VI- DA INEXISTÊNCIA DE CRIME CONTRA À SAÚDE PÚBLICA, CRIME DE CAUSAR EPIDEMIA, INFRAÇÃO DE MEDIDA SANITÁRIA PREVENTIVA, DE CHARLATANISMO, DE EXERCÍCIO ILEGAL DA MEDICINA E DE INCITAÇÃO AO CRIME PRATICADOS PELO PRESIDENTE DA REPÚBLICA
O Presidente da República em algumas de suas manifestações fez referência à tese da “imunidade de rebanho” ou “imunidade de grupo” e ao uso de alguns medicamentos preventivamente, como a cloroquina, a hidroxicloroquina e a ivermectina. A “imunidade de rebanho” pode ser compreendida como o momento no qual a cadeia de transmissão de uma determinada doença em um grupo populacional é interrompida devido a um grande percentual de pessoas já imunizadas contra o agente. 28
Trata-se de uma imunidade a esse agente infecioso que é adquirida pelos indivíduos que já foram infectados e se recuperaram da doença ou já foram vacinados, quando essa proporção de pessoas é alta, eles acabam por criar uma barreira para a transmissão do vírus e até mesmo possibilitam a erradicação da doença. Nesse particular esclarecem os Doutores Caroline Lacerda e Hernan Imovich que:
Imunidade de rebanho (Q), ou imunidade coletiva, é um conceito aplicável para doenças transmitidas de uma pessoa para outra. Q descreve uma situação onde a cadeia de infecção é bloqueada, isto é a doença para de se alastrar, pois uma porcentagem de indivíduos, numa população definida, adquire imunidade a essa infecção e assim protege os que ainda não tem imunidade de serem infectados. Esta imunidade, ou resistência à infecção, pode ser adquirida pelos indivíduos que se recuperaram, após sofrer a doença, ou foram vacinados contra o agente causador. Em princípio, um indivíduo imune não se reinfecta após um período que varia com a natureza do agente infectante29
Tem-se, portanto, que a “imunidade de rebanho” é um conceito científico empregado para doenças infecciosas, tendo sido aplicado historicamente, nos casos de varíola, poliomielite, sarampo, difteria, caxumba, dentre outros. Esse conceito foi utilizado por diversos Países, durante a Pandemia da Covid-19, no entanto, o alto grau de mutabilidade do vírus da Covid-19 dificultou o alcance do ponto no qual a cadeia de infecção é bloqueada, seja pela aplicação da vacina, seja pela imunidade das pessoas já contaminadas.
As manifestações do Presidente da República acerca da “imunidade de rebanho” estavam embasadas em estudos científicos, em dados históricos e na experiência de outros Países. Nesse particular, suas manifestações não representam crime algum, é óbvio que se pode discutir aqui, que a imprevisibilidade e a alta mutabilidade da Covid-19 desafiaram esse conceito de imunidade de grupo, mas daí a se pretender imputar crime contra à saúde pública e charlatanismo ao Presidente da República, é demasiado fantasioso.
De igual modo as falas do Presidente da República acerca do tratamento precoce e do uso de medicamentos, tais como, hidroxicloroquina, cloroquina e ivermectina encontram-se em perfeita consonância com os ditames do ordenamento jurídico pátrio. Além dessas manifestações estarem protegidas pelo direito constitucional da liberdade de expressão, como dito acima, também estão fundamentadas no Parecer n.° 04/20 do Conselho Federal de Medicina que é explícito ao estabelecer que o princípio que obrigatoriamente norteia o tratamento do paciente da Covid-19 é a autonomia do médico e a valorização da relação médico-paciente. Enfatiza ainda o aludido parecer que:
e) Diante da excepcionalidade da situação e durante o período declarado da pandemia, não cometerá infração ética o médico que utilizar a cloroquina ou hidroxicloroquina, nos termos acima expostos, em pacientes portadores da COVID-19.30 (grifos nossos)
Num contexto de pandemia é plenamente admissível o uso de medicamentos sem eficácia comprovada, como explicitado no trecho do Parecer acima. Há intensos debates de especialistas a favor e contra o tratamento precoce com cloroquina, hidroxicloroquina, ivermectina e azitromicina. Alguns negando e outros apresentando os resultados favoráveis. Resulta, evidente, portanto, que tanto no que se refere à opinião do Presidente da República acerca da “imunidade de rebanho”, como da utilização do tratamento precoce e da hidroxicloroquina, cloroquina, ivermectina não se vislumbra a prática de crime contra à saúde pública, exercício ilegal de medicina e charlatanismo. Senão vejamos, rezam os arts. 282 e 283 do Código Penal:
Art. 282. Exercer, ainda que a título gratuito, a profissão de médico, dentista ou farmacêutico, sem autorização legal ou excedendo-lhe os limites:
Pena. Detenção, de seis meses a dois anos.
