Por Kiyoshi Harada e Francisco Pedro Jucá.* 

Para se ter uma ideia da suprema importância do Direito Financeiro, basta a simples visão dos quatro objetos desse ramo científico do direito: a receita pública, a despesa pública, o orçamento público e o crédito público estudados sob o prisma jurídico.

Seu objeto material é, portanto, o mesmo da Ciência das Finanças, que estuda a atividade financeira do Estado que se desdobra nos quatro objetos retromencionados, porém, sob o prisma teórico-especulativo.

No início da década de 60, a Velha Academia do Largo de São Francisco mantinha em sua grade a cadeira de Ciência das Finanças. Ao depois, com a convolação daquela tradicional instituição de ensino superior em Faculdade de Direito, a aludida cadeira foi substituída pelo Direito Financeiro.

A receita pública representa uma fonte regular e permanente de obtenção de recursos financeiros indispensáveis ao cumprimento das finalidades do Estado que, em última análise, resume-se na realização do bem comum.

Esses recursos são obtidos por meio de tributos arrecadados sob a égide do princípio da legalidade (art. 150, I da CF), sem prejuízo da aplicação de outros princípios expressos ou implícitos na Constituição. Embora a Carta Magna não o diga expressamente, está implícito o dever de todos pagarem impostos, à medida que todos têm direito à fruição de serviços públicos essenciais. Direitos e obrigações são noções inseparáveis.

Os diferentes fins do Estado são satisfeitos pelo regime da despesa pública, igualmente, submetido ao princípio da legalidade. Ao direito do cidadão de aquiescer previamente na arrecadação de impostos seguiu-se o direito desse mesmo cidadão de direcionar o emprego dos recursos arrecadados. Daí o princípio de fixação de despesas (art. 167, VII da CF). Nada pode ser gasto sem prévia autorização legislativa e nos estritos limites dessa autorização.

O orçamento público é o ato pelo qual o Poder Legislativo estima as receitas, de um lado, e fixa as despesas, d outro lado, autorizando o Poder Executivo, por determinado período, normalmente anual, efetuar as despesas necessárias ao funcionamento do aparelhamento estatal, de conformidade com a política governamental previamente formulada. O orçamento deve sempre refletir o plano de ação do governo para o exercício a que se destina, prevendo a arrecadação de tributos previstos em lei e direcionando o emprego desses recursos arrecadados em benefício da população como um todo, de acordo com a vontade popular espelhada na ação de seus representantes que votam a aprovam a Lei Orçamentária Anual. Ao aprovar o orçamento, as despesas estarão aprovadas em bloco.

E para que essa vontade da população seja fielmente cumprida, a Constituição dotou de três mecanismos de controle e fiscalização da execução orçamentária: o controle privado ou social (art. 74, § 2º da CF) e o controle externo e o controle interno (art. 70 da CF).

O mecanismo mais efetivo é o controle externo exercido pelo Congresso Nacional com o auxílio do Tribunal de Contas (art. 71 da CF). É oportuno lembrar que, conforme se depreende dos incisos II, III, V, VI, VIII, IX, X e XI, do art. 71, o Tribunal de Contas, a par de sua função de auxiliar do Poder Legislativo, recebeu diretamente da Constituição função administrativa contenciosa autônoma. Não é, pois, um órgão subordinado ao Legislativo.

O crédito público, tradicionalmente, se constituiu na segunda fonte regular de abastecimento dos cofres públicos.

Apesar dos princípios constitucionais orçamentários nem sempre, aliás, quase sempre, não é possível manter o equilíbrio das contas públicas. Nem mesmo a Lei de Responsabilidade Fiscal conseguiu atingir o desejo de equilibrar a receita/despesa.

É que o poder público, ao contrário do setor privado, onde os gastos são planejados de conformidade com a receita disponível, não pode deixar de atender as necessidades públicas mais prementes, limitando as despesas ao montante arrecadado. O equilíbrio orçamentário não é um fim em si mesmo, porém, um instrumento para assegurar a todos o bem-estar social. Há momentos em que o Estado precisa lançar mão de crédito público, quer para construção de uma infraestrutura com vistas ao aumento futuro da capacidade produtiva do País, quer para fazer face às despesas imprevistas, como as que estamos vivenciando, motivadas pela eclosão da pandemia.

