Por Adilson Abreu Dallari
Nos jornais e nas redes sociais é sempre presente a observação, ou a crítica, de que a atividade da Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid-19 é puramente política. A doutrina já deixou muito claro o que a CPI não é: “A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) não é uma Justiça Legislativa, por isso não exerce qualquer função jurisdicional com amplos poderes investigatórios (aliás, na democracia o Judiciário não investiga). Em consequência, não pode ela, pelo menos sumariamente, suspender o sigilo bancário e fiscal dos acusados ou determinar o bloqueio de bens“ (Ronaldo POLETTI, Constituição Anotada, Editora Forense, Rio de Janeiro, 2009, p. 241).
Ora, sendo uma atividade desenvolvida por um órgão de representação político — o Senado Federal — ela é, sim, essencialmente política, mas pode gerar responsabilidades, motivo pelo qual merece um exame de seus aspectos jurídicos. A específica questão que será examinada neste estudo é o da sua abrangência, ou, mais exatamente, se o Senado pode investigar atividades desenvolvidas pelos governadores de estados.
Cabe lembrar que a CPI foi proposta pelo senador Randolfe Rodrigues, do Amapá, logo após uma gravíssima situação de falta de oxigênio e leitos hospitalares no estado do Amazonas e, especialmente, em Manaus, visando examinar possíveis omissões do governo federal, mas compreendendo também o atraso na compra de vacinas e a aquisição de medicamentos sem comprovação científica.
Embora o objetivo político fosse o desgaste do governo federal, por acordo político incluiu-se também no objeto da CPI o exame dos gastos efetuados pelos governadores, com verbas federais repassadas aos estados, para a compra de insumos destinados ao combate à pandemia, cabendo lembrar que muitas aquisições, feitas sem licitação, apresentaram problemas legais que já estão sendo objeto de investigação policial. Para uma correta, isenta e profunda apuração dos fatos e das responsabilidades é indispensável o cuidadoso exame dos eventos ocorridos em Manaus, que deflagraram a instalação da CPI.
Não obstante o objeto da CPI, quando instalada, por acordo entre os senadores e conforme consta do instrumento de abertura, abrangesse também as atividades dos governadores estaduais, agora, tais autoridades não aceitam as investigações de seus atos, sob a alegação de que não cabe ao Senado investigar atividades desenvolvidas por autoridades estaduais. A questão será decidida pelo STF, mas, lamentavelmente, não é de se esperar uma decisão rigorosamente jurídica, dado o lastimável facciosismo que tem marcado o destempero daquela, antigamente respeitável, Corte. Daí porque é oportuno um estudo estritamente jurídico da questão.
Começando pelo exame das normas constitucionais, merece transcrição o disposto no §3º do Art. 58: “As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores“. Duas observações precisam ser feitas: 1) a menção a fato determinado, embora no singular, na verdade se refere a fatos determinados interligados ou conexos; 2) o disposto no Art. 50 da CF, autorizando “convocar Ministro de Estado ou quaisquer titulares de órgãos diretamente subordinados à Presidência da República“, não é excludente de outras autoridades de outros níveis de governo e, obviamente, de particulares.
Mas a questão referente ao uso de recursos materiais e financeiros da União, repassados aos Estados, requer uma digressão, para destacar o papel do Congresso Nacional no tocante ao controle do uso de recursos financeiros federais. Para isso é necessário transcrever o Art. 70 da CF e seu parágrafo único, destacando-se o principal: “Art. 70. A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle interno de cada Poder. Parágrafo único. Prestará contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária“.
O controle dos gastos, nos termos do art. 71 da CF, é feito pelo Congresso Nacional, “com o auxílio do Tribunal de Contas da União”. Os incisos do Art. 71 especificam as amplas competências de que está dotado o TCU nessa sua função auxiliar do Congresso, merecendo especial destaque o disposto no inciso VI: “fiscalizar a aplicação de quaisquer recursos repassados pela União mediante convênio, acordo, ajuste ou outros instrumentos congêneres, a Estado, ao Distrito Federal ou a Município“. Não há dúvida, portanto, que cabe ao Congresso, e, no caso, à CPI do Senado, investigar repasses feitos a estados e, inclusive, municípios.
