Resenha: Análise crítica da Resolução CGSN nº 183/2025, que amplia obrigações no Simples Nacional e desafia princípios de legalidade, proporcionalidade e segurança jurídica.
Juarez Arnaldo Fernandes1
A Resolução CGSN nº 183, de 13 de outubro de 2025, tende a provocar uma nova onda de debates no campo jurídico-tributário. Editada pelo Comitê Gestor do Simples Nacional, ela altera dispositivos da Resolução nº 140/2018 com o objetivo declarado de adequar o regime simplificado às mudanças trazidas pela Lei Complementar nº 214/2025, que regulamentou o IBS e a CBS no contexto da reforma tributária. Embora o propósito seja técnico e necessário à integração do novo sistema, o texto apresenta pontos que suscitam dúvidas quanto à legalidade e compatibilidade constitucional de algumas de suas disposições.
Não se discute a importância de atualizar o regime do Simples Nacional diante da nova realidade tributária. O que se questiona é se os caminhos escolhidos pelo Comitê Gestor respeitam os limites constitucionais e preservam o sentido original do regime simplificado, concebido para amparar quem mais necessita de estabilidade, clareza e segurança nas relações com o fisco.
Desde a promulgação da Constituição de 1988, o tratamento favorecido às micro e pequenas empresas não é uma faculdade do Estado, mas um dever constitucional expresso. Os artigos 1702, inciso IX, e 1793 determinam que o poder público conceda tratamento diferenciado e desburocratizado a esse setor, como forma de estimular a inclusão produtiva e a justiça fiscal, vindo a surgir a Lei Complementar nº. 123/2006 justamente para concretizar esse mandamento, criando o Simples Nacional como instrumento de simplificação e incentivo ao empreendedorismo.
Importante destacar, nos ensinamentos de Arruda, de Souza e Avelino Filho, que “o tratamento favorecido para as EPP e ME, previsto na Carta Maior, sustenta que a igualdade tributária deve ser compreendida em sentido material, pois o Estado, ao conceder tratamento favorecido às microempresas, busca corrigir desigualdades econômicas históricas e promover uma distribuição mais justa dos encargos fiscais. Os autores acrescentam que o tratamento favorecido somente alcança sua plena finalidade quando é acompanhado de segurança jurídica, estabilidade normativa e simplificação real, sob pena de frustrar a confiança legítima que a Constituição buscou assegurar ao pequeno empreendedor”4. Essa compreensão revela que o regime diferenciado criado pela Constituição de 1988 transcende a mera técnica tributária: ele expressa um compromisso ético e jurídico com a justiça fiscal e com a preservação da atividade econômica de base, garantindo que a tributação atue como instrumento de inclusão e não de exclusão.
Essas empresas são, de fato, a base vital da economia brasileira, sendo responsáveis por grande parte dos empregos, sustentam a arrecadação local e mantêm o ciclo econômico em funcionamento. Quando o Estado lhes impõe exigências complexas ou custos desproporcionais, rompe-se o equilíbrio que justifica o regime simplificado e esvazia-se o seu papel social e econômico dentro do sistema tributário.
É sob essa ótica que a Resolução nº 183/2025 deve ser analisada. Entre as mudanças mais sensíveis está a ampliação do conceito de receita bruta, que agora abrange todas as receitas decorrentes da atividade principal e de atividades correlatas, mesmo quando pertencentes a diferentes inscrições cadastrais ou a contribuintes individuais, vindo a extrapolar o alcance da Lei Complementar nº 123/2006, criando, na prática, um novo critério de apuração e enquadramento não previsto em lei.
Na prática, ela pode alterar o enquadramento de milhares de micro e pequenas empresas, elevando a carga tributária e empurrando-as para fora do regime simplificado, e ao invés de integrar, a norma acaba por expulsar do sistema justamente quem ele deveria proteger — o pequeno empreendedor que sustenta o ciclo econômico local.
O artigo 2º da própria LC nº 123/2006 deixa claro que compete ao Comitê Gestor editar apenas normas complementares de caráter operacional, não possuindo competência legislativa e, portanto, não pode inovar no ordenamento jurídico, criando obrigações ou ampliando bases de cálculo tributárias. Quando o faz, ultrapassa o limite de sua função regulamentar e passa a atuar em esfera reservada à lei complementar, incorrendo em potencial ilegalidade e inconstitucionalidade material.
O momento pós-reforma tributária exige um esforço nacional de coerência e harmonia normativa, pois enquanto a Emenda Constitucional e a LC nº 214/2025 caminham na direção da simplificação e da racionalização, a Resolução 183/2025 vai na contramão, ao aumentar a complexidade operacional e introduzir conceitos novos sem respaldo legal. Essa incongruência compromete a credibilidade do próprio processo de reforma.
Outro ponto de destaque é a previsão de que as declarações entregues pelos contribuintes — como o PGDAS-D, a DEFIS e a DASN-Simei — sejam consideradas confissão de dívida. À primeira vista, a norma parece apenas reafirmar a Súmula 4365 do STJ, que reconhece que a entrega da declaração constitui o crédito tributário, dispensando o lançamento formal, contudo, o entendimento do tribunal nunca afastou o direito de o contribuinte revisar, retificar ou impugnar valores declarados.
