PARECER
O presente parecer é elaborado “pro bono”, por solicitação do eminente Senador Fernando Bezerra Coelho, por quatro professores de direito constitucional e direito administrativo, sem qualquer vinculação política a partidos e à luz exclusiva da Lei Suprema. Para tanto nos formula os seguintes quesitos:
1.Em face da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na ADI n° 6.341/DF qual o papel da União no combate à epidemia em face do reconhecimento da competência dos Estados e Municípios?
2.A quem compete promover a acusação do Presidente da República pelo cometimento de infração penal comum, cujo julgamento será feito pelo Supremo Tribunal Federal, considerando a competência privativa do Ministério Público, prevista no art. 129, inc. I, da Constituição Federal?
3. Qual é o significado da expressão “violar patentemente” qualquer direito ou garantia individual ou direito social, literalmente constante do item 9, do art. 7º, da Lei nº 1.079, de 10/04/50?
4. Alguma atitude do Presidente da República configura crime de exercício ilegal da medicina, nos termos do art. 263 do Código Penal?
5. A participação do Presidente da República em eventos públicos pode configurar o crime previsto no art. 132 do Código Penal, consistente em expor a vida e a saúde de outrem a perigo direto e iminente?
6. O Presidente de República foi acusado da prática de algum ato de improbidade administrativa, previsto na Lei nº 8.429, de 02/06/92?
7. O Presidente da República foi acusado, diretamente, da prática de crimes previstos no Código Penal no art. 171 (estelionato), art. 317 (corrupção passiva) e art. 321 (advocacia administrativa)?
8. Alguma atitude do Presidente da República pode ser considerada como ataque generalizado ou sistemático contra a população civil por motivo político, configurando crime contra a humanidade, conforme previsto no art. 7º do Estatuto de Roma, sujeito a julgamento pelo Tribunal Penal Internacional?
9. Pode-se imputar alguma responsabilidade ao Presidente da República pelo colapso na saúde ocorrido no Estado do Amazonas?
10. Em face das incertezas no tocante à própria pandemia e aos meios para combate-la, e considerando os termos aparentemente leoninos da proposta da Pfizer, a demora na contratação pode ser havida como negligência ou inoperância, ou, ao contrário, configura atitude prudente e estritamente conforme à legislação?
I- DA COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO
De início, em face do exíguo tempo para elaborá-lo, sua formatação será mais próxima de uma opinião legal, nada obstante enfrentar todas as questões essenciais da CPI denominada pela mídia de CPI da COVID.
É necessário não se esquecer que o §3º do art. 58 da CF/88 tem a seguinte dicção:
§ 3º. As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores.
Por tal dispositivo, os senadores desvestem a roupagem de políticos e ganham aquela de magistrados com poderes interrogatórios próprios e a imparcialidade inerente à função pertinente ao Poder Judiciário.
Sejam quais forem as ideologias que carregam na representação de seus eleitores, a busca da verdade do fato a ser apurado é o objeto da análise, não mais sendo estudado à luz das preferências políticas, mas sim da realidade jurídica.
Ora, tão logo, internacionalmente, foi declarada a Covid-19, como pandemia, buscou-se um remédio adequado para combatê-la, sem que até hoje haja um fármaco comprovadamente eficaz para eliminá-la, dependendo a recuperação das condições físicas de cada contaminado pelo “vírus” e da indicação terapêutica mais adaptável a seu organismo.
Não sem razão, declarou, autoridade reconhecida das mais respeitáveis entidades de medicina do país, que os médicos responsáveis é que deveriam escolher o melhor tratamento para o paciente, conforme suas condições.
II – DA COMPETÊNCIA DA UNIÃO PARA PLANEJAR E PROMOVER A DEFESA PERMANENTE CONTRA AS CALAMIDADES PÚBLICAS
Reza o inc. XVII do art. 21 da Constituição de 1988 que compete à União:
XVIII - planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações; (...)
O artigo é dedicado à competência de atribuições da União, exclusiva e privativa. Um dos signatários do presente parecer não faz distinção entre o que é privativo ou exclusivo, considerando os dois adjetivos sinônimos no discurso constitucional. Vale dizer, exclusivamente à União, privativamente à União caberia o “planejamento” e a “promoção” da defesa contra calamidades públicas, sendo a pandemia reconhecida internacionalmente como uma calamidade pública. Talvez a maior do mundo, após a gripe espanhola.
