Por Adilson Dallari.
Logo no início de seu livro autobiográfico, "O Código da Vida", o ex-consultor-geral da República e ex-ministro da Justiça Saulo Ramos relata, com orgulho, uma façanha pessoal: descreve em detalhes como fez para ludibriar um policial rodoviário, ao ser flagrado em excesso de velocidade e falando ao celular. Esse fato serve bem de abertura para o texto que se segue, que vai cuidar do exercício do poder de polícia, tomando como referência o setor de trânsito rodoviário, em função das recentes normas sobre essa matéria. O foco está no dever legalmente imposto às autoridades competentes, para dar efetivo cumprimento às normas de polícia, em matéria de trânsito. O ponto principal está na substituição do punitivismo despropositado e inócuo, pela racionalidade, razoabilidade e conscientização de autoridades e motoristas.
Muito já se escreveu sobre o poder de polícia, sendo clássico o conceito dado por Hely Lopes Meirelles: "O poder de polícia é a faculdade discricionária que se reconhece à Administração Pública, de condicionar e restringir o uso e gozo dos bens e direitos individuais, especialmente os de propriedade, em benefício do bem-estar da coletividade”. (Direito Administrativo Brasileiro, Revista dos Tribunais, 2º edição, 1966, p. 80). A doutrina e a jurisprudência evoluíram no sentido de proceder a uma distinção entre poder de polícia, que se evidencia por meio de normas legais, e polícia administrativa, que é a atividade desenvolvida pelos órgãos da administração pública, na aplicação das normas aos casos concretos, praticando atos tanto discricionários quanto vinculados.
A concepção moderna é bem diferente: “No âmbito das transformações político-jurídicas, o poder de polícia foi redefinido como sendo a ordenação social e econômica que tem por objetivo conformar a liberdade e a propriedade, por meio de prescrições ou induções, impostas pelo Estado ou por entes não estatais, destinadas a promover o desfrute dos direitos fundamentais e o alcance de outros objetivos de interesse da coletividade, definidos pela via da deliberação democrática, de acordo com as possibilidades e os limites estabelecidos na Constituição.” (Gustavo Binenbojm, “Poder de Polícia Ordenação Regulação, Transformações Político-Jurídicas, Econômicas e Institucionais do Direito Administrativo Ordenador”, Editora Fórum, Belo Horizonte, 2016, p.329). Note-se que as limitações e imposições determinadas pelas autoridades públicas só se legitimam para conformar a liberdade e a propriedade, e para promover o desfrute de direitos fundamentais da coletividade. Toda e qualquer limitação ou restrição há de ser instrumental e devidamente motivada. Não existe poder pelo poder, como um fim em si mesmo.
Um importantíssimo passo no estudo desse tema foi dado por Celso Antônio Bandeira de Mello, (“Curso de Direito Administrativo”, Malheiros Editores, 26ª edição, 2009, pág. 72 a 80), mostrando que, exatamente por seu caráter instrumental, não cabe à autoridade competente decidir se vai, ou não vai atuar diante de fatos que exigiriam sua atuação. A polícia administrativa não é uma prerrogativa pura, é um poder-dever, ou, na sua perspicaz observação, é um dever-poder, dado que o poder só se justifica em função do dever de exercê-lo: “O princípio da obrigatoriedade do desempenho da atividade pública traduz a situação de “dever” em que se encontra a Administração — direta ou indireta — em face da lei. O interesse público, fixado por via legal, não está à disposição da vontade do administrador, sujeito à vontade deste; pelo contrário, apresenta-se para ele sob a forma de um comando. Por isso mesmo a prossecução das finalidades assinaladas, longe de ser um “problema pessoal” da Administração, impõe-se como obrigação indiscutível”.
Cabe aqui traçar um paradigma com o que acontece, atualmente no âmbito dos processos administrativos. A Lei nº 9.784, de 29/01/99, nos artigos 48, 49 e 50 trata expressa e especificamente do dever de decidir motivadamente, ou seja, explicitando as razões que justificam a decisão proferida. Tivemos oportunidade de tratar dessa questão em estudo monográfico feito em companhia do consagrado mestre Sérgio Ferraz, em trecho que passamos a transcrever: “A Administração tem o dever de decidir, e decidir explicitamente (Lei 9.784/99, artigo 48), em prazo legalmente traçado (idem, artigo 49) e motivadamente (idem, art. 50) ”. Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari, “Processo Administrativo”, 3ª. edição, 2012, Malheiros Editores, São Paulo, p. 238. Tanto no âmbito administrativo, quanto no judicial, a autoridade tem o dever de decidir em tempo razoável, nos termos do inciso LXXVII, do artigo 5º, da Constituição Federal.
