convindo ressaltar que se trata de valor constitucionalizado como direito e garantia fundamental e, por isso, dotado de petreidade, donde, antolha-se imodificável até mesmo por Emenda à Constituição.
Por oportuno, merece lembrada, também, a lição de Celso Bastos ao comentar o direito à intimidade inserto no art. 5º, inciso X, da Constituição Federal, que, num excerto a seguir transcrito, coube por bem atremar:
É curial, portanto que estas pessoas que profissionalmente estão ligadas ao público, a exemplo dos políticos, não possam reclamar um direito de imagem com a mesma extensão daquele conferido aos particulares não comprometidos com a publicidade. Isto não quer dizer que estas pessoas estejam sujeitas a ser filmadas ou fotografadas sem o seu consentimento em lugares não-públicos, portanto privados, e flagradas em situações não as mais adequadas para o seu aparecimento[2]
Outrossim, as manifestações suscitadas naquela assembleia ensejaram uma torrente de pronunciamentos plenos de indignação e de repúdio, notadamente com referência a um linguajar por vezes obsceno e também de menoscabo institucional.
Impende assinalar, desde logo, que no tocante ao mérito o presente ensaio faz coro com a remansosa irresignação provinda de múltiplos segmentos da sociedade.
Entrementes, se é verdade que o vídeo da reunião mostra uma linguagem descomposta e um claro desrespeito ao Pretório Excelso, não menos verdade e, também, que o aludido colóquio, mercê de sua natureza, desfruta da liberdade de expressão porquanto fora pronunciado em ambiente intimidade e privacidade de plenitude, motivo pelo qual as vicissitudes apontadas deveriam ser desconsideradas.
Sim, por mais censurável que seja o que foi falado, é de mister considerar que não vivemos a ficção do clássico 1984, de George Orwell[3], no qual o Ministério do Pensamento vigiava os meandros mais profundos da intimidade das pessoas que podiam ser até punidas, caso acusadas de pensarem algo qualificado como proibido naquele Estado.
Nem se diga, sob pretexto da transparência, que o Palácio do Planalto não tenha o direito de realizar reuniões, seminários e encontros para discutir assuntos de Estado, os quais, se transformados em políticas públicas, daí, sim, ganharão a devida publicidade.
Obviamente, há uma inegável esfera de trato íntimo nos recintos dos três Poderes, sob pena de comprometimento de seus desígnios institucionais, o que justifica a necessidade de respeito a um mínimo de privacidade que precede a publicidade de atos de quaisquer das funções estatais, tanto a administrativa, quanto a legislativa, bem assim a judicial.
Ressalta à evidência, por exemplo, que a divulgação prévia de uma reunião ministerial restaria totalmente comprometida em seus objetivos se houvesse a divulgação de estratégias a serem estabelecidas no combate ao crime organizado ou diretrizes voltadas a debelar o desmatamento ilegal ou a elaboração de uma medida provisória sobre matéria tributária majorando um determinado imposto.
Outrossim, imaginemos, se o chamado confisco de ativos financeiros do Plano Collor se tornasse público e fosse filmado antes de sua divulgação formal, o que seria? Apesar do absurdo do Plano, per se, é claro que a sua revelação prévia o tornaria totalmente ineficaz, pois haveria uma corrida aos bancos. O asserto mostra que o processo legislativo também desfruta de um estágio de intimidade que precede a sua concretização, sob pena de cometimento de um rematado dislate ou um sin sentido, como diria Genaro Carrió[4].
Não seria diferente no âmbito do Poder Judiciário, no qual a transparência se configura na TV Justiça, o que representa um significativo avanço nas relações do Judiciário com a sociedade.
Por outro lado, contudo, remanesce uma faixa de exclusiva privacidade que circunda a intimidade dos magistrados, seja em suas conversas informais com seus pares, seja no debate sobre um dado temas, sejam dúvidas acerca de temas polêmicos, enfim, todos os meandros do interior do palco de qualquer Corte haverão de desfrutar de total proteção, na dimensão em que existe uma fronteira inexpugnável que separa o público do privado.
Em estreita síntese, resta evidente que a transparência e a publicidade não se contrapõem à existência de uma esfera de intimidade e privacidade que precede o exercício das funções do Estado, a qual, diga-se, à vol d’oiseau, ao contrário de infirmá-la, antes a aprimora.
Por conseguinte, uma vez admitido o direito à intimidade e à privacidade da questionada reunião ministerial, força é depreender que, por pior que possa parecer, tudo o que foi falado merece ser desconsiderado.
Verativamente, a questionada intimidade afigura-se imprescindível como requisito de viabilidade da eficácia dos atos a serem produzidos, os quais somente podem ser conhecidos mediante a devida publicação no Diário Oficial ou ainda por meio de pronunciamento formal a ser efetuado pelo agente político competente.
Não demasia dizer que tudo o que lá ocorrera não teria o condão de transcender o espaço físico e interior daquele espaço, o que, a bem ver, seria melhor para o direito, para a política e para a sociedade.
Por derradeiro, reafirmo discordar de tudo quanto foi dito, mas respeito o direito de dizê-lo ou pensá-lo, sobretudo numa esfera de intimidade, ad exemplum do caso vertente, fazendo-o inspirado na frase “Eu discordo do que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo” da lavra da escritora inglesa Evelyn Beatrice Hall que sob o pseudônimo de Stephen G. Tallentyre resumiria o pensamento de Voltaire na biografia The Friends of Voltaire, de 1906, como afirma o livro They Never Said It: A Book of Fake Quotes, Misquotes, and Misleading Attributions.
* Mestre e Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Professor no Mestrado e Doutorado na Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Membro da Academia Paulista de Letras Jurídicas, Cadeira nº 62. Membro fundador do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário. Sócio de Eduardo Jardim e Advogados Associados. Autor de obras jurídicas pelas Editoras Noeses, Saraiva e Mackenzie.
[1]28. ed., atualizada por Nagic Slaibi Filho e Gláucia Carvalho, Rio de Janeiro: Gen/Forense, 2010, p. 770.
[2]InComentários à Constituição do Brasil, v. 2. São `Paulo: Saraiva, 1989, p. 62.
[3]Editora Companhia das Letras.
[4]Derecho Y Lenguaje. 1. ed. Buenos Aires, 1976.