Renan Clemente Gutierrez

A Reforma Tributária sobre o consumo já é uma realidade. A aprovação da Emenda Constitucional nº 132/2023, e sua parcial regulamentação pela Lei Complementar nº 214/2025, representa uma nova estrutura tributária no Brasil, pautada pelos ditames da simplicidade, neutralidade e transparência.

A união de tributos em torno do IVA-Dual (composto pela Contribuição sobre bens e serviços – CBS e Imposto sobre bens e serviços – IBS) é o que representaria essa simplicidade, mas os efeitos dessa estrutura ainda são desconhecidos pela sociedade. Não sabemos, ao certo, como funcionará na prática a nova política tributária brasileira. O aumento de carga tributária é o fator de preocupação de todos os setores econômicos do país e, evidentemente, da boa comunidade jurídica, que deve se ocupar com a preocupação do bem-estar social.

Fora a união de tributos em torno do IVA-Dual, há a implementação da figura do Imposto Seletivo, pautado na preocupação com a saúde e o meio ambiente, pois é um tributo que grava as operações que afetem a saúde e o meio ambiente, conforme se extrai da leitura do art. 409 da LCP 214:

Art. 409. Fica instituído o Imposto Seletivo, de que trata o inciso VIII do art. 153 da Constituição Federal, incidente sobre a produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde e o meio ambiente.

Pois bem. No parágrafo primeiro do referido artigo, constam os bens considerados como prejudiciais à saúde e ao meio ambiente. Veja-se:

Art. 409 (...).

      • 1º. Para fins de incidência do Imposto Seletivo, consideram-se prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente os bens classificados nos códigos da NCM/SH e o carvão mineral, e os serviços listados no Anexo XVII, referente a:
      1. Veículos;
      2. Embarcações e aeronaves;
      3. Produtos fumígenos;
      4. Bebidas alcoólicas;
      5. Bebidas açucaradas;
      6. Bens minerais;
      7. Concursos de prognósticos e fantasysport.

Nos artigos subsequentes, infere-se que o Imposto Seletivo não dará aproveitamento de crédito com operações anteriores ou geração de créditos com operações posteriores, bem como que será administrado e fiscalizado pela Secretaria da Receita Federal do Brasil (SRFB).

O Título II estabelece o momento de ocorrência do fato gerador do Imposto Seletivo (art. 414); a sua não incidência (nas operações com energia elétrica e telecomunicações, bem como sobre bens e serviços cujas alíquotas sejam reduzidas nos termos do §1º do art. 9º da EC 132/2023, conforme art. 413 da LCP 214); (iii) a base de cálculo (arts. 414 a 417); as alíquotas aplicáveis (arts. 419 a 423); a sujeição passiva e responsabilidade tributária (arts. 424 a 427); as hipóteses da pena de perdimento (arts. 428 a 429); o período de apuração do Imposto Seletivo (arts. 430 e 431); e o pagamento (arts. 432 e 433).

A questão posta em marcha no presente artigo repousa sobre os efeitos dessa tributação no âmbito da livre iniciativa, fundamento da ordem econômica, e da livre concorrência, princípio explícito da ordem econômica. A livre iniciativa e a livre concorrência garantem a democracia e viabilizam a dignidade da pessoa humana, com a geração de riqueza, emprego e participação dos trabalhadores nessa riqueza gerada (sobretudo com o consumo de bens e serviços).

Sobre o Imposto Seletivo, tem-se que gravará as operações listadas nas linhas preambulares desse breve escorço. Com isso, é fato que o custo de transação das empresas será igualmente onerado, pois haverá afetação de sua margem de lucro. Nesse cenário, outra conclusão não há: ou a empresa repassa no preço, ou ela terá sua margem de lucro reduzida. O repasse no preço poderá afetar o princípio do bem-estar do consumidor, sobremodo importante para a ordem econômica, vez que o produto ou serviço almejado terá um aumento de preço. Caso as empresas suportem a tributação com redução da margem de lucro (o que foge à própria lógica empresarial), haverá diminuição de disponibilidade econômica desses empreendedores.

A afetação da livre iniciativa deve ser vista com preocupação, pois é um fundamento da ordem econômica ao lado do ditame da existência digna. Tais fundamentos figuram como espelho daqueles fundamentos da própria República Federativa do Brasil, tal como esculpido no art. 1º da Constituição. É a livre iniciativa que garante a geração de riqueza e empregos no Estado, que arrecada tributos oriundos de sua atividade, bem como organiza a atividade econômica para receber investimentos, alocar o capital e empregar os seus cidadãos.