Ora, no momento em que a Suprema Corte1 entendeu que para o combate à calamidade pública a competência seria concorrente – e isto ocorreu no inicio da pandemia (08/04/2020) -, e que os Estados e os Municípios poderiam adotar a forma que desejassem para combatê-la, transferiu, à evidência, a responsabilidade direta do combate àquelas unidades federativas, passando a ser supletivo o combate pela União, não mais formuladora do “planejamento” e da “promoção” da defesa contra a calamidade pública, mas acolitadora das politicas que cada unidade federativa viesse a adotar na luta contra o flagelo.
De concorrente, a competência de Estados e Municípios passou a ser primária, pois cabendo a cada unidade definir a forma de combater, pelo confinamento, pelas barreiras para ingresso de pessoas em seu território, ou qualquer outra, sendo secundária a função da União.
Foi por essa razão que os Senadores da República concordaram, na busca da verdade, como magistrados que passaram a ser, em ouvir os Governadores de Estados. A Suprema Corte, que autorizou a abertura da CPI dita da COVID, concedeu, entretanto, “habeas corpus”2 para que os governadores não depusessem. A CPI foi impedida, pois, de investigar aspectos essenciais à verdade dos fatos, com o que a definição de responsabilidades sobre o combate passou a estar definitivamente prejudicada, pois aqueles que definiram a forma de combater a pandemia e utilizaram, em grande parte, os recursos da União para fazê-lo, não foram ouvidos.
Entendemos, pois, de início, que à CPI da COVID, por força da própria orientação da Suprema Corte que deu menor relevância ao inciso XVIII do artigo 21 da CF/88 que atribui competência exclusiva no combate às calamidades à União e ofertou competência principal àquilo que denominou de competência concorrente (artigo 24, inciso XII) a Estados e Municípios, foi impedida de estabelecer a verdade material, qual seja, o que realmente ocorreu em toda a sua extensão para o fato concreto de saber-se se foi ou não bem conduzido o combate à pandemia.
É de se lembrar ainda que os países europeus, mais desenvolvidos e com civilização mais antiga que no Brasil, além de terem distâncias a percorrer muito menores, facilitando o combate à COVID, tiveram número de mortes proporcionalmente superior ao do Brasil, nas sucessivas pesquisas.
Por outro lado, o número de pessoas mortas no Brasil, em sua esmagadora maioria deu-se em hospitais com os melhores médicos da especialidade que, à falta de um remédio até hoje de eficácia absoluta, morreram com toda assistência possível.
Tais fatos, todavia, são explorados incorretamente como se tivessem falecido não em hospitais com toda a assistência, mas em campos de concentração nazistas, sendo de menor relevância quando comparados com os mesmos fatos de outros países, nos quais a luta contra a pandemia foi rigorosamente a mesma.
É de se lembrar, por fim, que o surgimento da pandemia e a desorientação mundial para combatê-la, assim como o tempo em que se conviveu com ela sem vacinação, esta mesma sujeita a questionamentos de impossível resposta imediata sobre eventuais efeitos colaterais futuros, propiciaram o surgimento das mais variadas teorias sobre o melhor caminho de erradicá-la, ainda não se tendo encontrado o melhor remédio para combatê-la, embora as vacinas surgidas sejam o primeiro passo.
Não se pode esquecer que a Pfizer, segundo os jornais, quando impôs clausulas que afetavam a soberania brasileira em seu contrato, levando advogados públicos a não quererem se responsabilizar por eventuais efeitos futuros, se gerassem um número de ações judiciais a serem suportadas não pelo fabricante, mas pelo Brasil, demonstra quão difícil foi o período de negociação para aquela vacina, pois no “Episódio Pfizer”, tanto os advogados públicos, quanto os advogados da Instituição tinham razão.
Os públicos por não quererem se responsabilizar se considerassem legitimo ser o Brasil obrigado a suportar milhares de ações no Exterior por um eventual “efeito talidomida” da vacina e os advogados da Pfizer, se o efeito viesse ocorrer, por ter sido o fabricante obrigado a produzir a vacina em velocidade de tempo desaconselhável por falta de testes no tempo, pois eventuais ações poderiam representar a falência do laboratório.
