Desde o tempo em que eu lecionava na cadeira de Direito Tributário em diversas faculdades de Direito nunca cansei de enfatizar que a parte mais importante do Direito Tributário é o estudo do fato gerador da obrigação tributária, normalmente, abordado nas diferentes instituições de ensino superior, de forma bastante superficial limitada ao exame de seu aspecto material, objetivo ou nuclear, isto é, a descrição legislativa da hipótese em que é devido o tributo.
Raramente se faz um estudo comparativo com a obrigação jurídica em geral bastante conhecida e difundida no direito civil, um ramo tradicional do Direito..Entre a obrigação civil e a obrigação tributária só há diferença quanto à fonte, limitada à lei, e quanto ao objeto, limitado ao tributo e à multa pecuniária..Tudo o mais é idêntico à noção de direito civil: as partes (devedor e credor), o aspecto quantitativo (preço), o local da obrigação e a época em que surge a obrigação, que correspondem, respectivamente, o contribuinte e à Fazenda; à base de cálculo e alíquota; ao aspecto espacial do fato gerador e ao aspecto temporal do fato gerador.
Por conta dessa deficiência, muitas vezes, confunde-se o aspecto material com o aspecto temporal do fato gerador, ou altera-se, arbitrariamente o aspecto espacial do fato gerador provocando a desnaturação do imposto.
Neste artigo iremos examinar, em apertada síntese, alguns dos litígios que surgiram por conta dessa insuficiência teórico-doutrinária de que falamos.


Comecemos pelo fato gerador do IPI definido no art. 146 do CTN:

“Art. 46. O imposto, de competência da União, sobre produtos industrializados tem como fato gerador:
I - o seu desembaraço aduaneiro, quando de procedência estrangeira;
II - a sua saída dos estabelecimentos a que se refere o parágrafo único do artigo 51;
III - a sua arrematação, quando apreendido ou abandonado e levado a leilão.
Parágrafo único. Para os efeitos deste imposto, considera-se industrializado o produto que tenha sido submetido a qualquer operação que lhe modifique a natureza ou a finalidade, ou o aperfeiçoe para o consumo”.

Como se verifica, o caput expressa apenas o aspecto temporal do fato gerador especificando as três hipóteses em que se verifica a ocorrência do fato gerador do IPI. O aspecto material do fato gerador do IPI está descrito no seu parágrafo único.
Como é difícil precisar o exato momento em que a industrialização foi ultimada, o legislador elegeu os três momentos distintos expressos de forma objetiva em que o fato gerador do imposto tem-se por ocorrido.
Entretanto, o STF decidiu que na revenda de produto industrializado importado há nova incidência do IPI para “dar tratamento equânime ao produto industrializado importado ao similar nacional” (RE nº 946.648/SC).
Além de irrelevante a consideração de natureza extrajurídica na interpretação do fato gerador da obrigação tributária a dupla tributação do produto industrializado importado, sem que houvesse nova industrialização, rompe o tratamento isonômico do produto estrangeiro e o similar nacional, aparentemente levado em conta pela Corte Maior como razão de decidir.
Na área do ICMS a confusão também continua reinando tanto na esfera da jurisprudência, quanto na esfera legislativa.
Após duas décadas de discussões doutrinárias e jurisprudenciais, o STF finalmente conseguiu pacificar o conceito de “operações relativas à circulação de mercadoria” consignada no art. 155, II da CF.
A Corte Maior fixou o entendimento de que o fato gerador do ICMS implica circulação jurídica, isto é, a troca de titularidade ou de posse da mercadoria, sendo irrelevante a sua circulação física.
Com o advento da EC nº 33/2001 que dispõe sobre a incidência do ICMS sobre bens ou mercadorias importadas por pessoas, físicas ou jurídicas, ainda que não sejam contribuintes habituais do imposto, e qualquer que seja a sua finalidade, o STF chegou, em um primeiro momento, a decidir pela tributação do leasing internacional que sabidamente não implica troca de propriedade (RE nº 206.069/SP).
Contudo, esse equívoco foi logo corrigido, por maioria de votos, quando se decidiu que a condição para a exigência do ICMS é que tenha havido circulação da mercadoria em seu sentido jurídico, o que pressupõe operação de compra e venda (RE nº 461.968/SP).
Ignorando a jurisprudência do STF os fiscos estaduais continuam exigindo o ICMS sem que tenha ocorrido o fato gerador, confundindo a circulação jurídica da mercadoria com a sua circulação física, como se tratasse de um imposto incidente sobre o transporte de mercadoria.
Assim, foi preciso que a Corte Suprema decidisse em sede de repercussão geral que:

“não incide o ICMS no deslocamento de bens de um estabelecimento para outro do mesmo titular localizado em estados distintos, visto não haver transferência de titularidade ou realização de ato de mercancia” (ARE nº 1.255.885/MG-RG).