A Resolução 183/2025, entretanto, utiliza uma redação que pode sugerir confissão automática e definitiva, o que afronta o artigo 5º, inciso LV6, da Constituição Federal, que assegura o contraditório e a ampla defesa. Sua validade, portanto, depende de uma interpretação conforme à Constituição, que garanta o caráter revisável das declarações e preserve o direito de defesa, impedindo que o autolançamento se transforme em renúncia forçada de direitos.
Já as multas instituídas pela nova resolução também geram preocupação. Penalidades que podem alcançar até 20% do valor do tributo — mesmo quando este já foi pago — destoam completamente da lógica que norteia o regime simplificado, pois o Simples Nacional foi concebido para estimular a conformidade e não para penalizar com severidade. Sanções dessa natureza desrespeitam os princípios da proporcionalidade e da capacidade contributiva, e podem ainda assumir caráter confiscatório, vedado pelo artigo 150, inciso IV7, da Constituição Federal.
As penalidades tributárias devem cumprir papel educativo e corretivo, jamais punitivo, e quando a multa ultrapassa o próprio valor do imposto, perde-se o sentido de justiça e o regime passa a desestimular quem ele deveria proteger. Em um sistema concebido para promover a inclusão produtiva — isto é, a integração do pequeno empreendedor à economia formal, ao mercado e à cidadania fiscal —, o excesso punitivo constitui um contrassenso que viola a própria lógica constitucional que inspira o Simples Nacional.
Outro ponto sensível está na autorização para que municípios exijam escrituração fiscal digital das empresas optantes pelo Simples, mesmo que ofereçam o programa gratuitamente. Apesar de a autonomia federativa permitir algum grau de fiscalização local, tal medida desvirtua o princípio da unificação e da simplificação, pilares do regime. O artigo 146, inciso III, alínea “d”8, da Constituição Federal, é explícito ao reservar à lei complementar federal — e não a resoluções — a competência para instituir regime unificado de arrecadação e obrigações acessórias, e caso, cada município crie exigências próprias, o Simples corre o risco de se tornar novamente o que ele nasceu para combater: um sistema burocrático e fragmentado.
Além disso, a entrada em vigor imediata de parte das novas regras cria insegurança jurídica. Mudanças de estrutura e de obrigações fiscais exigem tempo razoável para adaptação, sob pena de violar o princípio da proteção da confiança legítima. Pequenos empreendedores, que não possuem a mesma estrutura contábil das grandes empresas, podem ser surpreendidos por exigências súbitas e, com isso, ter sua regularidade fiscal comprometida.
Em síntese, a Resolução CGSN nº 183/2025 nasce de uma intenção legítima — adequar o Simples Nacional à nova realidade tributária —, mas acaba extrapolando limites constitucionais relevantes. O tratamento diferenciado às micro e pequenas empresas é uma garantia constitucional, e não uma liberalidade do Estado, e toda norma infralegal que imponha novos encargos, amplie penalidades ou restrinja direitos afasta-se da finalidade essencial do regime: simplificar para incluir.
O respeito aos limites constitucionais do Simples Nacional não é apenas uma questão de técnica jurídica, mas uma questão de dignidade econômica. Cada microempresa que fecha as portas por excesso de burocracia ou carga tributária representa uma família que perde renda, um bairro que perde movimento e uma comunidade que perde autonomia, e preservar o regime diferenciado é, portanto, preservar a base viva da economia brasileira.
Por fim, o Simples Nacional é expressão viva do mandamento constitucional de justiça fiscal e inclusão produtiva. Sua legitimidade depende de manter a simplicidade, a coerência e o equilíbrio que lhe deram origem, e a Resolução 183/2025 só cumprirá seu papel se aplicada com moderação e prudência, fiel ao espírito que inspirou sua criação. Em um regime voltado à inclusão, a sanção deve educar, não punir; deve orientar, e não excluir.
1 Especialista em Direito Constitucional e Tributário, Empresarial e Recuperação de Empresas, Penal e Econômico, Contábil e Financeiro, Perícia, Avaliação e Arbitragem, Contabilidade Tributária, Contabilidade Forense e Investigação de Fraudes. Contador, perito contábil judicial no TJ-PR, TJ-RS e JF-PR, Administrador Judicial e parecerista. Este endereço de e-mail está sendo protegido de spambots. Você precisa habilitar o JavaScript para visualizá-lo.
2 Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...) IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.
3 Art. 179. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei.
4 ARRUDA, Gerardo Clésio Maia; DE SOUZA, Célia Maria Rufino; AVELINO FILHO, José Nilo. Constituição, Economia e Desenvolvimento: Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional. Curitiba, 2018, vol. 10, n. 19, p. 608-629, jul-dez, 2018.
5 A entrega de declaração pelo contribuinte reconhecendo débito fiscal constitui o crédito tributário, dispensada qualquer outra providência por parte do fisco. Primeira Seção, em 14.4.2010, DJe 13.5.2010
6 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
7 Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (...) IV - utilizar tributo com efeito de confisco;
8 Art. 146. Cabe à lei complementar: (...) III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: (...) d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso dos impostos previstos nos arts. 155, II, e 156-A, das contribuições sociais previstas no art. 195, I e V, e § 12 e da contribuição a que se refere o art. 239.