Parágrafo único. Se o crime é praticado com o fim de lucro, aplica-se também multa.
Art. 283. Inculcar ou anunciar cura por meio secreto ou infalível:
Pena. Detenção, de três meses a um ano, e multa.
Se depreende do conteúdo dos dispositivos penais referidos que as manifestações do Presidente da República não se coadunam com os tipos penais descritos. As falas do Presidente são dotadas de absoluta atipicidade quanto aos aludidos tipos penais mencionados. Primeiro, por estarem protegidas pelo direito fundamental à liberdade de expressão do pensamento. Segundo, em virtude de seu conteúdo estar fundamentado em teses científicas e em orientação do próprio Conselho Federal de Medicina.
Criminalizar às manifestações do Presidente da República é desprezar por completo a compreensão do funcionamento da Administração Pública Federal brasileira que é descentralizada, de molde a promover prestações eficazes e céleres à sociedade. Na esfera da saúde, as atribuições incumbem ao Ministério da Saúde e à Agencia Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Desse modo, o Ministério da Saúde emitiu a Nota Informativa nº 09/2020/SE/GAB/MS, com orientações para Manuseio Medicamentoso Precoce de Pacientes com Diagnóstico da Covid-19, com o fito de esclarecer que a prescrição de todo e qualquer medicamento é prerrogativa do profissional de medicina, sendo o tratamento do paciente portador da moléstia pautado na autonomia do médico, que é um princípio fundamental, insculpido no Código de Ética Médica (Resolução CFM n º 2217/18, capítulo I, VII)31.
É equivocada toda e qualquer interpretação que pretenda criminalizar o exercício da profissão da medicina ou destituir a autonomia do médico para ministrar o medicamento que entenda adequado, à luz das particularidades de cada um dos casos concretos e com a anuência do paciente.
A opinião pessoal sobre ministração de um determinado fármaco não pode ser traduzida como ilícito penal, ainda mais em face das orientações oficiais do Poder Público Federal que se pautaram, na autonomia do médico, para que no exercício de suas funções, possa mitigar as complicações, ainda que carecedoras de maiores estudos científicos, ocasionadas pela Covid-19. Longe de se praticar ilícitos, constata-se o engajamento das autoridades para a garantia dos direitos fundamentais à vida e à saúde.
Não se vislumbra igualmente a incidência de qualquer prática de crime de Charlatanismo, pois não houve aqui nenhuma promessa de cura ou de uma solução infalível. O mero anuncio de uma cura, não é suficiente para o enquadramento penal, é antiético, mas não é crime32. Uma coisa é se manifestar favorável ao uso de um medicamento, ainda que de eficácia não comprovada, outra bem distinta é prometer a cura para a Covid-19. Não há que se falar aqui em charlatanismo. O que ocorreu apenas, foi a preservação da autonomia do médico em prescrever o fármaco que entender eficiente para solucionar as demandas do paciente, desde que consentido por ele. Como se admitir um julgamento por hipótese e com dolo inexistente?
Não subsiste, igualmente, o argumento de que o Presidente da República possa ser responsabilizado por crime de epidemia, de ter colocado em perigo direto à vida ou à saúde de alguém e de infração de medida sanitária preventiva. Dispõem os arts. 132, 267 e 268 do Código Penal:
Art. 132. Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente:
Pena. Detenção, de três meses a um ano, se o fato não constitui crime mais grave.
Art. 267. Causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos:
Pena - reclusão, de dez a quinze anos.