Com as despesas extraordinárias, de um lado, e a redução da capacidade arrecadatória do Estado, de outro lado, não restou outra alternativa, senão a de acentuar o limite de endividamento do País, que já beira a 90% do PIB.

Tudo isso que, em rápidas pinceladas, resumimos até aqui são objetos de estudos pelo Direito Financeiro. É preciso que conscientize a população em geral e os operadores do direito em especial quanto à extrema importância do Direito Financeiro, a refletir na qualidade de vida dos integrantes de nossa sociedade.

De nada adianta aprovar leis tributárias, acentuando cada vez mais a elevação de tributos a cargo da população em geral, se os recursos arrecadados à dura pena não forem direcionados para o cumprimento das finalidades do Estado que possam ser traduzidas em termos de bem-estar social.

É preciso estimular a população no exercício do controle privado da execução orçamentária, bem como para exigir a atuação diligente, eficaz e tempestiva dos órgãos incumbidos do controle e fiscalização da execução orçamentária, buscando o estancamento da quantidade fantástica de recursos públicos que desaparecem nos ralos da corrupção institucionalizada. Detectar o estrago, depois de feito, não é a solução. Nem em tempo de pandemia, em que o povo inteiro está sofrendo por falta de atendimento médico-hospitalar adequado, aqueles malfeitores do dinheiro público, incrustados no aparelho do Estado, interromperam suas ações nefastas, subtraindo preciosos recursos financeiros que faltam à população em geral.

O Direito Financeiro, por representar uma camisa de força contra os agentes públicos em geral, especialmente, contra os governantes das três esferas políticas, não tem sido visto com simpatia por esses agentes, que nunca perdem oportunidade para buscar a flexibilização das normas de natureza orçamentária, quando não fazem o pior, isto é, simplesmente passam por cima dessas normas. É também não é muito conhecido pelos operadores do direito em geral. Perde de longe para o Direito Tributário que se ocupa apenas de uma parte de um dos objetos do Direito Financeiro, ou seja, a receita pública derivada.

Geralmente, as normas orçamentárias são atropeladas diuturnamente por todos os governantes ao longo da história, sem que nada aconteça. A abertura de créditos extraordinários, por exemplo, com a anulação parcial das dotações para custeio de despesas correntes ao arrepio do art. 167, § 3º da CF e do art. 41, inciso III da Lei nº 4.320/64, já se incorporou na rotina dos governantes. É o direito consuetudinário prevalecendo sobre o direito legislado. Só quando presente o quadro de ingovernabilidade é que se lembram do impeachment, sacando do bolso do colete uma ou outra norma orçamentária descumprida, a legitimar a abertura do processo por crime de responsabilidade (art. 85, VI da CF).

Precisamos valorizar e fortalecer o Direito Financeiro, pressionando as autoridades públicas, a fim de tornar obrigatória a disciplina de Direito Financeiro em todas as Faculdades de Direito.

Por tais razões subscrevemos na íntegra, a oportuna Carta de Curitiba que segue abaixo transcrita:

 

CARTA DE CURITIBA

 

Por ocasião do IV CONGRESSO INTERNACIONAL DE DIREITO FINANCEIRO, as instituições que o promovem: SOCIEDADE BRASILEIRA DE DIREITO FINANCEIRO, SOCIEDADE PAULISTA DE DIREITO FINANCEIRO, ACADEMIA SUL-MATO-GROSSENSE DE DIREITO PÚBLICO, ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS JURÍDICAS, bem como as entidades apoiadoras, realizadoras e patrocinadoras, e, os Congressistas participantes do evento que tem como tema central “Dívida e Déficit Público”,

CONSIDERANDO que pelo quinto ano consecutivo, especialistas brasileiros e estrangeiros, acadêmicos, autoridades e estudiosos brasileiros e estrangeiros vêm se reunindo em Congresso para discutir e examinar os temas mais importantes e fundamentais do Direito Financeiro; desta feita em Curitiba, vanguardeira na defesa da submissão de todos ao Direito e à Ordem Jurídica;

CONSIDERANDO a importância fundamental do Direito Financeiro no Estado de Direito brasileiro, especialmente patenteado na sua constitucionalização, como consta da Constituição Brasileira, nos artes. 70-75 da Constituição Federal que tratam da Fiscalização Contábil, Financeira e Orçamentária; artes. 157-162, que tratam da Repartição das Receitas; arts. 163-164, tratando das Finanças Públicas – Normas Gerais e arts. 169-169 tratando dos Orçamentos;

