Por Kiyoshi Harada*.
O chamado orçamento de guerra não é um orçamento paralelo, como sugere a denominação dada pela linguagem popular.
Trata-se de um regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações aprovado pela Emenda Constitucional nº 106 de 7-6-2020, para combater a calamidade pública decorrente da pandemia. Portanto, é um regime válido apenas até o dia 31-12-2020, prazo de vigência da calamidade pública reconhecida pela legislação vigente.
A Emenda suspende temporariamente a chamada cláusula de ouro das finanças públicas prevista no inciso III, do art. 167 da CF, podendo, agora, realizar operações de crédito em montante superior às despesas de capital fixada no orçamento em curso. Pode, inclusive, efetuar operações de crédito para saldar os juros da dívida pública.
Suspendeu-se também o § 3º do art. 195 da CF que proíbe o ente político devedor do INSS de contratar com o poder público, bem como de receber benefícios fiscais e creditícios.
Igualmente suspendeu-se o § 1º, do art. 169 da CF que exige uma série de requisitos para a concessão de vantagens ou aumentos de vencimentos, a criação de cargos, empregos e funções.
Esse regime excepcional permite, ainda, no âmbito da União a adoção de processos simplificados de contratação de pessoal temporário para atender as necessidades públicas emergenciais, bem como, para a contratação de obras e serviços, assim como compras de bens.
Essa Emenda prevê a adoção de critérios objetivos devidamente publicados para a União distribuir os equipamentos e insumos de saúde imprescindíveis ao enfrentamento da calamidade pública, o que sinaliza a centralização da compra de equipamentos médico-hospitalares ela União.
Ficam, outrossim, temporariamente, dispensadas as observâncias de limitações legais quanto à criação, à expansão ou ao aperfeiçoamento de ação governamental que acarrete aumento de despesas e à concessão ou à ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de despesas.
As medidas previstas na Emenda sob comento implicam a flexibilização das normas da LRF, da Lei nº 4.320/64 e da Lei de Licitações.
Não há mais necessidade de alcançar as metas fiscais, os limites do superávit primário e nominal previstos na Lei de Diretrizes Orçamentárias. Aliás, esses limites não vêm sendo observados desde o governo Dilma. Os limites de despesas de pessoal, também, ficaram prejudicados. A abertura de crédito extraordinário pode ser feita mediante utilização de verbas de quaisquer dotações, não ficando limitadas as suas fontes de custeio à arrecadação de tributos de natureza temporária, como empréstimo compulsório, por exemplo, o que na prática, já vinha acontecendo de longa data, confundindo-se crédito especial para prover despesas não previstas na lei orçamentária com despesas extraordinárias que são aquelas imprevisíveis.
O pior é que esse orçamento de guerra vem sendo aplicado nos âmbitos estadual e municipal, ensejando crescimento dos atos de improbidade administrativa na modalidade de desvio de finalidade. Alguns governadores usaram os recursos financeiros transferidos pela União, para promover aumento de vencimentos de seus servidores, estourando o limite de despesas de pessoal, enquanto os trabalhadores do setor privado estão sofrendo redução salarial, suspensão do contrato de trabalho e perda de emprego que já atinge a casa de 850 mil trabalhadores, desde que começou a pandemia. E, também, houve um aumento significativo dos atos de corrupção com o superfaturamento do preço da execução de obras emergenciais e de importação de equipamentos médico-hospitalares. Parece inacreditável que possa haver indivíduos desprovidos do menor senso ético-moral e de pudor, que estão tirando proveito da situação dramática da sofrida população brasileira.
Tradicionalmente, as normas orçamentárias que já não vinham sendo cumpridas a contento, com essa Emenda que permite o endividamento ilimitado, aliado à suspensão dos mecanismos de controle e fiscalização da execução orçamentária, haverá uma verdadeira farra com o dinheiro público e o nosso endividamento poderá chegar brevemente a 90% do PIB, tornando difícil a recuperação das finanças públicas no futuro.
Por derradeiro, esse regime emergencial de flexibilização das normas constitucionais e legais voltadas para os aspectos financeiros, fiscais e administrativos veio à luz para atingir o objetivo imediato de preservar a saúde da população, minimizando ao máximo os óbitos decorrentes da pandemia, e, em segundo lugar, para propiciar a retomada do crescimento econômico no pós pandemia, preservando-se ao máximo a força de trabalho.
Contudo, no nosso entender, a retomada do crescimento econômico, a partir do próximo ano, somente poderá ocorrer se a reforma administrativa for aprovada ainda neste ano. Sem reduzir o tamanho do Estado não há como obter recursos para as despesas de capital, notadamente, as de investimentos, bem como, os recursos para socorrer financeiramente os setores mais atingidos pela pandemia. Aliás, tirante o setor agrícola todos os demais setores da atividade econômica foram afetados pelo isolamento social decorrente da Covid-19.
É preciso que o governo desengavete a PEC da reforma Administrativa, onde estão previstos, dente outras coisas, a redução das despesas com a folha que atualmente consome de 50% a 60% da receita corrente líquida; o aumento do estágio probatório de 2 para três anos, além de reservar os cargos efetivos apenas aos exercentes das funções de Estado, deixando o grosso do funcionalismo no regime celetista; a supressão dos Municípios incapazes de se manterem com os recursos próprios.
Ao contrário da avaliação do governo, entendo que o momento é propício à discussão de reforma que reduz as despesas do Estado neste momento em que toda a população está experimentando perda de capacidade econômica. Qualquer medida de austeridade do governo neste momento receberá apoio da população vitimada pela desgraça da Covid-19.
Os parlamentares, tradicionalmente contrários à diminuição do tamanho do Estado, devem superar essa cultura, que tanto nos atrasa, e fazer um esforço patriótico neste momento tão difícil da vida nacional, e aprovar com urgência a reforma administrativa, peça essencial à retomada do crescimento econômico, sob pena de acentuar ainda mais a linha divisória que separa os ricos dos pobres.
SP, 12-6-2020.
* jurista, professor e presidente do IBEDAFT