Como se percebe, a incerteza e a necessidade de combate ao terrível mal foram os ingredientes desta luta, cujos resultados finais que, neste momento, estamos vendo, nada obstante a tragédia de muitas mortes no Brasil e no mundo, começam a aparecer para tranquilidade da população.
III - CONSIDERAÇÕES SOBRE O CRIME DE RESPONSABILIDADE
Segundo a apreciação dos fatos feita no Parecer Jurídico elaborado pelos Professores Miguel Reale Jr., Sylvia Steiner, Helena Regina Lobo da Costa e Alexandre Wünderlich, o Presidente da República teria cometido o crime de responsabilidade previsto no art. 7º, item 9, da Lei nº 1.079, de 10/04/50, consistente em “violar patentemente qualquer direito ou garantia individual constante do art. 141 e bem assim os direitos sociais assegurados no art. 157 da Constituição”.
Os mencionados artigos, da Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 1946, correspondem, respectivamente, aos artigos 5º e 7º da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, atualmente em vigor. De imediato cabe uma observação: o art. 5º tem 78 incisos e o art. 7º 34 incisos. Diante disso, pode-se ver que a imputação genérica abrange 112 possíveis infrações. Como se sabe, o primeiro e mais elementar requisito para que alguém possa se defender é saber do que está sendo acusado. Qual específico e determinado comportamento do Presidente da República ensejaria a aplicação do mencionado dispositivo da Lei nº 1079/50?
O Prof. Miguel Reale Jr. se refere a um possível descumprimento do princípio da eficiência, previsto no caput do art. 37 da Constituição Federal, uma vez que, em sua opinião, o Presidente da República não deu aplicação às inúmeras medidas excepcionais (de restrições de direitos e imposição de obrigações) previstas na Lei nº 13.979, de 06/02/20. Textualmente: “não houve de sua parte senão obstáculos ao cumprimento das medidas indicadas como imprescindíveis para a proteção da vida da população”.
Ignorou o Prof. Miguel Reale Jr que a própria lei já estabelecia uma série de restrições e cautelas com relação à aplicação das medidas excepcionais. Com efeito, o §1º do art. 3º, que elenca o rol de excepcionalidades, dispõe:
§1º. As medidas previstas neste artigo somente poderão ser determinadas com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde e deverão ser limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública.
Os parágrafos subsequentes tratam de limitações à aplicação de determinadas e específicas medidas excepcionais. Resumindo: não havia, pois isso seria absurdo, a determinação legal de aplicar todas aquelas medidas, incondicionalmente.
Na verdade, a enumeração das supostas infrações que teriam sido cometidas pelo Presidente da República se resumem numa coletânea de matérias jornalísticas, contendo apenas opiniões publicamente emitidas pelo Presidente, mas, não, atos administrativos, decisões ou determinações oficiais. Pode-se até verberar as opiniões, como imprudentes ou desabridas, mas não deixam de ser simples opiniões, amparadas pela liberdade de manifestação, assegurada pelo art. 220 da Constituição Federal.
Contraditoriamente, o arrazoado se refere a uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental n.°672/DF3, proposta pelo Conselho Federal da OAB exigindo a adoção, pelo Governo Federal, de uma série de medidas, na qual foi concedida medida liminar, em 08/04/20, assegurando aos estados e municípios competência concorrente para a adoção de medidas restritivas durante a pandemia. Ou seja; ficou claramente estabelecido o poder-dever de atuação dos entes federados, que poderiam agir livremente, sem subordinação ou coordenação do Presidente da República. Não tem sentido algum a afirmação do ilustre Prof. Reale Jr. de que “o Presidente da República deixou de cumprir o dever de coordenação do governo federal”.
Chega-se ao absurdo da formulação de uma acusação, totalmente gratuita, da existência de uma deliberação no sentido de gerar uma chamada imunidade de rebanho, pela abstenção de qualquer medida de combate à pandemia. Ora, como se sabe, em nenhum momento o governo federal deixou de encaminhar recursos financeiros, materiais e equipamentos para os estados. É publicamente sabido que as Forças Armadas, comandadas pelo Presidente da República, tiveram uma excelente atuação na logística para que os insumos chegassem a todo o território nacional, inclusive para as populações indígenas e ribeirinhas.
