Mário Frota*
EDP – a da energia
Já vende cartões-saúde
E para subir a fasquia
Já só falta o do… ataúde!*
(*"Ataúde", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa: “caixa comprida, destinada a conter o corpo do defunto que vai ser enterrado ou cremado. = Caixão, Féretro, Tumba, Urna.”)
Uma consumidora, que entretanto se nos dirigiu, diz-nos haver ligado para a EDP a fim de tratar de questões relacionadas com o seu contrato de energia.
Na passagem do telefonema, de mão em mão, interpôs-se alguém a propor-lhe um “contrato de saúde”.
Perplexa, esboçou um trémulo sim, ainda atordoada pela surpresa. E o facto é que, dias depois, recebeu uns papéis para assinar. Não os assinou, já que seu pai adoecera, entretanto, e, em meio a tamanhas aflições, a coisa caiu em olvido.
Ligou, entretanto, para a empresa, tempos depois, a dizer que desistiria do contrato porque as suas condições económicas se haviam alterado.
Do outro lado do fio, uma voz firme nas suas “razões”: que não, que os 14 dias em que poderia ter desistido já se haviam escoado e que , por conseguinte, só lhe restaria pagar a anuidade do contrato.
E massacram-na agora, insistentemente, com um inusitado assédio, a dizer–lhe que terá de pagar, sob pena de o fazer em tribunal.
…
Há, com efeito, soluções distintas no que se prende com os contratos celebrados pelo telefone: se por impulso do consumidor, uma, se por iniciativa do fornecedor, outra.
O telefonema, nestas circunstâncias, tem de ser assacado à empresa, como se a iniciativa lhe pertencesse: a consumidora, interpelada – num acto de patente descortesia e franca deslealdade –, a meio da chamada, para coisa inteiramente diversa da do contacto, não provocou a abordagem de que fora alvo.
Cabendo a iniciativa à empresa (como no caso), a consumidora só ficaria, em princípio, obrigada depois de assinar a oferta ou de remeter o seu consentimento por escrito.
E o facto é que nem assinou os papéis nem deu o seu consentimento por escrito.
E ainda que tivesse dado o seu consentimento, depois da celebração de um contrato não presencial (à distância, por telefone), ainda disporia de 14 (catorze) dias consecutivos para se retractar, ou seja, para dar o dito por não dito; gozaria, pois, nesse lapso de tempo, do direito de desistência .
A lei dá-lhe todo esse tempo para ponderar, para reflectir, para decidir se o contrato lhe convém ou não, para ajuizar, pois, da conveniência em o celebrar ou não.
Mas para tanto é necessário que do clausulado do contrato [que tem de ser presente ao consumidor por meio de qualquer suporte duradouro: designadamente o papel, a chave Universal Serial Bus (USB), o CompactDiscRead-OnlyMemory (CD-ROM), o Digital VersatileDisc (DVD), os cartões de memória ou o disco rígido do computador] conste o tal direito de desistência ou de retractação.
Se de todo não constar(a referência ao direito de “dar o dito por não dito”), passa o consumidor a dispor, não de 14 dias, mas de 12 meses para o efeito: 12 meses que acrescem aos 14 dias. Sem quaisquer consequências para si. E como forma de penalizar a empresa que não observou as obrigações decorrentes da lei.
Se a iniciativa do telefonema tivesse, no entanto, pertencido expressamente ao consumidor (em face do seu eventual interesse em contratar um seguro de saúde ou um plano de saúde de cujas “vantagens” ouvira falar), o contrato considerar-se-ia, em princípio, celebrado.
Mas o fornecedor teria de o confirmar em 5 (cinco) dias mediante a remessa do clausulado do contrato (em termos análogos ao que se afirmou), sob pena de nulidade por violação de normas legais de carácter imperativo.
E o consumidor disporia, à mesma, dos 14 dias para exercer o seu direito de desistência ou de retractação, como se asseverou.
Ante a exigência da anuidade (do prémio, do preço), indevida no caso, e o assédio a que se acha exposta, poderá recorrer ao tribunal arbitral de conflitos de consumo a fim de lograr obter uma decisão de que nada deve nesta circunstância e a reclamar uma indemnização pelos danos morais de que vem padecendo.
Se o assédio persistir, poderá apresentar uma participação-crime ao Ministério Público com base no artigo 154-A do Código Penal.
* Presidente emérito da apDC – DIREITO DO CONSUMO - Portugal