Artigo de Flavio Flores da Cunha Bierrenbach* que aborda o tema “presunção de inocência”.

Houve época – não faz tanto tempo – em que um réu condenado em processo penal regular ia parar na cadeia. Porém, no auge do regime militar, em pleno governo Médici, o Congresso Nacional aprovou a infame Lei Fleury, assim denominada por beneficiar sem disfarce um torturador sádico, sicário símbolo da ditadura, o delegado de polícia Sérgio Paranhos Fleury. A lei n. 5.941, de 22/11/73, permitia a todos os réus primários e de “bons” antecedentes, já condenados em primeira instância, responder ao processo em liberdade, enquanto seus recursos não fossem julgados em grau superior.

Curiosamente, em um país onde muitas leis “não pegam”, a Lei Fleury pegou. Anos depois de superado o miserando tempo de exceção, a lei nefasta vestiu a fantasia e entrou, pela porta larga da Constituição de 1988, no bloco dos direitos humanos. No prolixo texto constitucional, o caudaloso elenco de direitos e garantias individuais produziu esta pérola, exclusivamente tupiniquim: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

 

Desde o fim do século XVIII, o Iluminismo proclama que milita em favor dos acusados em processo criminal a presunção de inocência. Isto significa que todas as pessoas devem ser consideradas inocentes, até prova em contrário. Trata-se de presunção juris tantum. Por conseguinte, relativa. Sequer constava dos textos constitucionais anteriores; demandava pouca discussão ou exegese. Aliás, ninguém seria culpado, senão depois de provada a culpa. Prova era aquilo que um órgão legítimo do Poder Judiciário afirmasse como tal, por sentença. Nas decisões judiciais, uma vez provada a acusação, os magistrados determinavam que os nomes dos condenados fossem “lançados no rol dos culpados”.

Caso contrário, para que serviriam juízes de primeiro grau, o braço extremo do Poder Judiciário? De que valeria a sentença de um magistrado, seja de remota Comarca do interior, ou de Vara Criminal de Capital, daquele que interrogou o réu, ouviu testemunhas, examinou laudos, perícias, e decidiu, enfim, qual a consistência das provas que justificavam a aplicação severa da lei?

A lógica jurídica, contudo, não convive com sofismas. Portanto, quem é condenado em decisão de primeira instância, embora ainda possivelmente inocente, não será mais presumivelmente inocente, simples corolário do fato de existir uma decisão judicial. Assim, a despeito de ter a seu alcance inúmeros recursos, não raro de efeitos apenas protelatórios, cuja conseqüência habitual é arrastar os processos até a prescrição, um réu – qualquer réu – já condenado em processo penal regular, como resulta óbvio, sempre será presumivelmente culpado. Claro que poderá apelar, oferecendo contraprova à culpa que legalmente lhe seja imputada, demonstrar sua inocência ou falta de provas da acusação e, ipso facto, restaurar a respectiva presunção. Para casos extremos – e raros – de erro judicial, novas provas, ou sentença contrária à evidência dos fatos, existe ainda a revisão criminal, que consiste em novo processo, que poderá ser aberto a qualquer tempo.

A realidade do Brasil posterior à “Constituição-cidadã” é que as sentenças não transitam em julgado, os recursos não são extraordinários e o próprio Supremo Tribunal Federal atua constantemente como corte criminal. Em consequência, os processos se acumulam nas prateleiras, em quase todos os tribunais, e os prisioneiros desabonados amontoam-se em cárceres ou enxovias, em qualquer lugar do País. E o presumivelmente culpado passa a ser considerado como se presumivelmente inocente fora.

Por isso, aquela norma deplorável, que contraria o senso comum, estimula a impunidade e permite a circulação de indivíduos que não podem sequer sair do Brasil, precisa ser mudada. É um insulto ao Direito, entulho autoritário que deve ser removido para dar fé ao conceito inaugural da Declaração de Direitos: “Todos são iguais perante a lei”.

Foi o Iluminismo também que proclamou como dogma o direito ao duplo grau de jurisdição. Todo homem tem o direito de ser julgado duas vezes; não três. No Brasil, com a única exceção daqueles que livremente optam pelo foro privilegiado junto à Suprema Corte que, como é evidente, não admite outra instância.

A pergunta que hoje se faz é a seguinte: devem ser presos os condenados pelos tribunais de segunda instância? A resposta é positiva. Sim, por duas razões. A primeira, de índole jurídica, pois os tribunais superiores, em geral, não têm competência para mudar decisões de mérito. A segunda, de natureza moral, também produto do Iluminismo, já que a sociedade tem o direito de exigir a punição dos criminosos, conforme a lei.

No caso da presunção de inocência, foi o Congresso constituinte que errou primeiro. Errou na entrada. Agora, a Nação espera que o Supremo Tribunal Federal não erre na saída.

São Paulo, 21 de março de 2018.

 

* Flavio Flores da Cunha Bierrenbach é advogado e ministro aposentado do Superior Tribunal Militar. Foi procurador do Estado de São Paulo, vereador, deputado estadual e deputado federal por São Paulo.