CONSIDERANDO que as Finanças Públicas são exercício de poder político e, como tal, emoldurados constitucionalmente para controle e fiscalização de sua atuação, em acatamento às bases fundantes do Estado de Direito e da Democracia;

CONSIDERANDO que o regramento jurídico das Finanças Públicas e sua observância, além de Pilar da Democracia e do Estado de Direito, é ferramenta indispensável para a busca da concretização do bem comum da sociedade, para a preservação da ética e moralidade na ação pública e em seus serviços, e instrumento útil para prevenir e combater desvios ilícitos de conduta, como a corrupção;

CONSIDERANDO a necessidade social de Governo correto e submetido ao império do Direito, e que a observância das normas de Direito Financeiro contribui decisivamente para o equilíbrio das contas públicas e, em consequência, para a capacidade de o Estado de prestar serviços públicos de qualidade, investir no que é necessário, atender melhor as demandas e necessidades da sociedade, tais como educação, saúde, segurança pública e infraestrutura, o que se reforça com a disposição contida nos arts. 20 a 27 da Lei 4.657 de 04 de setembro de 1942, com as alterações introduzidas pela Lei nº 12.655/2018 (LINDB);

CONSIDERANDO a necessidade de se consolidar a consciência social de Cidadania Fiscal, que significa a compreensão da importância das Finanças Públicas e seu controle para o bem-estar;

CONSIDERANDO os relevantes e fundamentais serviços que a evolução do Direito Tributário vem prestando à sociedade, a cidadania e ao bem geral, formando a consciência sobre as receitas do Estado; esperando-se que, correspondentemente, aconteça o mesmo em relação ao Direito Financeiro, para que se forme a consciência das Despesas do Estado e, sobretudo, da qualidade delas;

CONSIDERANDO que é compromisso de fundo da comunidade acadêmico-científica, como a que dá ensejo a este evento e nos reúne aqui, contribuir para o aperfeiçoamento das instituições, do Estado de Direito, da Democracia, do Bem-Estar social e do desenvolvimento; e, finalmente;

CONSIDERANDO que se impõe a materialização deste propósito essencial de contribuir, fazendo-o através da difusão, conhecimento e defesa do Direito Financeiro, evidenciando-se sua utilidade para o bem comum;

 

APRESENTA ESTA MANIFESTAÇÃO, RATIFICANDO E CONFIRMANDO A CARTA DE FORTALEZA, levada a público na 4ª edição deste Congresso;

 

Dirigindo-se não apenas à Comunidade Acadêmico-Científica, mas também e principalmente à Sociedade Civil, às autoridades dos três poderes e a todos os Entes da Federação,

 

POSTULANDO E REIVINDICANDO

I – A inclusão da Disciplina DIREITO FINANCEIRO no elenco das Disciplinas Obrigatórias integrantes do Eixo de Formação Profissional da organização curricular dos CURSOS DE GRADUAÇÃO EM DIREITO;

II – A inclusão da disciplina: DIREITO FINANCEIRO no Programa de Matérias do EXAME DE ORDEM, para a habilitação dos Bacharéis como Advogados;

III – O empenho das Instituições de Ensino Jurídico, nos âmbitos de Graduação e Pós-Graduação, em formar Núcleos de Pesquisa com foco no DIREITO FINANCEIRO, produzindo maior e melhor massa crítica para contribuir mais substancialmente com evolução deste ramo do direito e, em consequência, com os interesses gerais da sociedade;

 

ENDEREÇAR esta Declaração e Manifesto

 

I – Ao Ministério de Educação e seus Órgãos competentes;

II – Ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e a todos os Conselhos secionais;

III – Aos Excelentíssimos Senhores Presidentes do Supremo Tribunal Federal, do Senado Federal e da Câmara Federal;

IV – Aos Excelentíssimos Senhores Presidentes dos Tribunais Superiores e ao Tribunal de Contas da União;

São Signatários deste documento, lido oficialmente no V CONGRESSO INTERNACIONAL DE DIREITO FINANCEIRO, todas as entidades envolvidas e todos os assistentes.

 

 

 

* Kiyoshi Harada, Presidente do IBEDAFT, e Francisco Pedro Jucá, Presidente da Sociedade Brasileira de Direito Financeiro