O arrazoado traz uma série de considerações sobre o uso do medicamento hidroxicloroquina, insinuando até exercício ilegal da medicina pelo Presidente, o que é totalmente despropositado. Na verdade, novamente se tratam de simples opiniões do Presidente, e não de qualquer decisão ou determinação formal. Nessa matéria, o Conselho Federal de Medicina4 se pronunciou no sentido de que a adoção, ou não, de qualquer medicamento cabe exclusivamente ao médico com relação ao seu paciente. Positivamente, não há infração alguma quanto a esse tópico.
Por último, verbera-se ferozmente a suposta demora na aquisição de vacinas, sendo que o ponto central estaria na intolerável recusa de propostas feitas pela Pfizer. Como agora se sabe, o problema estava em que as condições estabelecidas pelo laboratório eram incompatíveis com a legislação brasileira sobre licitações e contratações públicas. O menor problema era o da dispensa de licitação, que se justificaria pelo caráter emergencial, mas a legislação vigente não admitia o pagamento antecipado, nem, muitíssimo menos, a total irresponsabilidade do fornecedor por eventuais efeitos danosos da vacina. Alegava a Pfizer que, dado o caráter excepcional e experimental da vacina, caberia ao governo brasileiro assumir totalmente a responsabilidade por eventuais futuros efeitos colaterais ou mesmo óbitos que pudessem vir a ser causados, ao longo do tempo, em decorrência da vacina. Ou seja, o governo brasileiro deveria arcar, ilimitadamente, com todas as responsabilidades.
Não sem razão os órgãos de assessoramento jurídico do governo federal se manifestaram contra a aceitação das propostas. Certamente o Presidente teria cometido crime de responsabilidade se formalizasse um contrato indiscutivelmente ilegal. A única justificativa apresentada no arrazoado do Prof. Reale Jr. é que outros países haviam aceitado as mesmas condições. Sem comentários.
Neste passo cabe esclarecer que todas essas breves considerações sobre os fatos mencionados na diatribe não visam questionar a respeitabilidade do Prof. Miguel Reale Jr. e seus coadjuvantes. Elas foram necessárias para a sustentação das considerações estritamente jurídicas que passam a ser feitas.
Nos termos do parágrafo único do art. 1º da Constituição Federal, todo poder emana do povo, que o exerce diretamente ou por meio de seus representantes democraticamente eleitos. O Presidente da República foi escolhido pelo povo, titular do poder, e sua destituição corresponde a uma violação da vontade popular. Por essa razão o Texto Constitucional é bastante cauteloso no tocante à possibilidade de desconstituição do mandato popular presidencial.
Indo diretamente ao ponto essencial, cabe transcrever o disposto no art. 86 da Constituição Federal:
Art. 86. Admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade.
Vê-se, portanto, que o Presidente está sujeito a julgamento por duas diferentes modalidades de crimes: as infrações penais comuns e os crimes de responsabilidade. Em ambos os casos sempre será absolutamente imprescindível a observância da garantia do devido processo legal. No caso dos crimes comuns, a acusação é privativa do Ministério Público (art. 129, inciso I, da CF)5 e o julgamento é feito perante o Supremo Tribunal Federal, o que garante a fiel observância do direito de defesa.
Nos crimes de responsabilidade há uma aparente flexibilidade, na medida em que a acusação pode ser feita por qualquer pessoa (art. 14 da Lei nº 1.079/50) e o julgamento é feito perante os órgãos do Poder Legislativo. Na verdade, cabe ao Legislativo, sob pena de nulidade do processo, observar fielmente todas as garantias constitucionais do acusado.
A primeira dessas garantias é a da tipicidade da conduta. Nos termos do art. 5º, inc. XXXIX da Constituição Federal, não há crime algum, comum ou de responsabilidade, sem lei anterior que o defina. No caso em exame, conforme acima anotado, a acusação seria a do cometimento de crime de responsabilidade previsto no art. 7º, item 9, da Lei nº 1.079, de 10/04/50, consistente em violar “patentemente” qualquer direito ou garantia individual ou quaisquer dos direitos sociais assegurados pela Constituição Federal.