§ 1º. Se do fato resulta morte, a pena é aplicada em dobro.
§ 2º. No caso de culpa, a pena é de detenção, de um a dois anos, ou, se resulta morte, de dois a quatro anos.
Art. 268. Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa:
Pena - detenção, de um mês a um ano, e multa.
Parágrafo único. A pena é aumentada de um terço, se o agente é funcionário da saúde pública ou exerce a profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro.
É leviano, por assim dizer, atribuir ao Presidente da República o cometimento de crime de epidemia, ou ainda, a possível disseminação do vírus da Covid-19, cujo surgimento ele definitivamente não deu causa. Destarte, tampouco houve concurso material para o ingresso e transmissão da Covid-19 em território nacional. Ora, uma vez ausentes esses pressupostos, resta excluída qualquer pretensão de tipificação da conduta do Presidente da República.
O Presidente da República participou em diversas oportunidades de reuniões e encontros públicos, sem uso de máscara. Todavia, em nenhuma dessas ocasiões se mostra possível identificar o elemento dolo em sua conduta, nem o viés de promover reuniões com o objetivo principal de causar o contágio da população. Destaca-se que o art. 267 é claro ao mencionar o verbo “causar”, como elemento do tipo penal.
Ademais, não se mostra possível inferir, em nenhum momento, que as pessoas que por livre espontânea vontade, no exercício de sua autonomia da vontade, participaram desses encontros, eram portadoras do vírus da Covid-19 em estágio transmissível. Tampouco, é presumível saber se elas já se encontravam imunizadas ou se tinham feito exame da Covid-19 com resultado negativo. Isso ocorre em virtude de uma completa ausência de elementos mínimos indiciários, o que implica na conduta atípica, demonstrando a inexistência de justa causa ou até mesmo na existência de um crime impossível.
Se a participação do Presidente da República em eventos públicos configurasse o crime previsto no art. 132 do Código Penal, todos os vacinados, inclusive com duas doses estariam na mesma situação. Isto porque a vacina não oferece a garantia total e mesmo que isso ocorresse, não impede a contaminação e transmissão do vírus.
O tipo penal descrito no aludido art. 132 a despeito de referir-se a qualquer pessoa, exige para sua configuração que haja uma vítima determinada o que se mostra impossível no presente caso. Destarte, ensinam Celso Delmanto (e outros) que:
O perigo deve ser direto (relativo a pessoa determinada, individualizada) e iminente (que ameaça acontecer de imediato). O perigo deve ser concreto e não abstrato, demonstrado e não presumido. É insuficiente a possibilidade incerta ou remota de perigo. 33
Não subsiste igualmente qualquer pretensão de enquadrar a conduta do Presidente da República ao realizar reuniões e encontros como incitação à prática de crime previsto no art. 268 do Código Penal, consistente na infração de determinação do Poder Público destinada a impedir a propagação de doença contagiosa. Inexiste incitação à pratica de crime, previsto no art.286 do Código Penal, nas condutas do Presidente da República, ele não estimulou as pessoas a se aglomerarem, apenas realizou encontros.
Levando-se em consideração as dimensões continentais do nosso País, a velocidade pela qual o vírus da Covid-19 se alastra pelo Mundo e pelas diversas regiões do País seria “fantasioso responsabilizar alguém pela disseminação da doença”.34
Não subsistem, igualmente alegações do cometimento do ilícito de “infração de medida sanitária preventiva” pelo Presidente da República, vez que o crime exige o dolo para sua tipificação, não havendo previsão legal da modalidade culposa. Não ficou comprovada, em nenhuma circunstância, que o Presidente da República tenha promovido reuniões com a finalidade precípua de frustrar ordens legais ou para fomentar a difusão da Covid-19.
Noutro diapasão, tem-se que a norma contida no art. 268 do Código Penal demanda regulamentação, uma vez que se trata de norma penal em branco. Desse modo, tem-se a Lei Federal n° 13.979/20 que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. Ela estabelece em art. 2º, inc. II o conceito de quarentena:
“Art. 2º Para fins do disposto nesta Lei, considera-se: (...)
II - quarentena: restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes, ou de bagagens, contêineres, animais, meios de transporte ou mercadorias suspeitos de contaminação, de maneira a evitar a possível contaminação ou a propagação do coronavírus.”
