Por Eduardo Marcial Ferreira Jardim.*

Introdução

Deveras, o artigo 142 da Constituição Federal suscitou questionamentos exacerbados, bem como ensejou o ajuizamento de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 6457, intentada pelo Partido Democrático Trabalhista – PDT, que se insurgiu contra dispositivos contidos na Lei complementar n. 97, de 09-06-1999, a qual, de seu turno, disciplinou o referido comando no plano infraconstitucional.

A exordial, diga-se de passo, encontra-se exemplarmente elaborada, tendo esmiuçado a matéria com referta e densa argumentação, afigurando-se, pois, vocacionada a obter o sucesso almejado.

Nessa vereda, o aludido pleito, postulou um pronunciamento do Pretório Excelso no sentido de acoimar a inconstitucionalidade de determinados artigos da Lei Complementar em apreço, bem como pediu, também, fosse dimensionado o exato significado do artigo sub examen.

Em estreita síntese, temos uma de duas, de um lado o entendimento governista, segundo o qual o preceito constitucional atribuiria a natureza de  Poder Moderador às Forças Armadas, enquanto, de  outra parte, o ponto de vista dominante na doutrina e encampado pelo Supremo Tribunal Federal afastou àquela hipótese e reafirmou o correto alcance do  referido dispositivo constitucional,  fazendo-o, num primeiro momento,  por meio de deferimento de Liminar da lavra do Ministro Luiz Fux, ad referendum do Plenário da Corte, consoante estampado no site do Supremo Tribunal Federal, a saber:

 


Liminar parcialmente deferida ad referendum

MIN. LUIZ FUX

"Ex positis, observadas as premissas adotadas nesta decisão, (art. 5º, §1º, da Lei nº 9.882/1999), defiro parcialmente a medida liminar requerida, ad referendum do Plenário desta Suprema Corte, a fim de conferir interpretação conforme aos artigos 1º, caput, e 15, caput e §§ 1º, 2º e 3º, da Lei Complementar 97/1999 e assentar que: (i) A missão institucional das Forças Armadas na defesa da Pátria, na garantia dos poderes constitucionais e na garantia da lei e da ordem não acomoda o exercício de poder moderador entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário; (ii) A chefia das Forças Armadas é poder limitado, excluindo-se qualquer interpretação que permita sua utilização para indevidas intromissões no independente funcionamento dos outros Poderes, relacionando-se a autoridade sobre as Forças Armadas às competências materiais atribuídas pela Constituição ao Presidente da República; (iii) A prerrogativa do Presidente da República de autorizar o emprego das Forças Armadas, por iniciativa própria ou em atendimento a pedido manifestado por quaisquer dos outros poderes constitucionais – por intermédio dos Presidentes do Supremo Tribunal Federal, do Senado Federal ou da Câmara dos Deputados –, não pode ser exercida contra os próprios Poderes entre si; (iv) O emprego das Forças Armadas para a “garantia da lei e da ordem”, embora não se limite às hipóteses de intervenção federal, de estados de defesa e de estado sítio, presta-se ao excepcional enfrentamento de grave e concreta violação à segurança pública interna, em caráter subsidiário, após o esgotamento dos mecanismos ordinários e preferenciais de preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, mediante a atuação colaborativa das instituições estatais e sujeita ao controle permanente dos demais poderes, na forma da Constituição e da lei. Publique-se. Intimem-se. Brasília, 12 de junho de 2020. "

  • 10/06/2020

Conclusos ao(à) Relator(a)

 

Com efeito, força é reconhecer que a Suprema Corte já deu pressa em estabelecer uma diretriz ao assunto, nos termos supracitados, mas, ainda em sede de liminar, pelo que a temática comporta algumas reflexões adicionais, o que será feito ao diante.

DE MERITIS

Preliminarmente, transcrevamos, por oportuno, o caput e o § 1º, do disposto no art. 142 do Estatuto Superno, que assim dispõe, in verbis:

DAS FORÇAS ARMADAS

Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

  • 1º Lei complementar estabelecerá as normas gerais a serem adotadas na organização, no preparo e no emprego das Forças Armadas.

 

Consoante estampado no mandamento sob exame, o caput do art. 142 da Constituição Federal hospeda o conceito da expressão Forças Armadas e determina o seu objetivo, na dimensão em que a qualifica como a instituição permanente formada pela Marinha, Exército e Aeronáutica, a qual se encontra preordenada a defender a Pátria, bem assim os poderes constitucionais, fazendo-o em consonância com a lei e com a ordem.

Primeiramente, cumpre observar que sob o prisma eficacial o referido mandamento afigura-se autoaplicável e susceptível de implementação legislativa, donde, produz os seus efeitos desde logo, bem como a normação integrativa pode disciplinar os seus meandros, respeitando, obviamente, a sua quintessência, máxime porque o legislador que é subalterno ao figurino constitucional não poderia contrapor-se ao substrato estabelecido pelo Texto Supremo.