Veja-se as lições de Vicente Bagnoli nesse sentido:

O Estado, portanto, atuando junto à economia deve criar as condições para geração de trabalho, de modo que o indivíduo esteja inserido no mercado e o seu trabalho seja valorizado; afinal, é por meio do trabalho que o indivíduo de forma digna participará das riquezas dentro do mercado. O trabalhador também é consumidor, fazendo a riqueza circular. Da mesma forma, o Estado deve criar todas as condições para a livre-iniciativa atuar nos mercados, conferindo não só a segurança jurídica necessária para o indivíduo empreender, mas também toda a infraestrutura jurídica necessária para estimulá-lo a empreender e, com isso, promover a circulação das riquezas1

Fora o possível aumento de tributação por meio do IVA-Dual, sobretudo para o grande setor de serviços, também alguns empreendedores deverão lidar com o Imposto Seletivo, que comporá esse aumento de carga tributária. Mas, igualmente, o Imposto Seletivo apresenta grave risco à concorrência, pois ao gravar operação com bens e serviços determinados, poderá acarretar a migração do consumo para bens similares não gravados pelo tributo.

Por exemplo: não poderia haver a migração do consumo de refrigerantes (bebidas açucaradas) para similares (sucos não açucarados, mas igualmente industrializados)? O produtor de sucos industrializados não teria, então, vantagem para concorrer com o produtor de refrigerantes (e até mesmo sucos açucarados)? Nesse caso, os produtores de bebidas açucaradas deverão observar não apenas os preços praticados pelos seus concorrentes diretos, mas também pelos produtores de sucos industrializados não açucarados, para que não venham a perder competitividade de seu público consumidor com esses produtores.

Em síntese: é a possibilidade de substituição do consumo por conta do preço praticado. Nesse caso, o preço do produto ofertado pelos produtores de bebidas açucaradas é afetado pelo Imposto Seletivo.

É nesse ponto que entra o conceito de mercado relevante material, fundamental para entender como o Imposto Seletivo pode afetar a concorrência. Bagnoli, a esse respeito, consigna que:

As diversas características dos produtos e serviços e o modo como os consumidores percebem a capacidade de utilização desses produtos e serviços concorrem para a determinação do mercado, ou dos mercados, nos quais os produtos são vendidos e os serviços prestados.

(...)

Pegam-se como exemplo, aguardentes produzidas em diversos alambiques e de marcas distintas e concorrentes entre si. Cada aguardente, apesar de suas características comuns, é diferente, possuindo cada qual uma especificidade que a diferencia das demais: seja a qualidade, seja apenas a marca o preço. Os alambiques fazem publicidade para destacar essas diferenciações e assim cativar seus consumidores e poder praticar preços mais altos. Apesar de os consumidores não estarem dispostos a trocar suas aguardentes favoritas, eles consideram as diversas marcas de aguardente substitutas entre si, em razão da utilização e do preço.

Conduto, muitos consumidores de aguardente podem considera-la um sucedâneo de outras bebidas alcoólicas, como a vodka, a grappa o saquê, por exemplo. Nesse caso, o produtor de aguardente deverá considerar não apenas o preço praticado por outros produtores de aguardentes, mas também o preço das outras bebidas alcoólicas tidas pelos consumidores como substitutas.2

Os empreendedores devem, portanto, entender uma possível redefinição do mercado para enfrentarem mais essa dificuldade criada pelo próprio Estado (um tributo que almeja afetar operações). Reduzir a margem de lucro ou repassar o tributo no preço são duas medidas que não representam o bem-estar do consumidor e, desse modo, deve gerar preocupação por parte desses agentes econômicos. De todo modo, s.m.j., observar o preço praticado por novos competidores (similares) é uma realidade de redesenho do mercado, e não se sabe ao certo como isso funcionará na prática.

Nesse átimo, tem-se que o Imposto Seletivo, que gravará as operações listadas na LCP 214/2025, tem a tendência de afetar a livre iniciativa e a livre concorrência, não se podendo olvidar que tais institutos buscam preservar a dignidade da pessoa humana. É por meio da livre iniciativa que o empreendedor investe e colabora com a economia, bem como que trabalhador participa das riquezas do mercado, por meio do consumo (muito embora o investidor também seja consumidor e, desse modo, também participe das riquezas do mercado por meio do consumo).

Os fundamentos e princípios do art. 170 da Constituição, dentre os quais se destacam a livre iniciativa e a livre concorrência, são meios (dentre outros) pelos quais a ordem econômica se preordena a garantir os objetivos fundamentais da República, consignados no art. 3º da Constituição (construção de uma sociedade livre, justa e solidária; garantia do desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza e da marginalização; a redução das desigualdades sociais e regionais; e, por fim, a promoção do bem de todos.

Esse artigo é finalizado com uma importante consideração de Bagnoli, para quem “toda atividade econômica, seja pública ou privada, deve ser exercida na busca da existência digna de toda a coletividade”3.

Em breve, esse autor expandirá esse artigo para artigo que comporá o vol. XII da Revista desse Sodalício.

 

1 BAGNOLI, Vicente. Direito econômico e concorrencial. 9ª edição, rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022, p. 194.
2 BAGNOLI, ref. 1, p. 358.
3 BAGNOLI, ref. 1, p. 194.
3 BAGNOLI, ref. 1, p. 194.

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