Restrição não significa proibição. É uma regra básica de hermenêutica que a termos distintos não se pode conferir o mesmo significado. Até mesmo porque nenhuma lei federal poderia proibir o exercício de qualquer direito fundamental previsto na Constituição, dentre eles, a liberdade de locomoção e de reunião, sem incidir no vício da inconstitucionalidade. O objetivo da Lei não foi criar peremptórias proibições ao direito fundamental de reunião ou de locomoção, incluso o deslocamento ambulatorial de pessoas, mas tão somente promover medidas de prevenção à propagação do coronavírus.
Imperioso destacar que em face da decisão do Supremo Tribunal Federal,35 coube aos estados membros e aos municípios disporem no exercício de sua competência primária sobre as regras para a contenção do vírus da Covid-19, e a maioria deles estabeleceram restrições ao direito de locomoção, de reunião e de trabalho. A grande maioria dos entes federativos adotou a “quarentena” com a finalidade de inibir a aglomeração de pessoas e controlar a proliferação do coronavírus, muitas vezes, chegando a adotar o “lockdown”.
Desse modo, querer imputar ao Presidente da República a intenção de disseminar o vírus por meio de reuniões e aglomerações, parece absurdo, quando se tem em vista que os cidadãos vivem e moram nos municípios e não na União, portanto, estão sujeitos às medidas impostas por estes entes da Federação, que consistiam no confinamento. Como querer atribuir ao Presidente da República a responsabilidade pela disseminação do vírus da Covid-19 por meio da promoção de aglomerações, se quase a totalidade dos municípios e estados-membros do País haviam adotado a quarentena e até mesmo o mesmo “lockdown”?
Ademais, consoante o disposto na decisão do Supremo Tribunal Federal pouco restou ao Presidente da República fazer no combate à Covid-19, cabendo-lhe, tão somente, a definição do que vem a ser atividade essencial. O Presidente da República, como Chefe de Estado e de Governo tem por dever constitucional formular as políticas públicas sobre diversos prismas, e não apenas pelo ângulo do direito à saúde. Nesse sentido, incumbe a ele e seus ministros, cuidar dos rumos econômicos do País e também garantir que haja orçamento suficiente para repassar recursos para os estados e municípios.
Nesse contexto, deve-se buscar um equilíbrio entre os direitos fundamentais em conflito, na pandemia, quais sejam, o direito à vida, à saúde, ao trabalho e a livre iniciativa. Vale dizer, que do ponto de vista estritamente jurídico e constitucional se tratam todos de direitos fundamentais, previstos na Constituição de 1988, não havendo hierarquia entre eles, pois do contrário se admitiria a existência de normas constitucionais inconstitucionais36, o que já foi rechaçado pelo próprio Supremo Tribunal Federal. A Constituição brasileira não institui nenhuma hierarquia valorativa, todos os direitos nela previstos demandam igual proteção.
As decisões, no tocante ao que se enquadra ou não como atividade essencial, foram levadas a efeito pelo Presidente da República, no exercício de seu poder discricionário e com fulcro no princípio da proporcionalidade, que levou ao sopesamento, no caso concreto, dos princípios constitucionais em conflito. Indubitavelmente, não se trata de tarefa das mais fáceis. Ademais, simplesmente negar à população o direito ao trabalho, à retomada das atividades econômicas e benefícios sociais necessários é também violar o direito à dignidade humana e o direito à vida.
Há que se levar em consideração que a decisão do Supremo Tribunal Federal37, dando competência para Estados e Municípios, sem norma geral uniforme, conduziu a inúmeras dúvidas e divergências entre os entes federativos. Nesse contexto, transferiu-se a responsabilidade para os Estados e Municípios, que deveriam tomar as medidas de acordo com a gravidade em seu território. Em muitos casos foram exageradas, com prejuízos para si, para as unidades vizinhas e/ou para todos.
