A tese da anistia dos envolvidos nas invasões da Praça dos Três Poderes está ganhando força na Câmara dos Deputados, principalmente depois da manifestação do dia 6-4-2025 na Avenida Paulista, que reuniu cerca de 900.000 pessoas exigindo “Anistia Humanitária”. A USP progressista divulgou um número infinitamente menor, ou seja, 49.900 pessoas.

Os parlamentares do PL e de outros partidos de oposição ameaçam com obstrução dos trabalhos legislativos, caso o Presidente da Casa, Deputado Hugo Mota, não paute o projeto de anistia, conforme prometido antes de sua eleição à presidência da Câmara. Mas, no dia 10-4-2025 os Deputados conseguiram reunir 257 assinaturas para conferir o regime de urgência no projeto de anistia, para ser deliberada diretamente pelo Plenário da Câmara dos Deputados.

Integrantes do STF, por outro lado, manifestam o entendimento de que a referida proposta seria inconstitucional por violar disposições constitucionais e legais.

Quem está com a razão?

Faremos uma análise estritamente jurídico-constitucional e legal, sem entrar no mérito da polêmica proposta.

Prescreve o inciso XLIII, do art. 5º da CF:

 

“a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;”

Verifica-se, de pronto, que a norma constitucional não é autoaplicável, dependendo de sua regulamentação por lei ordinária.

O preceito constitucional em questão foi regulamentado pela Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, cujo art. 1º classifica como hediondos várias figuras penais previstas no Código Penal como homicídio quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente (art. 121) e homicídio qualificado (art. 121, § 2º, incisos I, II, III, IV, V, VII, VIII e IX do CP com a redação dada pela Lei nº 14.994/2024; feminicídio (art. 121-A do CP com redação dada pela Lei nº 14.999/2024); lesão corporal seguida de morte, quando praticadas contra autoridade ou agente descritos nos arts. 142 e 144 da CF, integrantes do sistema prisional, da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício de função ou em decorrência dela, ou contra seu cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até 3º grau, em razão dessa condição; extorsão mediante sequestro e na forma qualificada (art. 159 caput e §§ 1º, 2º e 3º); estupro (art. 213 e §§ 1º e 2º do CP); crime de genocídio, previsto nos arts. 1º, 2º e 3º da Lei nº 2.889, de 1º de outubro de 1956 na redação dada pela Lei nº 13.964/2019 etc.

E na forma do art. 2º da mesma Lei “os crimes hediondos, a prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de: I - anistia, graça e indulto.”

Portanto, não podem ser anistiados os crimes hediondos e o crime de terrorismo.

Os acusados do movimento de 8 de janeiro de 2023 foram denunciados pela prática de seguintes crimes:

 

a) tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito (art. 359-L do CP introduzido pela Lei nº 14.197/2021;

b) tentativa de depor o governo legitimamente constituído (art. 359-M do CP introduzido pela Lei nº 14.197/2021

c) dano qualificado ( art. 163, parágrafo único, III do CP com a redação conferida pela Lei nº 13.531/2017);

d) deterioração de patrimônio tombado (art. 62, I e II da Lei de Crimes Ambientais – Lei nº 9.605/1998.

e) associação criminosa (art. 288 do CP com a redação dada pela Lei nº 12.850/2013)

f) incitação ao crime (art. 286 do CP e parágrafo único com a redação conferida pela Lei nº 14.197/2021)

g) violência contra a integridade nacional (art. 359-P do CP com a redação conferida pela Lei nº 14.197/2021)

 

Pois bem, as condutas descritas nas alíneas a a g não figuram no rol de crimes hediondos do art. 1º e 2º da Lei nº 8.072/1990 em sua redação atualizada até o ano de 2024.

Resta examinar o crime de terrorismo.

Logo após a invasão da Praça dos Três Poderes, a grande mídia denominou a invasão e depredação de prédios de terrorismo, posteriormente, alterada a sua denominação para tentativa de golpe de Estado. De terrorismo passou para golpe, martelando na cabeça dos ouvintes dia e noite. A denúncia, também não faz referência ao terrorismo.

Há uma diferença muito grande entre um crime e outro.

O terrorismo tem por objetivo causar medo generalizado para desestabilizar a ordem pública ou impor uma ideologia, mediante atentados a bomba, sequestros e assassinatos com motivação política. Foi o caso, por exemplo, as guerrilhas que se seguiram à Revolução de março de 1964 em que muita gente foi assassinada de um lado e de outro.

O golpe de Estado tem por objetivo tomar o poder ou destruir o governo legitimamente instituído mediante uso de força, ameaça ou meios ilegais para derrubar um governo, ou impedir o funcionamento das instituições democráticas. Não envolve sequestro, nem assassinatos de pessoas.

Não se equiparando quer legalmente, quer etimologicamente a tentativa de golpe do Estado ao crime de terrorismo segue-se que não há, em tese, impedimento à concessão de anistia para os acusados pela prática de condutas descritas nas letras a a g retro-referidas.

Costuma-se argumentar com a concessão da ampla anistia recíproca aos envolvidos na tentativa de abolir o governo militar implantado com revolução de 1964.

De fato, o STF julgou constitucional a referida anistia por ter caráter bilateral beneficiando os membros das Forças Armadas envolvidos na repressão ao terrorismo, assim como os guerrilheiros ou terroristas, conforme ADPF nº 153. Nesta ação, o STF entendeu que a anistia era fruto de um acordo político e que não cabia ao Judiciário interpretá-la.

Só que naquela época não havia dispositivo constitucional semelhante ao inciso XLIII, do art. 5º da CF/1988, nem existia a Lei nº 8.072/1990 que regulamentou o referido inciso constitucional, o que inviabiliza a invocação do precedente da ADPF nº 153.

Mesmo desconsiderando a anistia de 1979 penso que, sem entrar no mérito da questão, não há empecilho legal ou constitucional para a concessão de anistia aos invasores da Praça dos Três Poderes, depredando os edifícios públicos pertencentes às três esferas do poder (STF, CN e Palácio do governo federal), nem a seus eventuais mentores.

Por fim, há corrente doutrinária sustentando a distinção entre anistia criminal por crimes comuns, concedida a qualquer cidadão por razões várias, e a anistia política por crimes de natureza política, por razões ideológicas ou de resistência ao regime beneficiando, geralmente, opositores políticos e agentes do Estado. Esse tipo de anistia não seria suscetível de apreciação pelo Poder Judiciário.

No caso sob exame, a anistia política visa restabelecer a paz social ferida pelo clamor popular que se levantou contra decisões condenatórios aplicando penas desproporcionais, de forma generalizada e sem o devido processo legal, segundo alegações feitas pelos advogados de defesa amplamente divulgadas pela mídia.

 

SP, 14-4-2025.

 

* Texto publicado no Migalhas, edição nº 6.080, de 15-4-2025.