Marcelo Kiyoshi Harada
Introdução
A ascensão de plataformas digitais como o Airbnb, Booking, Decolar, Hurb e etc. tem provocado intensos debates no campo do direito tributário, especialmente quanto à incidência do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS). A discussão gira em torno da natureza jurídica da operação: tratar-se-ia de locação por temporada (imune ao ISS, conforme Súmula 31 do STF) ou prestação de serviço de intermediação de hospedagem (tributável conforme a LC 116/2003)?
Este artigo tem por objetivo analisar os fundamentos legais e jurisprudenciais que envolvem a tributação do ISS nas atividades realizadas por meio dessas plataformas, destacando a atuação de municípios e os riscos fiscais tanto para as plataformas, como para os proprietários dos imóveis.
Base Legal: ISS e a LC 116/2003
O ISS é um tributo de competência municipal, regido nacionalmente pela Lei Complementar nº 116/2003, que define a lista de serviços sujeitos à tributação do ISSQN.
Prescreve o item 9.01 da lista anexa à LC 116/03:
- serviços de hospedagem em hotéis, apart-hotéis, motéis, pensões e congêneres.
Prescreve o item 9.02 da lista anexa à LC 116/03:
- agenciamento, organização, promoção, intermediação e execução de programas de turismo, passeios, viagens, excursões, hospedagens e congêneres
Por outro lado, a Súmula nº 31 do STF estabelece que:
“É inconstitucional a incidência do imposto municipal sobre contratos de locação de bens móveis.”
Por analogia, a jurisprudência e a doutrina estendem tal entendimento à locação de bens imóveis, desde que ausente a prestação de serviços, caracterizando-se a operação como cessão de uso e gozo de coisa alheia, regulada pelos artigos 565 a 578 do Código Civil.
A Controvérsia: Locação x Prestação de Serviço
O ponto nevrálgico reside na natureza jurídica das operações intermediadas por essas plataformas.
Logo, imprescindível entendermos os conceitos de locação por temporada, serviços de hospedagem e intermediação de hospedagens.
Locação por temporada:
As especificações e regras para locação de temporada estão descritas no artigo 48 da Lei 8.245 de 1991, o qual diz:
“Considera-se locação para temporada aquela destinada à residência temporária do locatário, para prática de lazer, realização de cursos, tratamento de saúde, feitura de obras em seu imóvel, e outros fatos que decorrem tão-somente de determinado tempo, e contratada por prazo não superior a noventa dias, esteja ou não mobiliado o imóvel.”
Isso quer dizer que a locação por temporada é aquela praticada tanto por pessoa física quanto pessoa jurídica patrimonial (pessoa jurídica patrimonial diz respeito, por exemplo, as empresas abertas por famílias para administrar seus bens), que transfere a posse do seu imóvel a outra pessoa mediante pagamento, sem que o período de locação ultrapasse o prazo de 90 dias.
A formalização pode ocorrer diretamente entre o locatário/inquilino e o administrador de temporada ou com intermediação de um prestador de serviços regulamentado, no caso um corretor de imóveis.
Definimos locação por temporada como o aluguel de imóvel residencial por um período curto e determinado, sem prestação de serviços típicos de hospedagem, regida pela Lei do Inquilinato (Lei nº 8.245/1991, art. 48 a 50).
Características principais:
- Uso exclusivo do imóvel pelo locatário;
- Não há serviços como recepção, limpeza diária, refeições, etc.;
- Contrato entre duas pessoas privadas (locador e locatário);
- Duração máxima: 90 dias.
- Pode ser mobiliado, mas sem atendimento pessoal diário.
Hospedagem:
Consideram-se meios de hospedagem os empreendimentos ou estabelecimentos, independentemente de sua forma de constituição, destinados a prestar serviços de alojamento temporário, ofertados em unidades de frequência individual e de uso exclusivo do hóspede.