Olvidou-se que se tem um estado federal cooperativo. Deve haver uma cooperação entre União, Estados e Municípios, entre os Estados, entre estes e os Municípios e estes entre si: O que são distanciamento? Isolamento? Paralisação total ou parcial? Desemprego? Fome? Outras causas de mortes? Atingiu-se a produção agropecuária e abastecimento alimentar (art. 23, VIII, CF), a produção e consumo (art. 23, V, CF) que são competências comuns; o comércio exterior e interestadual e outros dispositivos do art. 22, de competência privativa da União. A restrição de horários em bares, restaurantes, parques, o isolamento familiar, etc. influenciaram na busca de soluções. Todas essas medidas agravaram ou reduziram os riscos? Qual o custo/benefício? Todos participaram. Como atribuir responsabilidade ao Presidente da República que buscou as soluções possíveis, com as cautelas necessárias para tanto. A Ciência é conhecimento, leitura, meditação, instrução, sabedoria; soma de conhecimentos humanos considerados em conjunto. A pandemia da Covid-19 deve compreender as ciências médicas, econômicas, humanas, morais e sociais.
Críticas, sempre poderão ser emitidas quanto aos critérios elencados pelo Governo Federal para formular as políticas públicas, mas daí a se criminalizar a eleição desses critérios é coisa bem distinta. Até porque ao se adotar essa interpretação teria que se levar a julgamento a quase totalidade dos Chefes de Estado do mundo, que empreenderam as mais diversas medidas no combate à propagação da Covid-19, algumas eficazes e outras não, mas todas com o fito de proteger a população.
VII - DA INEXISTÊNCIA DE PARTICIPAÇÃO DIRETA DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA NOS POSSÍVEIS CRIMES DE ESTELIONATO, CORRUPÇÃO PASSIVA, ADVOCACIA ADMINISTRATIVA E IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA
Os trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid-19, bem como o Parecer Jurídico elaborado pelos Professores Miguel Reale Jr., Dra. Sylvia Steiner, Helena Regina Lobo da Costa e Alexandre Wünderlich não imputam diretamente a prática de crime contra à administração pública, improbidade administrativa, estelionato (art.171 do CP), corrupção passiva (art. 317 do CP) e advocacia administrativa (art.321 do CP) ao Presidente da República.
Não houve comprovação de recebimento de qualquer vantagem indevida por parte do Presidente da República. Não há comprovação de autoria e nem materialidade do crime no que se refere às condutas do Presidente da República. Ademais, as acusações de possíveis irregularidades no âmbito do Ministério da Saúde, elas veemente rebatidas pelo Presidente da República que sempre se manifestou no sentido de que deveriam ser investigadas, tanto é que foi instaurado Inquérito policial no dia 30/06/21 em face dos depoimentos dos irmãos Miranda.
VIII - DAS RESPOSTAS AOS QUESITOS FORMULADOS
1.Em face da decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI n.°6.341/DF o papel da União no combate à epidemia ficou bastante reduzido, pois ficou consignado que a competência seria concorrente, e que os Estados e os Municípios poderiam adotar a forma que desejassem para combatê-la. Transferiu-se, à evidência, a responsabilidade direta do combate àquelas unidades federativas, passando a ser supletivo o combate pela União, não mais formuladora do “planejamento” e da “promoção” da defesa contra a calamidade pública, mas acolitadora das políticas que cada unidade federativa viesse a adotar na luta contra o flagelo.
2. Compete privativamente ao Ministério Público, no caso, o Procurador Geral da República promover a acusação do Presidente da República pelo cometimento de infração penal comum, cujo julgamento será feito pelo Supremo Tribunal Federal, em face do disposto no art. 129, inc. I, da Constituição Federal de 1988.
3. O significado da expressão “violar patentemente” qualquer direito ou garantia individual ou direito social, constante do item 9 do art.7° da Lei n.°1.079/50 (que define os crimes de responsabilidade e regula o seu processo e julgamento), traduz-se a necessidade de verificar de maneira inquestionável a violação desses direitos pelo Presidente da República. O termo “patentemente” tem o condão de afastar qualquer acusação vaga, genérica ou imprecisa como ocorre no caso sub examine. A violação tem que ser objetivamente aferível, inquestionável, devidamente comprovada e nesse sentido faz-se indispensável que se indique qual ou quais daquelas 112 possíveis infrações previstas nos art.5° e 6° do Texto Constitucional teriam sido flagrantemente violadas. O emprego do vocábulo “patentemente” visa a excluir conjecturas ou inferências sem a descrição precisa de um determinado tipo sancionável.