Como se sabe, a lei não tem palavras inúteis. O vocábulo “patentemente” afasta qualquer acusação vaga, genérica ou imprecisa. A violação tem que ser objetivamente aferível, inquestionável, devidamente comprovada. Para cumprimento desse requisito, literalmente exigido pela Lei, é indispensável, primeiramente, indicar qual ou quais daquelas 112 possíveis infrações teria sido “patentemente” configurada e comprovada.
No caso em exame, porém, conforme foi demonstrado nos comentários sobre os fatos, não há uma única acusação “patentemente” identificada, mas apenas conjecturas ou inferências sem a descrição precisa de um determinado tipo sancionável.
Cabe observar, ainda, que quando se fala em conduta omissiva é preciso deixar perfeitamente clara a existência de um dever de atuar, praticando determinados atos, e, também da possibilidade, tanto jurídica como material, de sua prática. No caso específico do atraso na contratação das vacinas do laboratório Pfizer ficou clara a inviabilidade jurídica da imediata contratação, dado que as condições propostas pelo fornecedor eram totalmente incompatíveis com a legislação que disciplina as licitações e contratações públicas (Lei nº 8.666, de 21/06/93). Não há omissão no cumprimento do dever quando a autoridade deixa de praticar o que é até proibido por lei.
Destarte, é relevante lembrar que as medidas excepcionais para combate à pandemia poderiam vulnerar dispositivos da Lei Complementar nº 101, de 04/05/00, Lei de Responsabilidade Fiscal, que, em seu art. 73, estipula, expressamente, que o descumprimento das normas nela estabelecidas poderiam configurar crimes contra as finanças públicas, previstos no Código Penal, ou crimes de responsabilidade, previstos na Lei nº 1.079, de 10/04/50. Diante disso, em 27/05/20 foi editada a Lei Complementar nº 173, que estabeleceu o Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavirus SARS-Cov-2, suspendendo temporariamente a aplicação da Lei de Responsabilidade Fiscal, para que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios pudessem atuar eficazmente no combate à pandemia.
Em síntese, as medidas excepcionais, previstas na Lei nº 13.979, de 06/02/20 deveriam ser aplicadas em consonância com todo o sistema normativo, não podendo ser acusado de ineficiente ou omisso o governante que deixou de tomar alguma providência vedada pela legislação então vigente.
IV - DA CRISE DE OXIGÊNIO EM MANAUS E DA NÃO INTERVENÇÃO FEDERAL
A cidade de Manaus, no Amazonas, no final de 2020 e início de 2021 registrou um aumento considerável de casos de Covid-19, o que levou, consequentemente, a um aumento das internações. Em face disso o Ministério da Saúde mandou uma equipe in loco e realizou em 04/01/21 a primeira reunião, com a Dra. Mayra Pinheiro (representante do Ministério), com o governador, o secretário de saúde estadual, a imprensa e outras autoridades, com a finalidade de discutir a crise e propor soluções.
No dia 06/01/21 o Ministério da Saúde publica o Plano de Contingenciamento definido para Manaus. No dia 07/01/21 a Dra. Mayra Pinheiro envia oficio6 solicitando autorização para difundir e adotar o tratamento precoce. Vale dizer que no dia 07/01 o Secretário de Saúde do estado entra em contato com o Ministro da Saúde sobre o alerta que recebeu da White Martins, que prontamente o orienta a entrar em contato com o Comando Militar da Amazônia para auxilia-lo na logística do transporte de oxigênio e o próprio Ministro da Saúde vai para Manaus, nos dias 11 e 12, para se encontrar com representantes da respectiva empresa. Nesta reunião, houve a designação do Coronel Moura para ser responsável pelas tratativas relativas ao transporte de oxigênio. Em 12 de janeiro chegam os primeiros cilindros enviados de Guarulhos para Manaus, mas mesmo assim o colapso ocorreu nos dias 14 e 15 de janeiro.