Os meios de hospedagem, para obter o cadastramento, devem preencher pelo menos um dos seguintes requisitos:
I – possuir licença de funcionamento, expedida pela autoridade competente, para prestar serviços de hospedagem, podendo tal licença objetivar somente partes da edificação;
II – no caso dos empreendimentos ou estabelecimentos conhecidos como condomínio hoteleiro, flat, flat-hotel, hotel-residence, loft, apart-hotel, apart-service condominial, condohotel e similares, possuir licença edilícia de construção ou certificado de conclusão de construção, expedidos pela autoridade competente…”
Portanto, para o negócio ser caracterizado como hospedagem na legislação da locação por temporada, é preciso ser praticado por uma empresa que, formalmente, faz parte do ramo hoteleiro (como hotéis, flats e apart-hotéis), possuir alvará de funcionamento, emitir notas fiscais aos seus hóspedes e, além disso, possuir cadastro em órgãos reguladores, como Embratur e Ministério do Turismo.
Definimos serviço de hospedagem como a prestação direta de acomodações temporárias a pessoas, em troca de pagamento, realizada por hotéis, apart-hotéis, pousadas, hostels, resorts, flats, lofts, motéis e etc.
Características principais:
- Serviços adicionais como café da manhã, buffet almoço/jantar, limpeza, recepção, wi-fi, etc.
- É responsável por garantir a qualidade e a segurança da estadia.
Serviço de intermediação de hospedagem:
Atividade realizada por uma plataforma, empresa ou agente que facilita a contratação de serviços de hospedagem entre terceiros, atuando como um intermediário entre o anfitrião (ou prestador de hospedagem) e o hóspede, geralmente por meio de um site ou aplicativo.
Quem presta:
Plataformas como Airbnb, Booking.com, Decolar, Hurb, agências de turismo online.
Características:
- Atua como intermediário na negociação e reserva.
- Não oferece acomodações próprias.
- Recebe comissão ou taxa pela intermediação.
- Pode oferecer suporte ao cliente, meios de pagamento, e avaliações de usuários.
In fine, concluímos que a diferença entre locação por temporada e serviços de hospedagem está principalmente no enquadramento legal, natureza contratual, tempo de permanência, e presença (ou não) de serviços associados à estadia.
A diferença entre serviço de hospedagem e serviço de intermediação de hospedagem está no papel que cada um desempenha na oferta de acomodações ao público e, principalmente, o produto final que é entregue. E, a diferença entre locação por temporada e serviços de intermediação de hospedagem está tanto na natureza jurídica do contrato quanto na finalidade da atividade desempenhada por cada um.
4. Jurisprudência Atual:
A jurisprudência mais recente tem se posicionado no sentido de que anúncios no Airbnb com rotatividade e prestação de serviços se aproximam da hospedagem tradicional, atraindo a incidência do ISS.
Decisão do TJRJ – Petrópolis (2025)
O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em decisões de 2025, confirmou a exigência de ISS sobre imóveis alugados via Airbnb no município de Petrópolis. A Corte entendeu que a operação não se resume à locação pura, mas caracteriza serviço de hospedagem “congênere”, atraindo a tributação pelo item 9.01 da LC 116/2003.
O julgado ainda responsabilizou o Airbnb como substituto tributário, com base no artigo 128 do CTN, pela retenção e recolhimento do ISS incidente sobre os serviços praticados por seus usuários.
Trecho da decisão:
“A caracterização da atividade não se dá pela denominação contratual, mas pela análise fática da prestação. Havendo rotatividade, cobrança por diárias e oferta de estrutura típica de hospedagem, configura-se prestação de serviço tributável.”
Claramente, verifica-se que a decisão não analisou com o costumeiro acerto um dos aspectos da ocorrência do fato gerador, que com toda certeza não poderia ser os anúncios nas plataformas com rotatividade e prestação de serviços que se aproximam da hospedagem tradicional, atraindo a incidência do ISS.
