Por Adilson Dallari.
O nome não muda a substância das coisas, mas talvez possa servir para afastar resistências. O presente artigo é uma continuação do texto publicado nesta ConJur em 5 de novembro, com o título "Por que convocar uma Constituinte e redigir uma nova Constituição Federal". Esse texto mereceu aplausos e censuras, mas, em geral, tais reações deixaram bem claro que a Constituição Federal em vigor está exaurida, causando muita insegurança jurídica, ao contrário do que deveria ser sua finalidade básica. Um dos críticos, o respeitável constitucionalista, deputado constituinte e ex-presidente da República Michel Temer ("Nova Constituição?", OESP, 1º/11/2020, p. A2), afirma que uma Assembleia Nacional Constituinte somente se justificaria se houvesse uma ruptura do sistema jurídico constitucional e que as alterações necessárias deveriam ser feitas por emendas constitucionais. Tirante o amor do criador por sua criatura, nota-se que o que está incomodando é o nome, mas, repetindo, como o nome não muda a substância das coisas, parece prudente começar a se falar numa reforma constitucional, uma espécie de ampla emenda constitucional, revigorando, racionalizando e enxugando o texto vigente, para cuidar apenas de matéria substancialmente constitucional.
Já abordamos essa questão do que é matéria constitucional na introdução de nosso vetusto "Regime Constitucional dos Servidores Públicos" (Ed. RT, 2ª ed. 1990), onde lembramos o artigo 178 da longeva Constituição do Império do Brasil, de 1824, no sentido de que "é só constitucional o que diz respeito aos limites e atribuições respectivas dos poderes políticos, e aos direitos políticos e individuais dos cidadãos". Mas acatamos a ponderação de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello ("Princípios Gerais de Direito Administrativo", vol. 1, p. 15) no sentido de que não se pode censurar o qualificativo de constitucional atribuído ao referido regime, pois, mesmo que não possa ser considerado matéria de Direito Constitucional, o simples fato de o regime jurídico dos servidores públicos estar contido no texto da Constituição Federal lhe assegura a qualificação de regime constitucional. Isto é, ainda que tal regime não seja materialmente constitucional, será, sem dúvida, formalmente constitucional. Em resumo; o texto da Constituição de 1988 contém matérias substancialmente constitucionais, mas está superabundantemente inquinada de dispositivos apenas formalmente constitucionais.
Um outro ponto de resistência é a suposta sacralidade da Constituição em vigor, que teria sido fruto do trabalho de uma Assembleia Constituinte, o que não é verdade. Já tratamos desse assunto nesta mesma ConJur, em 24/04/17 ("Por uma Assembleia Nacional Constituinte independente e exclusiva"), onde salientamos que: "Entretanto, verdade seja dita, ela não foi resultante de uma assembleia constituinte e teve origem espúria, num arranjo político então possível. Ela nasceu de simples emenda constitucional, proposta pelo presidente Sarney (EC 26/85), que conferiu poderes constituintes aos membros do Congresso Nacional, os quais, após a conclusão dos trabalhos, continuariam sendo deputados e senadores. Vale notar que o Congresso constituinte foi eleito com sua composição determinada pelo chamado Pacote de Abril (de 13/4/1977), do presidente Geisel". Vale lembrar que Sarney foi eleito vice-presidente em eleição indireta, sem nenhum voto popular. Entre os constituintes figuravam os chamados "senadores biônicos", nomeados pela ditadura, sem nenhum voto popular. Os deputados e senadores, integrantes do Congresso Constituinte, legislaram para si mesmos, dando origem ao caótico quadro de 30 partidos políticos, regiamente sustentados por verbas públicas, que tornam totalmente inviável uma reforma constitucional por meio de uma miríade de simples emendas constitucionais. Quem quer os resultados precisa dar os meios para atingi-los.
Voltando ao tema da ruptura, para o professor Modesto Carvalhosa ela já ocorreu. Em artigo sustentando a necessidade de uma nova Constituição (OESP, 9/11/20), ele pergunta e responde: "Afinal, o que é uma ruptura institucional? Trata-se da ausência de legitimidade das instituições, refletida na perda do respeito da cidadania pela autoridade do Estado e na incapacidade manifesta dos mandatários de exercerem suas funções em prol do interesse público. Diante da imoralidade da conduta de mandatários que governam e legislam em causa própria, diante de magistrados de cúpula incapazes de interpretar a Constituição a favor da ordem pública, da segurança da sociedade e da paz social, o povo não mais acata espontaneamente o poder constituído, nada mais sendo necessário para caracterizar o divórcio entre a Nação e o Estado. A ruptura político-institucional não precisa ser fruto de revolta sangrenta".
Nessa mesma linha, o ministro Almir Pazzianotto Pinto (OESP, 22/11/20, "Constituição — realidade e ficção") também aponta a existência de uma ruptura, dada a opinião geral de que a carta atual teve o seu prazo de validade ultrapassado, não sendo necessário que um grupo conspire para derrubá-la, pois a morte virá por "falência múltipla de órgãos, decorrente de septicemia". O mais importante é que nesse texto, mais adiante, analisando um tema específico, ele demonstra o efeito perverso do garantismo exagerado estabelecido pelo texto atual: "Os direitos sociais relacionados nos 34 incisos do artigo 7.º oferecem frágil cobertura a minoritário mercado formal, onde se encontram os que têm carteira profissional anotada. Para a maioria desempregada, subocupada ou desalentada prevalece a lei da oferta e da procura, agravada pela crise aprofundada pela pandemia, cuja extensão o presidente Jair Bolsonaro insiste em menosprezar. São 14 milhões de desempregados, 9 milhões sem carteira profissional assinada, 21,4 milhões de autônomos, 51,7 milhões abaixo da pobreza, vítimas das fantasias dos constituintes de 1988". Essa proteção anacrônica, demagógica e eleitoreira, nascida na ditadura getulista do século passado, impede o pleno emprego.
