Kiyoshi Harada
No julgamento do dia 14-12-2022 a Ministra Relatora, Rosa Weber, inaugurou o voto pela inconstitucionalidade da emenda do relator por falta de transparência e de critério de distribuição das verbas aos determinados parlamentares.
Seu voto foi seguido pelos Ministros Luiz Fux, Edson Fachin, Roberto Barroso e Cármen Lúcia.
Inaugurou a divergência o Ministro André Mendonça que votou pela constitucionalidade da emenda, porém, desde que cumpridos os mesmos requisitos previstos para a emenda individual (RP6) e a emenda de bancada (RP7).
Seu voto foi acompanhado pelos Ministros Dias Tóffoli, Nunes Marques e Alexandre de Moraes. O Ministro Dias Tóffoli acrescentou a necessidade de a execução da emenda prever o exato montante destinado a cada parlamentar para ser reputado constitucional.
Em outras palavras, a emenda do relator é constitucional, mas, desde que cumpridos todos os requisitos constitucionais.
Esses quatro votos proferidos assumiram a feição de uma resposta à consulta formulada.
Na ADI deve-se decidir pela constitucionalidade ou inconstitucionalidade da emenda do relator tal qual regulada na Resolução nº 1/2006 e Resolução nº 2/2021 do Congresso Nacional. O Poder Judiciário somente pode agir no passado, sem consideração do exercício da futurologia.
Após o suspense gerado pelos quatro votos pela constitucionalidade condicionada, a sessão foi interrompida a pedido dos Ministros Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes para buscar uma saída para o resultado desfavorável que estava se desenhando com 5 votos contra e 4 votos a favor da emenda do relator.
O Ministro Lewandowski encontrou-se publicamente com o Presidente do Senado Federal, Senador Rodrigo Pacheco, com quem trocou ideias a respeito. O Ministro declarou que a nova Resolução do Congresso Nacional em elaboração será apresentada na sessão de julgamento do dia 19-12-2022.
Assim foi feito, porém, o Ministro Ricardo Levandowski votou contra a emenda, acompanhando o voto da Ministra Relatora, Rosa Weber, enquanto que o Ministro Gilmar Mendes votou pela sua constitucionalidade, finalizando o julgamento com o placar de 6 votos contra 5 votos pela inconstitucionalidade da emenda do relator.
O resultado, embora por escassa maioria, foi muito bem recebido pela comunidade jurídica e pela sociedade em geral, que vinha acompanhando com apreensão o desenrolar desse julgamento singular.
A reação legislativa foi imediata.
Os deputados que haviam paralisado a votação da PEC da Transição em protesto contra os cinco votos contra a emenda do relator, imediatamente, retomaram a sua votação, mas plantando um jaboti para fatiar a fantástica verba de R$19,4 bilhões que estavam reservados para a emenda do relator. Segundo esse jaboti celeremente colocado no topo da PEC, o Poder Legislativo ficaria com a sua metade incorporada à emenda individual (
RP6) de execução obrigatória. Essa emenda individual é constituída de verbas que representam 1,2% da receita corrente líquida do exercício (art. 166, § 11 da CF). A outra metade (R$ 9,7 bilhões) será destinada ao Poder Executivo para despesas discricionárias. Na prática, isso corresponde à verba de contingenciamento (dotação sem especificação de elementos de despesa), que é um dos mecanismos de desvirtuamento da LOA.
A PEC foi rapidamente aprovada pelo Plenário da Câmara dos Deputados com expressiva maioria de votos. A tentativa de flexibilização do teto de gastos por lei complementar, entretanto, foi rechaçada pela maioria parlamentar. Uma coisa de cada vez, devem ter pensado os astutos legisladores!
Por conta do danado jaboti, a PEC nº 32/22 retornou ao Senado onde, onde foi aprovada em votação relâmpago. Na noite do mesmo dia a PEC foi promulgada pelo Congresso Nacional.
Agora, o Congresso Nacional prosseguirá na votação da proposta orçamentária de 2023. Tudo indica que a sua final aprovação dar-se-á no exercício de 2023, quando estará sendo executado o orçamento em gestação, o que revela, mais uma vez, a pouca utilidade e eficiência da LOA, nunca aprovada no prazo constitucional. O orçamento anual passou a ser uma mera formalidade constitucional. A sua violação só acarreta impeachment por crime de responsabilidade quando o Estado estiver ingovernável, por falta de aptidão do governante no exercício da Presidência da República, como aconteceu com a Presidente Dilma Rousseff. Se a economia estiver andando bem, o orçamento pode ser executado de forma invertida e nada acontecerá! O orçamento não é um fim em si mesmo, mas um instrumento de desenvolvimento econômico e social, visando o bem-estar da sociedade em geral.
Assim, tivemos uma vitória de Pirro. De nada valeu o esforço do STF para enterrar a emenda do relator. Ela continua firme como rocha. Depois de desfrutar por quatro anos seguidos desses fantásticos benefícios advindos da emenda do relator, os parlamentares já os consideravam como prerrogativa deles. Acabar com a emenda do relator a essas alturas é como tentar tirar o doce que a criança está comendo.
Mas, tem uma coisa. Os parlamentares se esqueceram que essa PEC jabotizada fere o princípio federativo protegido em nível de cláusula pétrea (art. 60, § 4º, I da CF), que assegura a independência e harmonia dos poderes. Os que prestaram atenção no voto proferido pelo Ministro Roberto Barroso sabem disso. O Ministro Barroso, um constitucionalista dos mais destacados, foi o único dentre 11 Ministros que lembrou a afronta ao princípio da separação dos poderes pela emenda do relator.