4. Nenhuma atitude do Presidente da República configurou o crime de exercício ilegal de medicina previsto no art. 263 do Código Penal. Pelo contrário, todas as manifestações e atitudes do Presidente da República se pautaram em estudos científicos, no Parecer nº 04/2020 do Conselho Federal de Medicina e no princípio da autonomia do médico, para no caso concreto, prescrever o medicamento que entender mais eficaz, desde que com a anuência do paciente.
5. A participação do Presidente da República em eventos públicos não configura a prática de crime previsto no art. 263 do Código Penal consistente em expor a vida e a saúde de outrem a perigo direto e iminente. Em nenhuma dessas ocasiões se mostra possível identificar o elemento dolo na conduta do Presidente da República, nem o viés de promover reuniões com o objetivo precípuo de colocar em risco a vida e a saúde de outrem. Igualmente, não se pode inferir se as pessoas que se encontravam nos eventos públicos, já estavam imunizadas, vacinadas ou testarem negativo para o exame da Covid-19. De outra parte o tipo penal previsto, a despeito de mencionar qualquer pessoa, exige que haja uma vítima determinada o que é impossível nessa hipótese.
6. O Presidente de República não foi acusado da prática de ato de improbidade administrativa, previsto na Lei nº 8.429, de 02/06/92 e da análise das manifestações e atitudes do Presidente da República não se vislumbra a ocorrência de nenhum ato de improbidade administrativa na gestão da Pandemia da Covid-19.
7. Tendo em vista os trabalhos realizados pela Comissão Parlamentar de Inquérito – “CPI da Covid-19” e o teor do Parecer Jurídico elaborado pelos Professores Miguel Reale Jr., Dra. Sylvia Steiner, Helena Regina Lobo da Costa e Alexandre Wünderlich não se verifica a acusação, direta, da prática de crimes previstos no Código Penal no art. 171 (estelionato), art. 317 (corrupção passiva) e art. 321 (advocacia administrativa) pelo Presidente da República.
8. Nenhuma atitude do Presidente da República pode ser considerada como ataque generalizado ou sistemático contra a população civil por motivo político, configurado crime contra a humanidade, conforme previsto no art. 7º do Estatuto de Roma, sujeito a julgamento pelo Tribunal Penal Internacional. O Governo Federal, dentro de sua competência, tomou a iniciativa de empreender esforços para evitar o contágio da Covid-19 nos povos indígenas, se antecipando a própria Organização Mundial de Saúde.
Foi adotada uma política de natureza eminentemente assistencial e de suporte aos povos indígenas. Também, não restou comprovado a presença do dolo que é exigida no tipo penal referido. No caso da crise de oxigênio ocorrida em Manaus, também não se mostra juridicamente possível qualquer tentativa de caracterização de crime contra a humanidade cometido pelo Presidente da República, eis que lhe falta o elemento essencial o dolo, ou seja, a intenção. A atuação do Governo Federal na crise de Manaus, foi tempestiva. Frise-se, também que a atuação do Tribunal Penal Internacional se dá forma subsidiária ao sistema jurídico pátrio.
9. Não se mostra possível imputar ao Presidente da República qualquer responsabilidade relativa ao colapso na saúde em Manaus, no Estado do Amazonas. O Governo Federal empreendeu esforços, dentro da competência da União, no sentido de conter a pandemia da Covid-19.
No tocante à Manaus, foram repassados recursos, foi prestado auxilio no envio do oxigênio, bem como foi enviada equipe do Ministério da Saúde in loco para auxiliar na gestão da crise. Registre-se, que os Estados e municípios têm autonomia e competência para adotarem as medidas que entenderem necessárias para conter a pandemia. Não se pode igualmente imputar qualquer responsabilidade ao Presidente da República por não ter decretado intervenção federal no Estado do Amazonas em face da crise de insuficiência de oxigênio que hipoteticamente se daria com base no art. 34, inc. VII, alínea b da CF/88: “assegurar a observância dos direitos da pessoa humana.