Não é o caso de se alongar sobre o dever de atuar, de agir, de cumprir o dever para o qual a autoridade recebeu competência. Basta lembrar a questão das dotações orçamentárias que, antigamente, eram apenas um limite para gastos, que poderiam, ou não, ser realizados, mas que hoje são a representação numérica de projetos, programas e ações governamentais, trazendo implícito o dever de sua implementação.
Entretanto, em matéria de trânsito, principalmente nas rodovias, as experiências práticas mostram que a concepção de exercício do poder de polícia ainda é aquela antiga, de pura prerrogativa. Para demonstrar isso é necessário mencionar algumas ocorrências “normais” em rodovias. De acordo com a Lei nº 9.503, de 23/09/97, Código de Trânsito Brasileiro, Art. 29, IX, “a ultrapassagem de outro veículo em movimento deverá ser feita pela esquerda”. Isso não é mera recomendação, pois o Art. 199 tipifica como infração: “Ultrapassar pela direita, salvo quando o veículo da frente estiver colocado na faixa apropriada e der sinal de que vai entrar à esquerda”. Trata-se de infração média, punida com multa. Quem trafega pelo sistema Anhanguera-Bandeirantes, por exemplo, pode observar uma quantidade enorme de infrações, sem qualquer atitude coercitiva por parte da autoridade competente, que nem está presente no local. Se a norma existe, a autoridade tem o dever de fazer com que ela seja cumprida, pois o pressuposto da edição da norma é a segurança dos usuários da rodovia.
Só mais um exemplo ilustrativo. Estipula o artigo 61:” A velocidade máxima permitida para a via será indicada por meio de sinalização, obedecidas suas características técnicas e as condições de trânsito”. Obviamente, aí está compreendido não só o dever de sinalizar, mas de fazê-lo de acordo com as características técnicas e as condições de trânsito, que são variáveis, conforme o relevo, as retas e curvas, a proximidade de determinados locais, os horários e dias da semana. Esse mesmo artigo, em seu §1º, estipula que, em não havendo sinalização, ficam estabelecidas velocidades máximas diferenciadas, conforme se trate de vias urbanas, rodovias de pista dupla, de pista simples e nas estradas (entenda-se como estradas vicinais — uma simples faixa de tráfego), sendo que nestas a velocidade máxima é de 60 quilômetros por hora. Na prática isso tem sido entendido como uma prerrogativa de sinalizar ou não, dada a redação do §2º: “O órgão ou entidade de trânsito ou rodoviário com circunscrição sobre a via poderá regulamentar, por meio de sinalização, velocidades superiores ou inferiores àquelas estabelecidas no parágrafo anterior”. A expressão “poderá” é tomada como prerrogativa pura, e não como um dever. Na prática, o que se tem observado é a estipulação, por meio de raríssimas placas indicativas, da velocidade máxima de 60 quilômetros por hora, uniformemente para toda a rodovia, independentemente das condições da pista (retas ou curvas, aclives ou declives, existência de terceira faixa nas subidas) e das características de uso. O resultado prático é a inobservância do limite evidentemente artificial e o desenvolvimento da indústria da multa.
O que se observa, conforme descrito no parágrafo inicial, é a “legitimação” do desrespeito. Burlar a fiscalização passa a ser uma atitude digna de jactância. O usuário não se sente obrigado a observar as normas, na medida em que a autoridade competente, como regra geral, não cumpre seu dever. O artigo 74 do CNT estabelece que: “A educação para o trânsito é direito de todos e constitui dever prioritário para os componentes do Sistema Nacional de Trânsito”. Educação para o trânsito compreende a conscientização, por parte de usuários e autoridades, de que a movimentação de veículos é uma atividade essencial na vida moderna e de que o cumprimento das normas e da sinalização está ligada à segurança de todos. O foco não deve estar em punir, mas sim em evitar condutas inapropriadas, de ambas as partes. É bem exemplificativo o caso dos radares em tocaias.