Vários temas específicos poderiam ser apontados para demonstrar a falência do atual texto constitucional, mas nada supera o descalabro do STF, que, traindo seu precípuo dever de ser guarda da Constituição, passou a ser seu maior violentador, sendo negligente na jurisdição e hiperativo na prática de atos legislativos e nas decisões tipicamente administrativas, evidenciando um facciosismo incontestável. Como é sabido, o STJ modificou sua jurisprudência sobre prisão em segunda instância para soltar Lula da cadeia, transformando, incoerentemente, a presunção de inocência, que só pode ser juris tantum (admitindo prova em contrário), em absoluta (desconsiderando a prova produzida). Com o mesmo facciosismo, mas em sentido contrário, no inquérito que investiga suposta interferência na Polícia Federal, contrariando a regra geral, exigiu que o presidente da República prestasse depoimento de maneira presencial. Nos próximos dias, o tribunal vai decidir se determina ao Executivo que apresente um plano de vacinação geral contra a Covid-19 (matéria tipicamente administrativa) e se os presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado podem disputar a reeleição no ano que vem, contrariando expressa proibição do artigo 57, §4º, da CF. Quanto a este ponto, a expectativa é sobre como o STF vai contornar o impedimento, para atender os seus parceiros.
Como se pode notar, a Constituição estabeleceu um contubérnio, uma ação entre amigos, um toma lá, dá cá com o Congresso. Ambos os presidentes das casas têm processos de corrupção parados no STF, mas, em compensação, o Senado arquivou CPI da Lava Toga, assegurando eficácia a uma verdadeira societas sceleris. Como se chegou a esse absurdo estado de coisas? Simples: conforme já foi dito, os legisladores constituintes legislaram para eles mesmos, protegendo seus interesses particulares.
No exercício da jurisdição, o STF tem reescrito a Constituição, proferindo decisões contrárias aos seus mandamentos. Não é o caso de se comentar aqui alguns casos. Basta recomendar a leitura de uma obra coordenada por Antônio Jorge Pereira Junior e Milton Gustavo Vasconcelos Barbosa, com o sugestivo título de "Supremos erros — decisões inconstitucionais do STF", na qual 26 autores examinam uma série de casos, tais como inquérito das fakes news, liberação do aborto até o terceiro mês de gravidez, anulação de nomeações políticas do Poder Executivo, criminalização da homofobia, impedimento de ação policial nas favelas do Rio de Janeiro, prisão após condenação na segunda instância, entre outros. Em texto publicado no jornal O Povo, de Fortaleza, um dos autores, o professor Antônio Jorge, pondera: "Por mais que sejam bem intencionados e desejem lançar luzes sobre pontos obscuros da sociedade brasileira, os ministros não foram investidos na posição de guias iluminados para conduzir o país. Sem a consciência e o compromisso com o seu real papel, tornam-se vulneráveis ao exercício ilegítimo do poder que lhes foi delegado, podendo atropelar o Legislativo, o Executivo e o próprio eleitorado; em desfavor, portanto, da democracia". A obra está disponível apenas de maneira virtual, podendo ser consultada no site da Editora Fenix. Vale lembrar que o STF e seus integrantes sempre foram respeitados e louvados, mas a atual avalanche de questões e questiúnculas impede a tomada de decisões ponderadas e amadurecidas.
Muita coisa ainda poderia ser dita sobre a disfuncionalidade da Constituição em vigor. A reforma administrativa é objeto de um projeto apenas parcial, limitado no tempo, para que possa ter alguma viabilidade. A reforma tributária é um beco sem saída, pois todos os projetos empacam em barreiras intransponíveis. O orçamento público, fantasticamente engessado e desvirtuado, continua sendo regido pela esclerosada Lei nº 4.320, de 17/3/64, que não se coaduna com o atual tratamento constitucional da matéria, faltando ainda lembrar que não foi editada a lei complementar prevista no artigo 165, §9º, da Constituição Federal. No presente momento, contrariando o disposto no §2º do artigo 57, o Congresso Nacional ainda não aprovou o projeto de lei de diretrizes orçamentárias e, consequentemente, agora, em dezembro, ainda não se tem o orçamento anual para o exercício de 2021.
De que vale uma Constituição que não é obedecida?
Adilson da breu Dallari é professor titular de Direito Administrativo pela Faculdade de Direito da PUC/SP; membro do Conselho Científico da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP); membro do Conselho Superior de Assuntos Jurídicos e Legislativos da FIESP; membro do Núcleo de Altos Temas (NAT) do SECOVI; membro do Conselho Superior de Direito da FECOMÉRCIO; membro do Conselho Consultivo da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico (ABRADADE); membro do Conselho Superior de Orientação do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário (IBEDAFT); membro do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP); consultor jurídico.
SP, 7-12-2020.