Nesse caso cabe, exclusivamente ao Procurador-Geral da República representar e ao Supremo Tribunal Federal dar provimento autorizando a intervenção federal e não ao Presidente da República. Outrossim, em face da decisão do próprio Supremo Tribunal Federal na ADI n.°6.341/DF não subsistiria fundamento jurídico para o Presidente da República decretar intervenção federal no Estado do Amazonas, com base nos demais incisos do art.34, além dessa medida não se mostrar a mais eficaz, vez que toda a ajuda já estava sendo prestada pelo Governo Federal, respeitando, claro a autonomia estadual e municipal constitucionalmente assegurada.
10. Não houve negligência, mas, sim, o necessário cuidado em face da legislação sobre licitações e contratações então vigente. Cabe lembrar que a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro -LINDB, em sua redação atual, determina que se levem em consideração as consequências práticas da decisão e especial cuidado com peculiaridades do caso.
Na verdade, o suporte legal para a contratação surgiu apenas com a promulgação da Lei nº 14.125, de 10/03/21, que estabeleceu medidas excepcionais para a aquisição de vacinas, entre as quais o pagamento antecipado e a não imposição de penalidades ao fornecedor.
É o nosso Parecer.
S.M.J.
São Paulo, 27 de setembro de 2021.
IVES GANDRA DA SILVA MARTINS
SAMANTHA R. MEYER-PFLUG MARQUES
ADILSON ABREU DALLARI
DIRCEO TORRECILLAS RAMOS
1 Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n.°6.341/DF. Tribunal Pleno. Relator Ministro Marco Aurélio. Relator p/ Acórdão: Edson Fachin. Julgado em 15/04/2020.
2 Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n.°202.940/DF. Relatora Ministra Rosa Weber.
3 Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 672/DF MC-ref. Relator Ministro Alexandre de Moraes. Tribunal Pleno. Julgamento: 13/10/2020. Publicação: 29/10/2020.
4 Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/pareceres/BR/2020/4
5 Cf. Supremo Tribunal Federal. Ação Penal n.°470 QO- quinta. Relator Ministro Joaquim Barbosa. Datado Julgamento 08/04/10, Publicação no DJE de 03/09/10.
6 Ofício S/2021/SGTES/GAB/SGTS/MS de 07/01/2021.
7 Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n.6 .341/DF. Tribunal Pleno. Relator Ministro Marco Aurélio. Relator p/ Acórdão: Edson Fachin. Julgado em 15/04/2020.
8 Superior Tribunal de Justiça. Ação Penal n. 993/DF. Relator Min. Francisco Falcão.
9 BASTOS, Celso Ribeiro. MARTINS, Ives Gandra da Silva. Comentários à Constituição do Brasil.São Paulo: Saraiva, 3° vol., Tomo II, arts. 24 a 36, 2002, 2°ed, p. 400.
10 Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n.°6.341/DF. Tribunal Pleno. Relator Ministro Marco Aurélio. Relator p/ Acórdão: Edson Fachin. Julgado em 15/04/2020.
11 Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n.°6.341/DF. Tribunal Pleno. Relator Ministro Marco Aurélio. Relator p/ Acórdão: Edson Fachin. Julgado em 15/04/2020.
12 Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n.°6.341/DF. Tribunal Pleno. Relator Ministro Marco Aurélio. Relator p/ Acórdão: Edson Fachin. Julgado em 15/04/2020.
13 Nota 5 - http://www.cofen.gov.br/wp-content/uploads/2020/03/Nota-Informativa_05-2020_DAF_SCTIE_Cloroquina.pdf.pdf
14 Cf. Resposta do Ministério da Saúde em 12/06/2020 ao Ofício nº 80/2020/CNF/GIAC-COVID19, de 22/05/2020, do Ministério Público Federal.
15 Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n.°6.341/DF. Tribunal Pleno. Relator Ministro Marco Aurélio. Relator p/ Acórdão: Edson Fachin. Julgado em 15/04/2020.
16 Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n.°6.341/DF. Tribunal Pleno. Relator Ministro Marco Aurélio. Relator p/ Acórdão: Edson Fachin. Julgado em 15/04/2020.