Constata-se, pois, que não houve qualquer omissão do Governo Federal no que diz respeito à crise de desabastecimento de oxigênio em Manaus. Pelo contrário, ele empreendeu todos os esforços para contingencia-la. O Ministro da Saúde, além de mandar um representante, foi pessoalmente a Manaus, além de ter nomeado o Coronel Moura para auxiliar na logística e ter providenciado o envio de oxigênio solicitado. Ademais, era isso que incumbia ao Governo Federal realizar em face da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal que deixou a cargo dos Estados e Municípios a adoção de medidas contra a pandemia. Nesse sentido cumpre destacar trecho da aludida decisão:
4. A diretriz constitucional da hierarquização, constante do caput do art. 198 não significou hierarquização entre os entes federados, mas comando único, dentro de cada um deles. 5. É preciso ler as normas que integram a Lei 13.979, de 2020, como decorrendo da competência própria da União para legislar sobre vigilância epidemiológica, nos termos da Lei Geral do SUS, Lei 8.080, de 1990. O exercício da competência da União em nenhum momento diminuiu a competência própria dos demais entes da federação na realização de serviços da saúde, nem poderia, afinal, a diretriz constitucional é a de municipalizar esses serviços. 7
Não cabe ao Presidente da República ou ao Ministério da Saúde qualquer forma de interferência ou intervenção nas gestões estadual ou municipal da saúde, vez que são dotadas constitucionalmente de autonomia administrativa. A Lei nº 8.080/90 institui o Sistema Único de Saúde (SUS) e dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes. O SUS constitui-se em um sistema hierarquizado e de gestão descentralizada, com suas competências variando com os níveis de atenção à saúde e as pactuações tripartites, inclusive no que se refere ao financiamento.
A atribuição precípua do Ministério da Saúde consiste na normatização, definição de políticas gerais e descentralização de recursos, competindo aos gestores estaduais e municipais a alocação de recursos e atendimento à saúde ao usuário final, por meio de ações definidas em conformidade com suas próprias autonomias e discricionariedades de governo.
Nesse contexto, não se pode olvidar de questionar qual o papel desempenhado pelo governo estadual para evitar e combater essa crise, e de que modo foram gastos os recursos transferidos pela União para serem utilizados na pandemia. Destaca-se que o Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, recebeu denúncia8 oferecida pelo Procurador Geral da República contra o Governador do Amazonas pela prática dos delitos de dispensa irregular de licitação, fraude ao procedimento licitatório, peculato, liderança em organização criminosa e embaraço às investigações, na compra de ventiladores pulmonares (respiradores) para o tratamento de pacientes da Covid-19.
Não se mostra igualmente razoável imputar qualquer responsabilidade ao Presidente da República por não ter decretado intervenção federal no Estado do Amazonas em face da crise de insuficiência de oxigênio. O instituto da intervenção federal vem descrito no art. 34 da Constituição de 1988 e se trata de medida de natureza excepcionalíssima, vez que a regra matriz do regime federativo é o da autonomia dos entes federativos, ou seja, da não intervenção. Tanto é assim que desde a promulgação da Constituição, em 1988, até os dias atuais, é dizer, em trinta e três anos, só foi levada a cabo uma vez no Estado do Rio de Janeiro pelo então Presidente Michel Temer. Reza o art. 34 do Texto Constitucional:
“Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para:
I - manter a integridade nacional;
II - repelir invasão estrangeira ou de uma unidade da Federação em outra;
III - pôr termo a grave comprometimento da ordem pública;
IV - garantir o livre exercício de qualquer dos Poderes nas unidades da Federação;
V - reorganizar as finanças da unidade da Federação que:
a) suspender o pagamento da dívida fundada por mais de dois anos consecutivos, salvo motivo de força maior;
b) deixar de entregar aos Municípios receitas tributárias fixadas nesta Constituição, dentro dos prazos estabelecidos em lei;
VI - prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judicial;
VII - assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais:
a) forma republicana, sistema representativo e regime democrático;
b) direitos da pessoa humana;
c) autonomia municipal;
d) prestação de contas da administração pública, direta e indireta.”
Da simples leitura do dispositivo constitucional supracitado, depreende-se que a União poderia em tese declarar intervenção com base inc. VII, alínea b: “assegurar a observância dos direitos da pessoa humana.” Celso Ribeiro Bastos adverte:
“Achamos que, de fato, a Constituição Federal incidiu numa utopia. Levando em consideração a dimensão que ela dá à pessoa humana, ficaria difícil não encontrar uma situação em que não esteja violado algum direito humanos.” 9
A pandemia da Covid-19 por si só levou a violação de inúmeros direitos da pessoa humana, colocando o sistema de saúde do mundo inteiro em crise. Contudo, não é toda e qualquer lesão aos direitos da pessoa humana que ensejaria a intervenção, pois há situações que transcendem à responsabilidade do Estado, como é o caso da pandemia da Covid-19. Destarte, nesta hipótese, não cabe ao Presidente da República decretar a intervenção, pois o inc. III do art. 36 da Constituição é enfático ao dispor que:
Art. 36. A decretação da intervenção dependerá:
(...)