O Poder Executivo, que age no presente, exerce preponderantemente os atos de execução, isto é, governa o país. De forma atípica exerce a função judicante quando julga os processos administrativos tributários e os processos administrativos disciplinares. Excepcionalmente legisla por decreto nas duas únicas hipóteses previstas nas alíneas a e b, do inciso VI, do art. 84 da CF.
O Poder Legislativo, que atua para o futuro, exerce preponderantemente a função de legislar. A previsibilidade que decorre das leis propicia segurança jurídica a todos. Excepcionalmente atua na função judicante tal qual o Executivo e promove atos de execução quando realiza, por exemplo, certame licitatório para compra de materiais para guarnecer seus órgãos, mas nunca exerce a função de aplicar verbas na consecução de planos governamentais, ressalvada a aplicação de recursos para prover as necessidades de seus órgãos.
O Poder Judiciário, que age exclusivamente no passado, exerce em regime de monopólio estatal a atividade jurisdicional. Esse Poder somente atua por provocação de interessados. Excepcionalmente exerce função executiva para realizar despesas para manutenção de seus órgãos. Toma iniciativa na elaboração de propostas orçamentárias (art. 99, §§ 1º e 2º da CF) a serem encaminhadas ao Poder Executivo. Outrossim, toma a iniciativa de leis para assuntos de interesse do Judiciário. (art. 96, II, a, b e c da CF).
O único Poder que age no presente visando alcançar os objetivos previstos no plano de governo é o Executivo.
No sistema presidencialista de governo cabe privativamente ao Chefe do Executivo elaborar com privatividade a proposta orçamentária a ser entregue ao Poder Legislativo até o final de agosto de cada exercício.
Aprovada e sancionada a LOA, a sua execução cabe exclusivamente ao Poder Executivo.
O Presidente da República cumula as funções de chefe de Estado e de chefe do governo.
Como chefe de governo cabe ao Presidente governar com auxílio de seus ministros, aplicando os recursos orçamentários de conformidade com a LOA, que espelha ou deveria espelhar as prioridades do governo.
Governar outra coisa não é senão direcionar e executar as despesas de conformidade com as regras orçamentárias, respeitando as vedações do art. 167 da CF.
Cabe aos membros do Congresso Nacional exercer o importantíssimo papel de fiscalizar e controlar os atos de execução orçamentária pelo governo.
Incogitável o controle e fiscalização da execução orçamentária das despesas executadas por seus próprios membros.
O sistema presidencialista de governo, contemplado na Federação Brasileira, não permite que o Legislativo exerça atos de gestão governamental. Isso é próprio do sistema parlamentarista de governo, onde o primeiro Ministro age como chefe de governo e o Presidente da República atua apenas como chefe de Estado para efeito de representação internacional.
Logo, a chamada emenda do relator (RP9), agora, fatiada entre Legislativo e Executivo pela sua pior forma, viola ostensivamente o princípio da separação dos Poderes; estabelece um regime de condomínio na gestão governamental, usurpando a competência privativa do Executivo.
Certamente os deputados são representantes do povo, porque legitimados por voto popular, mas, eles foram eleitos não para governar, porém, para elaborar as leis que cabe ao Executivo cumpri-las.
A sua participação no processo legislativo do orçamento se esgota nas emendas a serem apresentadas na Comissão Mista de Orçamento - CMO - na forma do § 3º, do art. 166 da CF, desde que sejam compatíveis com o PPA e LDO e indiquem recursos necessários provenientes de anulação de despesas, excluídas as que incidam sobre encargos da dívida; dotações de pessoal e transferências tributárias constitucionais.
Nada impede, outrossim, de o Legislativo negociar com o Executivo para alteração da proposta orçamentária original, por meio de mensagens aditivas com base no § 5º do art. 166 da CF, bem como de apresentar emendas para proceder a correções de erros.
Essas emendas dirigidas a CMO nada têm a ver com as chamadas Emendas do Relator ou seu substituto (emenda fatiada).
Aprovada a proposta legislativa do orçamento e enviada ao Executivo para sanção em forma de LOA desaparece, ipso facto, a figura do Relator-Geral do Orçamento. O Relator- Geral na CMO limita-se a canalizar as emendas apresentadas pelos deputados e senadores e colocá-las em votação pelo Plenário das duas Casas Legislativas. Ultimada a votação da proposta legislativa o Relator-Geral exaure a sua função e deixa de existir a partir de então.
Sustentar que a emenda do relator, agora, em parte incorporada na emenda individual, serve para dar continuidade aos serviços essenciais na área da saúde, argumento que chegou a sensibilizar a Ministra Rosa Weber em um primeiro momento, não tem, data vênia, menor cabimento.
A Saúde já é contemplada com as fabulosas verbas constitucionalmente vinculadas, à razão de no mínimo 15% da Receita Corrente Líquida - RCL – do exercício (art. 198, § 2º, I da CF) que devem compor o orçamento anual.
Retirar do orçamento da Saúde verbas constitucionalmente vinculadas para devolver 50% delas em forma de emenda individual, que apenas parcialmente é reposto ao orçamento donde foram retiradas as verbas e destinar a outra parte para o Executivo gastar de forma discricionária é uma forma de torpedear o orçamento público anual. Lembre-se que apenas 50% das emendas individuas são direcionadas à dotação da Saúde. A outra metade é gasta à discrição do parlamentar, sendo compulsória a sua liberação pelo Executivo.
Com tantos atores envolvidos na execução orçamentária, que deveria caber exclusiva e privativamente ao Executivo, é claro que as finanças públicas ficarão desorganizadas com desperdício de dinheiro público, que desaparecerem nos ralos que vão surgindo ao longo do exercício.
SP, 22-12-2022.