17 Para Alexis de Tocqueville: “(...) A expressão é a forma exterior e, se assim posso exprimir-me, o corpo do pensamento, mas não é o próprio pensamento.” (TOCQUEVILLE, Alexis, TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América, 2ºed., Belo Horizonte: Itatiaia, 1998, p. 140)
18 Cf. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24º ed., São Paulo: Malheiros, 2005, p. 241.
19 BASTOS Celso Ribeiro. BASTOS, Celso Ribeiro, Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2002, p. 331.
20 Para Ronald Dworkin “(...) Naturalmente, a liberdade individual seria muito restringida se ninguém tivesse permissão de fazer nada que outra pessoa julgasse ofensivo”. (DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes. 2000, p. 504.)
21 Para Raoul Vaneigem: “A liberdade de tudo dizer só existe quando reivindicada a todo instante”.(VANEIGEM, Raoul. Nada é sagrado tudo pode ser dito: reflexões sobre a liberdade de expressão. São Paulo: Parábola Breve, 2004.p. 27).
22 MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de Expressão e Discurso do Ódio. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 100.
23 Art. 4º O incentivo financeiro de que trata está Portaria será transferido aos municípios e Distrito Federal, em parcela única, considerando o quantitativo de equipes que possuem cadastro de usuários pertencentes ao conjunto de populações descritas no art. 2º desta Portaria, e corresponderá aos seguintes valores:
I - R$ 2.800,00 (dois mil e oitocentos reais) por equipe de Saúde da Família (eSF);
II - R$ 2.100,00 (dois mil e cem reais) por equipe de Atenção Primária - Modalidade II 30h; e
III - R$ 1.400,00 (mil e quatrocentos reais) por equipe de Atenção Primária - Modalidade I 20h.
§ 1º O incentivo financeiro de que trata está Portaria será transferido do Fundo Nacional de Saúde aos Fundos Municipais e Distrital de Saúde, de forma automática e em parcela única, considerando o quantitativo de equipes credenciadas e homologadas pelo Ministério da Saúde, que cumpriram o estabelecido no caput, de acordo com o Anexo a esta Portaria.
24 Informações disponíveis no site https://saudeindigena.saude.gov.br.
25 Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.° 709/DF. Medida Cautelar. Relator Ministro Luís Roberto Barroso. DJ.16/03/2021.
26 Cf. NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Penal: parte geral: arts. 1º a 120 do Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
27 Supremo Tribunal Federal. Ação Penal n.° 975, Relator Min. Edson Fachin. Segunda Turma, Julgado em 03/10/2017, Acórdão eletrônico DJe-040. Divulgado em 01/03/18. Publicado em 02/03/18.
28 Disponível em: https://www.rededorsaoluiz.com.br/noticias/artigo/o-que-e-imunidade-de-rebanho
29 LACERDA, Caroline Dutra; IMOVICH, Hernan. O que é imunidade de rebanho e quais as implicações? Disponível em: https://jornal.usp.br/artigos/o-que-e-imunidade-de-rebanho-e-quais-as-implicacoes/
30 Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/pareceres/BR/2020/4
31 VII - O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente.
32 Cf. DELMANTO, Celso; DELMANTO, Roberto; DELMANTO, Roberto Jr; DELMANTO; Fabio M. de Almeida. Código Penal Comentado. Rio de Janeiro: Renovar, 6°ed.,2002 ,p.
33DELMANTO, Celso; DELMANTO, Roberto; DELMANTO, Roberto Jr; DELMANTO; Fabio M. de Almeida. Código Penal Comentado. Rio de Janeiro: Renovar, 6°ed.,2002 ,p. 283.
34 SOUZA, Luciano Anderson. In Código Penal Comentado; São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020.
35 Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n.°6.341/DF. Tribunal Pleno. Relator Ministro Marco Aurélio. Relator p/ Acórdão: Edson Fachin. Julgado em 15/04/2020.
36 BACHOF, Otto. Normas constitucionais inconstitucionais. Coimbra: Almedina, 2014.
37 Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n.°6.341/DF. Tribunal Pleno. Relator Ministro Marco Aurélio. Relator p/ Acórdão: Edson Fachin. Julgado em 15/04/2020.