Quando da subsunção do fato à norma que formará a referida relação jurídico-tributária, há de se observar a ocorrência de todos os elementos do fato gerador:
a) elemento nuclear – é a descrição abstrata de ato ou fato, cuja concreção surge a obrigação tributária;
b) elemento quantitativo – base de cálculo e alíquota;
c) elemento espacial do fato gerador - lugar da concretização do fato qualificado como suficiente para desencadear o nascimento da obrigação tributária;
d) elemento temporal do fato gerador - momento da consumação ou ocorrência do fato gerador;
e) elemento subjetivo – identifica o sujeito ativo e passivo da obrigação tributária;
Portanto, no caso, nenhum dos elementos acima foram identificados com precisão. Senão vejamos:
Para o elemento nuclear não há como enquadrar as atividades desempenhadas pelas plataformas como atividades hoteleiras, uma vez que não prestam serviços de recepção, serviços de alimentação e tampouco serviços de limpeza. Ademais, o fato dos anúncios veiculados por essas plataformas indicarem rotatividade na ocupação dos imóveis não significa que são prestados serviços de hotelaria.
Para o aspecto quantitativo não ficou definida a base de cálculo. Qual seria a base de cálculo? O valor da locação ou valor da intermediação? Cediço que ambos não poderiam ser cobrados do mesmo contribuinte? Aliás, como fica o elemento subjetivo? Quem seriam os contribuintes da obrigação tributária, as plataformas ou os proprietários dos imóveis? Por fim, quem prestaria os serviços de hotelaria nessa situação? Cediço que o proprietário apenas disponibiliza o imóvel limpo e em condições perfeitas de uso, já a plataforma só faz a intermediação para a locação temporária do imóvel!
No tocante ao elemento espacial, qual o lugar da ocorrência do fato gerador? O site das plataformas? Localização do imóvel objeto da contratação?
Em que momento ocorre o fato gerador? Quando ocorre o pagamento nas plataformas digitais? Se não são prestados serviços de recepção, café da manhã ou limpeza não há o que se falar em prestação de serviços de hotelaria e, ipso fato, não há o que se falar em ocorrência do fato gerador.
Parece-me, equivocada a decisão do TJRJ, tendo em vista que não há o que se falar em serviços de hospedagens, serviços típicos de hotéis, apart-hoteis, flats. Os imóveis disponibilizados pelas plataformas não oferecem esses serviços de recepção, café da manhã, limpeza e etc.
Dessa forma, o item 9.01 da LC nº 116/03 estaria descartado para fins de tributação do ISS, restando para análise apenas o item 9.02, serviços de intermediação de hospedagem.
No entanto, as empresas sustentam que se trata de mera plataforma de intermediação tecnológica, sem ingerência sobre a prestação de serviços pelos anfitriões, devendo ser levada em consideração a Súmula 31 do STF, em razão da natureza locatícia das transações.
A jurisprudência crescente tem reconhecido a substituição tributária da plataforma em nome dos usuários, com base no CTN, especialmente nos casos em que há estrutura de controle dos pagamentos e gestão dos contratos.
Planejamento Tributário e Estruturação Contratual
Para anfitriões: é essencial revisar a natureza da operação, o conteúdo dos contratos e os serviços oferecidos. A depender da estrutura, poderá haver obrigação de recolhimento de ISS como contribuinte direto ou indireto.
- Para o Airbnb e plataformas similares: a adoção de políticas de compliance tributário pode incluir retenção do imposto, repasse às prefeituras e ajustes nos termos de uso.
- Os municípios vêm utilizando os seguintes critérios para diferençar as hipóteses: duração da estadia, presença ou não de serviços de recepção limpeza e alimentação, faturamento (eventual, por pessoa física ou frequente como atividade econômica), infraestrutura (uso exclusivo ou rotatividade tipo hotelaria).
Conclusão
A tributação do ISS sobre operações via essas plataformas digitais é um tema ainda em evolução, com decisões judiciais recentes consolidando uma interpretação fiscal mais agressiva por parte dos municípios.
A dicotomia entre locação e prestação de serviço é cada vez mais tênue no contexto digital, e a segurança jurídica dependerá de uma regulamentação mais clara e adequada às novas tecnologias e modelos de negócio.