Kiyoshi Harada**
O governo do Presidente Jair Bolsonaro enviou ao Congresso Nacional o projeto de lei nº2337/2021 modificando a legislação do imposto de renda, que provoca um fantástico aumento de arrecadação, na contramão da conjuntura econômica caracterizada pela fragilidade das fontes produtoras e com 14,4 milhões de desempregados.
Na Câmara dos Deputados já foi designado como Relator o Deputado Celso Sabino (PSDB-PA), tudo indicando que terá uma tramitação acelerada para tentar fazer com que o aumento entre em vigor no exercício de 2022.
Neste breve artigo faremos abordagens pontuais da reforma preconizada centradas na supressão dos JCP (juros sob o capital próprio) e na tributação de lucros e dividendos distribuídos a sócios/acionistas, sem prejuízo da tributação na pessoa jurídica.
O projeto eleva brutalmente a carga tributária no momento em que a pandemia conduziu muitas empresas à insolvência e as pessoas físicas, também, passaram a ter imensas dificuldades econômicas em decorrência da diminuição de suas rendas e ganhos, sem contar o enorme contingente de mais de 14 milhões de desempregados. O momento escolhido pelo estrategista da área econômica não poderia ser pior.
O governo agiu com grande senso de oportunidade ao embutir o bilionário aumento de arrecadação na simpática bandeira de justiça fiscal, desonerando cerca de 30 milhões de contribuintes do IRPF, mediante elevação da faixa de isenção de R$ 1.903,98 para R$ 2.500,00, o que representa um aumento de 31,30%.
Mas, em grande parte essa “elevação” da faixa de isenção representa simples atualização monetária da tabela progressiva do IR congelada há anos, apesar da inflação crescente beirando a dois dígitos.
Contudo, essa desoneração pouco representa em termos de perda de arrecadação, sendo infinitamente menor que a mordida bilionária por conta da supressão dos JCP e da criação do imposto sobre a distribuição de dividendos à base de 20%, sem prejuízo da tributação de pessoa jurídica à alíquota de 15%, perfazendo a fantástica alíquota de 35%, o que a torna extremamente exacerbada se considerada a absurda carga tributária incidente sobre o consumo, o que não acontece nos outros países que mantêm a tributação dos dividendos na pessoa física.
Examinaremos primeiramente a supressão dos JCP.
É público e notório que a política de juros praticados pelo nosso sistema bancário vem dificultando o acesso a créditos por empresas em geral. Sócios e acionistas vinham financiando o capital de giro de suas empresas, e os juros pagos podiam ser deduzidos do lucro real e da base de cálculo da CSLL. Agora, essa dedução ficou vedada a pretexto de que o sistema bancário atualmente está apto a oferecer créditos a juros baixos, o que não encontra respaldo na realidade. Basta verificar o contínuo crescimento da taxa selic dos últimos meses.
É bem melhor o financiamento do capital de giro ou para expansão do estabelecimento da empresa por seus sócios/acionistas do que por meio de agências financeiras oficiais de fomento (Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, Banco da Amazônia e Banco do Nordeste) que envolvem dinheiro público.
No que tange à tributação de dividendos a justificativa apresentada, igualmente, não condiz com a realidade tributária do País.
Trata-se de uma réplica do que constava do PL nº 3.129/2019 de iniciativa da Câmara Federal, que elevava o IRPF de 27,5% para 37% e instituía a tributação dos dividendos em 20%, reduzindo a tributação do IRPJ de 15% para 10%, totalizando 30%.
O IBEDAFT e a FECOMÉRCIO, acolhendo o parecer de suas respectivas comissões técnicas, firmaram posição contrária ao projeto legislativo, oficiando ao Presidente da Câmara Federal e ao Deputado-Relator.
O projeto acabou arquivado pelo decurso de prazo.
Desta vez, o projeto veio no bojo da proposta que reduz o IRPJ de 15% para 12,5% em 2022 e para 10% em 2023, ao mesmo tempo eleva em 31,30% a faixa de isenção do IRPF, como vimos, para ganhar a simpatia da população em geral.
Entretanto, a justificativa de que todos os países integrantes da OCDE, com exceção da Letônia, tributam a distribuição de lucros e dividendos percebidos pelos sócios pessoas físicas, pelo que torna justa essa tributação, está equivocada, por ausência de exame do sistema tributário como um todo.
No Brasil, ao contrário de outros países, tributa-se menos a renda e o patrimônio, e mais o consumo.
A tributação do consumo no Brasil é da ordem de 50% a 60 % do preço das mercadorias contra 33% dos países da OCDE.
Isso faz com que no Brasil, do total da arrecadação, 21,2% seja representado pela tributação sobre a renda, e 39,1% pela tributação sobre o consumo, o que totaliza 60,3%.
Nos países da OCDE a proporção é a seguinte: renda = 33,2% e consumo = 20,5%, totalizando 53,7%.
No âmbito da América Latina temos a seguinte proporção: renda = 25,5% e consumo = 34,7%, totalizando 60,2%.
Fica, pois evidenciado que com o pretendido aumento do imposto de sobre a renda a diferença de tributação renda/consumo de 6,6% (60,3% - 53,7%) que existe entre o Brasil e os Países da OCDE irá aumentar consideravelmente, tornando o Brasil campeão de tributação ante os países integrantes da OCDE e no âmbito da América Latina.
Por isso, no nosso País a tributação dos lucros sempre foi encarada como uma antecipação do imposto devido pela pessoa física, sócio ou acionista por ocasião de sua distribuição, mas, o projeto considera como imposto devido na fonte, sem possibilidade de sua dedução na declaração de ajuste. Incide, pois, no vício da dupla oneração, tributando de novo o que antes já foi tributado, a exemplo do IGF que tributa o que restou do patrimônio e das rendas e ganhos depois de tributados por “n” impostos. Por isso, o IGF, até hoje, não foi instituído.