Merece louvor a Resolução nº 798, de 02/09/20, do Conselho Nacional de Trânsito (Contran), que entrará em vigor no próximo dia 1º de novembro, dispondo sobre requisitos técnicos mínimos para a fiscalização de velocidade, conforme os tipos de veículos, as características da via e a espécie de aparelho medidor, restringindo bastante o uso de medidores móveis (tocaia), que não podem ser escondidos ou ter a visibilidade prejudicada por qualquer coisa que impeça a sua ostensividade. Como exemplo de uma nova postura, basta transcrever o disposto no "caput" do artigo 10: “Os locais em que houver fiscalização de excesso de velocidade por meio de medidores do tipo fixo devem ser precedidos de sinalização com placa R-19, na forma estabelecida nesta Resolução e no Manual Brasileiro de Sinalização de Trânsito - Volume I (MBST-I), de forma a garantir a segurança viária e informar aos condutores dos veículos a velocidade máxima permitida para o local”. O artigo 11 diz o ululantemente óbvio: as placas indicativas de limite de velocidade devem ser colocadas antes do radar e a uma distância razoável do ponto de aferição, para que o motorista seja devidamente alertado naquele momento e tenha tempo de reduzir a velocidade. Certamente haverá uma redução do número de infrações.
Por último, cabe mencionar a recente aprovação do Projeto de Lei do Executivo nº 3.267/2019, que altera vários dispositivos do Código de Trânsito Brasileiro, o qual recebeu emendas do Senado e da Câmara, e agora aguarda a sanção e promulgação do Presidente da República. O Projeto é bastante extenso e detalhado, visando modernizar a gestão das questões de trânsito, com maior uso da informática e com a uniformização e simplificação de procedimentos. Ele é bastante enfático no tocante aos deveres das autoridades de trânsito, na linha do que se sustenta neste artigo, podendo ser um importante instrumento de conscientização e implantação do respeito recíproco, em lugar da recíproca “esperteza” reinante.
Alguns pontos dessa nova legislação são controvertidos, como a extensão do prazo de validade da carteira de motorista e o aumento do número de pontos na carteira necessários para suspender a habilitação, os quais são considerados benevolentes para com infratores, podendo resultar no aumento do número de acidentes, segundo seus críticos. Entretanto, esses dois pontos foram plenamente justificados na exposição de motivos feita pelo Ministro Tarcísio Gomes de Freitas, ao encaminhar o projeto ao Presidente.
Quanto ao aumento do prazo de validade e da Carteira Nacional de Habilitação, pondera-se que: “Ao longo dos anos, a expectativa de vida do brasileiro teve uma expressiva elevação. De acordo com dados do IBGE a expectativa média de vida em 1997 era de 69,3 anos, subindo para 72,3 em 2006. O último levantamento realizado em 2017 demonstrou que a expectativa de vida para os homens já estava em 72,5 anos e para as mulheres, em 79,4. Tal evolução é fruto da melhoria da saúde e condições de vida do brasileiro. Em decorrência dessa constatação, faz-se necessário o ajuste da legislação, a fim de não se impor ao cidadão habilitado uma exigência que não seja imprescindível para sua capacidade de dirigir”. Pondera-se, também, mais adiante que: “Dirigir é mais do que um desejo, é uma necessidade. Muitos buscam a habilitação para poderem exercer uma profissão”.
Quanto ao aumento do número de pontos, para a perda da Carteira de Habilitação, a exposição de motivos invoca a necessidade de se observar a realidade nacional: “A atual complexidade do trânsito brasileiro cada vez mais gera a possibilidade do condutor levar uma autuação de trânsito, ainda que não tenha a intenção de cometê-la. Alcançar 20 pontos está cada dia mais comum na conjuntura brasileira. No caso dos condutores que exercem a atividade de motoristas profissionais, o problema é ainda mais grave, já que a carteira de habilitação é o seu instrumento de trabalho, sem o qual não tem condições de exercer a sua profissão”. Na disciplina agora estabelecida a tolerância com relação ao número de pontos está relacionada ao cometimento, ou não, de infrações graves, que são muito diferentes das decorrentes de simples desatenção ou inadvertência. Além disso, nos casos de infrações de maior gravidade, como dirigir em estado de embriaguez e disputar rachas, a perda da habilitação independe do número de pontos.
Em síntese, o que se pode notar é uma evolução no sentido de substituir o antagonismo pela colaboração, o punitivismo pela conscientização, a multa pela preocupação em evitar o cometimento de infrações. Em países mais adiantados a punição tem sido substituída por advertência, com excelentes resultados. Espera-se que no Brasil seja possível atingir esse estágio de civilidade.
SP, 8-10-2020.
Adilson Abreu Dallari é professor titular de Direito Administrativo pela Faculdade de Direito da PUC/SP; membro do Conselho Científico da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP); membro do Conselho Superior de Assuntos Jurídicos e Legislativos da FIESP; membro do Núcleo de Altos Temas (NAT) do SECOVI; membro do Conselho Superior de Direito da FECOMÉRCIO; membro do Conselho Consultivo da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico (ABRADADE); membro do Conselho Superior de Orientação do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário (IBEDAFT); membro do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP); consultor jurídico.