III- de provimento, pelo Supremo Tribunal Federal, de representação do Procurador-Geral da República, na hipótese do artigo 34, VII, e no caso de recusa à execução de lei federal” (grifos nossos)
Incumbe, exclusivamente ao Procurador-Geral da República representar e ao Supremo Tribunal Federal dar provimento autorizando a intervenção federal. Fica evidente, então, que por força da própria Constituição não cabe ao Presidente da República, mas sim ao Procurador Geral da República desencadear o processo e ao Supremo Tribunal Federal dar provimento ou não.
A intervenção federal é uma medida excepcional, drástica e morosa que por si só não se mostraria apta a conter a crise em Manaus, vez que as medidas cabíveis, no âmbito federal, já haviam sido tomadas tempestivamente pelo Ministério da Saúde.
De outra parte, a decretação da intervenção federal implicaria no afastamento de um governador legitimamente eleito pelo povo e se mostrava completamente inviável em face da decisão da mais alta Corte do País10 que expressamente estabeleceu a competência primária dos Estados e Municípios para definirem a forma de combate à pandemia da Covid-19.
Outrossim, não há que se mencionar aqui a suposta prática de qualquer ilícito cometido pelo Presidente da República em face da não decretação de intervenção federal, que frise-se, é um ato discricionário do Chefe do Poder Executivo e deve ser tomado com parcimônia e que no caso sub examine ele carecia de legitimidade constitucional para tanto, pois a titularidade da representação é exclusiva do Procurador-Geral da República. A não decretação da intervenção federal no Estado do Amazonas era a única decisão que se coadunava com a preservação do pacto federativo, do Estado Democrático de Direito e com a decisão do Supremo Tribunal Federal.11
V - DA IMPOSSIBILIDADE DE SE IMPUTAR AO PRESIDENTE DA REPÚBLICA A PRÁTICA DE CRIME CONTRA A HUMANIDADE (ART.7°, §1° DO ESTADO DE ROMA)
A Covid-19 é uma pandemia universal, que pegou de surpresa todos os países e o Brasil é um dos que melhores resultados obtiveram. O mal exigiu as mais diversas atitudes dos estudiosos e profissionais e mesmo entre eles, existiram e existem, muitas dúvidas. Como corolário não se pode incriminar o Presidente da República, que cumpriu com seus deveres, de acordo com a Constituição da República Federativa do Brasil de 5 de outubro de 1988.
No caso da crise de oxigênio ocorrida em Manaus, não se mostra juridicamente possível qualquer tentativa de caracterização de crime contra a humanidade cometido pelo Presidente da República, eis que lhe falta o elemento essencial o dolo, ou seja, a intenção. A atuação do Governo Federal na crise de Manaus, foi tempestiva. Afirmar que a difusão do uso do tratamento precoce contra a Covid-19 representou um “balão de ensaio” ou um “experimento científico” em Manaus e considera-lo como crime contra a humanidade não se mostra admissível nem juridicamente factível. O art. 7 °, §1° do Estatuto de Roma dispõe que:
Art.7 (1) Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por "crime contra a humanidade", qualquer um dos atos seguintes, quando cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque:
a) Homicídio;
b) Extermínio;
c) Escravidão;
d) Deportação ou transferência forçada de uma população;
e) Prisão ou outra forma de privação da liberdade física grave, em violação das normas fundamentais de direito internacional;
f) Tortura;
g) Agressão sexual, escravatura sexual, prostituição forçada, gravidez forçada, esterilização forçada ou qualquer outra forma de violência no campo sexual de gravidade comparável;
h) Perseguição de um grupo ou coletividade que possa ser identificado, por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de gênero, tal como definido no parágrafo 3o, ou em função de outros critérios universalmente reconhecidos como inaceitáveis no direito internacional, relacionados com qualquer ato referido neste parágrafo ou com qualquer crime da competência do Tribunal;
i) Desaparecimento forçado de pessoas;
j) Crime de apartheid;
k) Outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental. (grifos nossos)