Enquanto não desonerar a tributação sobre o consumo ao nível da tributação dos países integrantes da OCDE não se pode falar em justiça fiscal.
O tributo indireto (ICMS, ISS, IPI, PIS / PASEP e COFINS), ao contrário do tributo direto, não comporta graduação segundo a capacidade contributiva de cada um, que é um princípio tributário de natureza universal.
O tributo indireto é regressivo, injusto e desproporcional à capacidade contributiva de cada um. Onera por meio de uma alíquota linear os pobres e os ricos.
Para um rico R$ 100,00 de imposto incidente sobre uma mercadoria que custa R$ 200,00 representa, digamos, 2% de sua renda, enquanto que para um pobre essa mesma quantia pode comprometer 10% ou mais de sua renda.
O imposto sobre consumo é cruel. Onera igualmente o caviar que o rico petisca e o alimento básico - arroz e feijão - que o pobre consome no dia a dia.
Logo, para fazer uma reforma tributária justa de forma a assegurar a todos uma vida condigna, de acordo com os ditames da justiça social, como proclamado no art. 170 da CF, o governo deve começar revendo o sistema de tributação sobre o consumo, fonte principal da arrecadação tributária do País. Se for para fazer comparativos com o imposto sobre o lucro de outros países deve se fazer o confronto considerando a globalidade dos tributos.
Enquanto isso não acontecer não se pode levar a sério o discurso governamental de que a reforma proposta visa reduzir a carga tributária de 30 milhões de contribuintes brasileiros, que continuam sendo esmagados pelo peso da tributação sobre o consumo.
Do exposto, é lícito concluir que esses 30 milhões de contribuintes foram usados como meio de fazer aumentar arrecadação tributária da União para custear a máquina estatal que não para de crescer, nem em época de pandemia, não para trazer benefícios efetivos à população em geral, mas para manter e expandir os privilégios ilegítimos dos detentores do poder político, enquanto o setor privado vai se encolhendo e os pobres vão ficando cada vez mais pobres.
Por derradeiro, cumpre observar que o projeto sob análise extingue a isenção da distribuição de lucros das empresas optantes do SIMPLES NACIONAL prevista no art. 14 da Lei Complementar nº 123/2006, mantida a isenção até o limite de R$20.000,00 mensais, sob o fundamento de que a aludida norma, do ponto de vista material, não se reveste da característica de lei complementar, por não se tratar de tributação da renda do optante pelo regime especial, mas sim do sócio. Dessa forma, a lei ordinária poderia revogar essa isenção.
Não é bem assim. Transcrevamos o aludido art. 14 para melhor exame:
“Art. 14. Consideram-se isentos do imposto de renda, na fonte e na declaração de ajuste do beneficiário, os valores efetivamente pagos ou distribuídos ao titular ou sócio da microempresa ou empresa de pequeno porte optante pelo Simples Nacional, salvo os que corresponderem a pró-labore, aluguéis ou serviços prestados.”
Verifica-se de pronto tratar-se de uma isenção objetiva, e não subjetiva, isto é, a isenção recai sobre valores pagos ou distribuídos pela microempresa ou empresa de pequeno porte, tal como definido no art. 3º da Lei Complementar nº 123/2006. Não incide sobre os valores percebidos, mas sobre os valores pagos.
Logo, os valores pagos ou distribuídos pelas micro e pequenas empresas integram a definição de tratamento diferenciado para os optantes do SIMPLES NACIONAL, atraindo a incidência do art. 146, III, d da CF.
Ainda que assim não fosse, apenas para argumentar, a revogação dessa isenção prevista em lei complementar específica só poderia ser revogada por outra lei especial à luz do que dispõe o princípio da especialidade da isenção prevista no § 6º, do art. 150 da CF.
Concluindo, a propositura legislativa sob análise projeta uma fantástica arrecadação da ordem de R$32,33 bilhões em 2022, R$55,04 bilhões em 2023 e R$58,2 bilhões em 2024. No que diz respeito à redução da alíquota do IRPJ de 15% para 10% far-se-á no curso de dois anos: 1,5% em 2022, e outros 2,5% em 2023, o que revela uma elevação da carga tributária em 2022.
Essa elevação tributária é absolutamente inoportuna no instante em que as multinacionais pensam em retomar os investimentos no Brasil, confiantes no programa nacional de vacinação que sinaliza melhorias nas condições de desenvolvimento das atividades econômicas no Brasil. Tem tudo para espantar o capital estrangeiro de nosso País.
Essa gula fiscal vem na contramão da conjuntura econômica como resultado da total incapacidade do governo de conter a escalada do “Custo Brasil”, pelo que a sociedade não poderá esperar nenhum benefício social por conta desse pesado encargo tributário que lhe é imposto.
Como assinalamos em nossa obra, infelizmente, no Brasil “a tributação vem sendo encarada como mero poder do Estado de impor sacrifícios aos cidadãos, e não como um contributo indispensável à sua vida em comum, assegurando os direitos fundamentais proclamados no art. 5º da CF e noutros dispositivos esparsos” [1].
SP, 30-6-2021.
* Publicado no Consultor Jurídico, edição do dia 7-7-2021.
** Professor de Direito Financeiro e Tributário. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário – IBEDAFT. Ex Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.
[1] Cf. nosso Direito financeiro e tributário, 30ª edição. São Paulo: Atlas, 2021, p. 484.