Nesse sentido, aliás, o parágrafo primeiro do aludido dispositivo constitucional faz referência expressa à superveniente norma integrativa, delegando poderes, para tanto, ao legislador complementar, o que culminou com a edição da Lei Complementar nº 97, de 09 de junho de 1999.

A bem ver, o aspecto eficacial trazido à colação ressoa nas lições de José Afonso da Silva, Maria Helena Diniz e Celso Bastos, dentre outros festejados juristas que se debruçaram sobre esse tormentoso tema das normas constitucionais.

Em verdade, conquanto não haja testilhas em relação aos efeitos jurídicos do artigo 142 da Carta da República, cumpre observar que independentemente do advento da Lei Complementar supramencionada, a natureza de norma contida lhe comunica o condão da auto aplicabilidade, simpliciter et de plano.

Destarte, embora o problema tematizado não decorra da eficácia, importa fixar esse tópico como um pressuposto que preside o assunto, seja agora, seja diante de ocasional polêmica no porvir, a exemplo de eventual revogação do diploma complementar in casu.

Posto isto, vejamos o teor do artigo, ponderando que a definição de Forças Armadas é de clareza solar e estreme de dúvidas, restando, pois, analisar     o predicado da regra constitucional que compreende as locuções defesa da pátria, da lei e da ordem, tudo gravitando ao derredor dos três Poderes.

Por sem dúvida, tais termos são dotados de censurável vaguidade, o que, de certa forma, ensejou tanta discussão e descompassos, tanto que abrigam textura aberta, podendo propiciar construções falaciosas, sobretudo quando analisada de maneiras descontextualizada.

Entrementes, numa visão integrada e harmônica do art. 142 ao lume dos primados cardeais da Lex Legum, torna-se forçoso reconhecer em alto e bom som que seria um rematado dislate supor que o Executivo poderia empregar as Forças Armadas contra um dos demais Poderes.

Ora, por todas as veras, a apontada suposição atrita com uma das colunas mestras do Estado de Direito, no caso a independência e harmonia entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, em obséquio ao disposto no art. 2º, da Constituição Federal.

Ademais, não se pode olvidar que o labor exegético contextual ou sistemático não é apenas o melhor método interpretativo, mas o único, na medida em que consiste na identificação do direito como conjunto de regras entrecruzadas numa relação de horizontalidade e verticalidade, onde despontam os princípios como matrizes inexoráveis do sistema normativo do direito.

No elenco de princípios, merece destaque a prefalada interdependência entre os Poderes, a qual se entronca com o primado democrático que, por sua vez, repudia qualquer conflito entre eles e, a fortiori, o embate entre o Executivo e o Judiciário, a exemplo do caso vertente.

Em que pese à criticável linguagem inserta no art. 142 da CF, um compulsar sistemático da Constituição nos leva a dessumir que quaisquer dos Poderes poderia recorrer às Forças Armadas tão somente na hipótese de Intervenção Federal (art. 34, CF), Estado de Defesa (art. 136, CF) ou Estado de Sítio (art. 137, CF), o que se explica em face da atipicidade do ato cujo objetivo consiste em preservar a própria Democracia e o Estado de Direito.

Outrossim, a justificativa tem por pressuposto tratar-se de situação que transcende o campo de atuação das polícias de segurança em todos os níveis de Governo, daí o recurso à uma energia e autoridade não só maior, como máxima, consubstanciada nas Forças Armadas.

Importa ressaltar, ainda, a possibilidade pela qual os três Poderes poderiam servir-se das Forças Armadas, sempre que houver um fato ou ameaça que possa vulnerá-los e que as polícias de segurança não estejam instrumentadas para garantir a sua incolumidade.

Verdade seja, a conjetura aventada traduz algo de possibilidade remotíssima, mas merece ser considerado, pois o futuro sempre pode nos reservar fatos imponderáveis, cabendo reafirmar que essa suposição seria compatível com a pugnada concepção contextual da Constituição da República Federativa do Brasil.

 

Conclusões

 

  • No mesmo diapasão da decisão liminar do Egrégio Praetorius, torna-se de mister veementizar que o emprego das Forças Armadas se circunscreve às hipóteses da Intervenção Federal, Estado de Defesa ou Estado de Sítio, além da remota possibilidade de atuar complementarmente na proteção de um dos Poderes da República em relação à grave ameaça ou agressão provinda de alhures, caso as polícias de segurança sejam insuficientes para garantir a lei e a ordem.
  • Como corolário do exposto, ressalta à evidência que qualquer disposição subconstitucional em sentido inverso falece de validade, a teor de disposições imersas na Lei Complementar n. 97, de 09 de junho de 1999, notadamente àquelas contidas nos artigos 1º, caput, e 15, caput e §§ 1º,2º e 3º do referido diploma normativo.

 

* Mestre e Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Professor no Mestrado e Doutorado na Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Membro da Academia Paulista de Letras Jurídicas, Cadeira nº 62. Membro Fundador do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário. Sócio de Eduardo Jardim e Advogados Associados. Autor de obras jurídicas nas Editoras Noeses, Saraiva e Mackenzie.