Ora, o estudo do fato gerador em seu aspecto subjetivo, em confronto com a obrigação de direito civil, revela de pronto a necessidade de existência obrigatória de duas pessoas: o vendedor e o comprador. Não é possível alguém vender mercadoria para si próprio.
Dessa forma, parece evidente que o deslocamento de mercadoria de um estabelecimento para outro do mesmo titular, situado no mesmo ou em outro Estado, não pode implicar troca de titularidade da mercadoria, condição exigida pelo STF para legitimar a incidência do ICMS.
Nesse mesmo sentido proclama a Súmula 166 do STJ:

“Não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte”.

De nada adianta decorar o conceito de fato gerador do ICMS, nem os enunciados de Súmulas ou de decisões dos tribunais superiores. É preciso que se entenda o conceito de fato gerador da obrigação tributária em seus múltiplos aspectos, para sua aplicação à generalidade dos casos.
Do contrário, as demandas judiciais desnecessárias continuarão tomando o tempo dos tribunais.Recentemente, o STF julgou o RE nº 1.255.885/RS para fixar o entendimento de que:

“não incide o ICMS na transferência de gados de uma fazenda para outra situada em outro Estado, porque não há troca de titularidade”.

Ora a tese é exatamente igual àquela proclamada no ARE nº 1.255.885/MG-RG). Só houve alteração do objeto tributável: de bens e mercadorias para gados.

Amanhã, a Corte Maior terá que julgar outro recurso extraordinário para consignar, por exemplo, que não há incidência do ICMS na transferência de carneiros ou de suínos de um estabelecimento para outro do mesmo titular, e assim por diante em uma sucessão interminável de demandas repetitivas, alterando apenas o objeto tributável.
Dir-se-á que na hipótese trata-se de tributação do serviço de transporte interestadual (art. 155, II, parte final da CF).
Ocorre que, a exemplo de compra e venda de mercadoria, a prestação de serviços de transportes, igualmente, pressupõe a figura do prestador e a figura do tomador de serviços, pois, ninguém presta serviços a si próprio. A falta de conhecimento desse aspecto subjetivo do fato gerador tem confundido o objeto de tributação do ICMS com o fato gerador o ISS, fazendo a cobrança do imposto sem que houvesse o fato gerador concretizado. E mais, na área do ISS tem confundido o objeto do ISS que é o serviço previsto na lista nacional, com a fato gerador do ISS que é a efetiva prestação do serviço previsto na lista.
No plano legislativo, também, o legislador, por ignorar a noção de fato gerador do ICMS, tem elaborado leis instituindo o ICMS em situações em que não há fato gerador, como nas Leis de nºs 9.478/1997 e 12.351/2010 do Estado do Rio de Janeiro que tributam a operação de extração do petróleo.
Pergunta-se, onde a operação de circulação jurídica, ou seja, operação de compra e venda no ato de extrair o petróleo?
Foi preciso que o STF declarasse a inconstitucionalidade dessas duas leis do Estado do Rio de Janeiro (ADI nº 5.481).
Por fim, a não incidência proclamada pelo STF, em várias situações submetidas ao seu exame, por constatar a inocorrência do fato gerador do ICMS, já está provocando outro tipo de litígio. Há tentativa do fisco estadual de exigir o estorno do crédito tributário da operação antecedente com suposto amparo nas letras a e b, do inciso II, do art. 2º, do art. 155 da CF.
É evidente que essas duas hipóteses de estorno decorrem da expressa desoneração tributária decorrente da hipótese legal de não incidência, equiparável à hipótese de isenção. “Isenção ou não incidência” diz texto constitucional, pressupondo existência de previsão legal.
Nada têm a ver com a não incidência pura que resulta da definição do campo de incidência do ICMS..Tudo que estiver fora do perímetro delimitado pela incidência configura o campo de não incidência que futuramente, poderá vir a ser parcialmente incluído no campo de tributação, tudo dependendo da política tributária do Estado.
Por derradeiro, a insuficiência de conhecimentos teórico-doutrinários sobre noções básicas de Direito Tributário, notadamente, acerca da teoria geral do fato gerador em seus múltiplos aspectos está contribuindo para o crescimento vertiginoso de demandas tributárias quer na área do contencioso administrativo, quer na área de processos judiciais.

SP, 09-4-2021.