Embora isso não tenha sido lembrado, a lei federal quer disciplina especificamente o funcionamento das Comissões Parlamentares de Inquérito, Lei 1.579 de 18/03/52, dispõe em seu art. 2º: “No exercício de suas atribuições, poderão as Comissões Parlamentares de Inquérito determinar diligências que reputarem necessárias e requerer a convocação de Ministros de Estado, tomar o depoimento de quaisquer autoridades federais, estaduais ou municipais, ouvir os indiciados, inquirir testemunhas sob compromisso, requisitar da administração pública direta, indireta ou fundacional informações e documentos, e transportar-se aos lugares onde se fizer mister a sua presença“. (Redação dada pela Lei 13.367, de 2016)
Registre-se que o Regimento Interno do Senado, em seu Art.146, inciso III diz, expressamente, que não se admitirá comissão parlamentar de inquérito sobre matérias pertinentes aos Estados. Porém, isso significa apenas que não cabe investigar governadores pelo uso de recursos financeiros estaduais, mas a CF e a legislação deixam perfeitamente clara a investigação sobre recursos financeiros federais repassados a Estados. O Art. 148 do Regimento Interno é bastante amplo e está em perfeita consonância com as normas constitucionais que regem a fiscalização de recursos públicos da União e com a legislação federal que disciplina o funcionamento das CPIs, dispondo, expressamente: “No exercício das suas atribuições, a comissão parlamentar de inquérito terá poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, facultada a realização de diligências que julgar necessárias, podendo convocar Ministros de Estado, tomar o depoimento de qualquer autoridade, inquirir testemunhas, sob compromisso, ouvir indiciados, requisitar de órgão público informações ou documentos de qualquer natureza, bem como requerer ao Tribunal de Contas da União a realização de inspeções e auditorias que entender necessárias“. Nessa linha de atuação, o relator da CPI já conta com o auxílio de três auditores do TCU.
Existe, no caso específico, um outro importantíssimo detalhe, qual seja o fato de que a CPI investiga ações desenvolvidas no setor de saúde, que são de competência comum nos três níveis de governo. Com efeito, a CF, no artigo 23, ao dispor sobre competências comuns da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, se refere expressamente, no inciso II, a “cuidar da saúde“, o que compreende a expedição de atos normativos e a prática de ações administrativas. No mesmo sentido o Art. 198 estabelece que “as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único“, o qual deverá observar uma série de diretrizes aí especificadas. A esse Sistema Único de Saúde, conhecido como SUS, cabe (artigo 200, II) “executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica“. É certo, portanto, que a responsabilidade pela prestação de serviços de combate à Covid-19 é conjunta dos três níveis de governo.
Para se furtar à convocação, alegam os governadores que isso seria inconstitucional, por violar o pacto federativo e a independência dos poderes. Sustentam, sem qualquer fundamento jurídico, que a competência para investigar gestores estaduais seria da Assembleia Legislativa e que a CPI não pode convocar o chefe do Poder Executivo. Ora, no caso, a investigação se refere ao emprego de recursos financeiros repassados pela União aos Estados e, como é ululantemente óbvio, a separação de poderes (o sistema de freios e contrapesos) serve, principalmente, para o controle de um poder sobre o outro poder. Conforme foi acima apontado, cabe ao Legislativo exercer o controle de gastos feitos pelo Executivo.
Possivelmente, essa resistência tenha um motivo que emerge de uma colocação do atual ministro e então professor Roberto Barroso: “A Comissão Parlamentar de Inquérito, destinada a investigar fatos relacionados com as atribuições congressuais, tem poderes imanentes ao natural exercício de suas atribuições, como colher depoimentos, ouvir indiciados, inquirir testemunhas, notificando-as a comparecer perante ela e a depor; a este poder corresponde o dever de, comparecendo a pessoa perante a Comissão, prestar-lhe depoimento, não podendo calar a verdade, cometendo crime a testemunha que o fizer (STF, RDA, 199/205)“ (Luís Roberto BARROSO, Constituição da República Federativa do Brasil anotada e legislação complementar, Saraiva, 1998, p. 58-59). Possivelmente as partes cheguem a um acordo no sentido de que governadores não sejam convocados pela CPI, mas por ela convidados, podendo, então, mentir à vontade.
SP, 3 de junho de 2021, 8h03