Notas sobre uma pixotada

Everardo Maciel

 

Impressiona muito a celeuma causada pela divulgação de regras aplicáveis à fiscalização de transações financeiras por meio de PIX. Vamos aos fatos. Em 17.09.2024, a Receita expediu a Instrução Normativa (IN) nº 2.219 que disciplina a prestação de informações sobre operações financeiras de interesse fiscal pelas pessoas jurídicas por meio das quais se efetivaram essas operações. A IN me parece consistente, constituindo uma bem elaborada atualização da prestação de informações protegidas por sigilo bancário, nos termos da Lei Complementar nº 105, de 10.01.2001, sancionada no governo FHC e tida como constitucional pelo STF. Até aí, mera questão técnica. Ocorre que, neste mês de janeiro, resolveu-se dar publicidade à fiscalização das transações via PIX, que é tão somente uma das inúmeras modalidades de transação tratadas naquela IN. Não sendo, como presumo, mero diletantismo ou arroubo técnico, posso admitir que a publicidade pretendeu retirar foco da demanda por redução de gastos, para buscar o equilíbrio fiscal por meio do aumento da arrecadação – no caso, pelo enfrentamento de virtuais focos de sonegação. É apenas uma interpretação, ressalto. O tiro, entretanto, saiu pela culatra. Formou-se rapidamente uma enorme onda de desconfiança e desinformação. É claro que transações, ressalvado o IOF, não podem ser tributadas por falta de amparo constitucional. Constituem, quando muito, mero indício que pode pretextar a abertura de um procedimento de fiscalização, não necessariamente implicando autuação. A desconfiança e a desinformação prosperaram na baixa credibilidade da política fiscal. Acuado pela reação, o governo decidiu-se por revogar a boa IN, por receio de elevação dos níveis de impopularidade – o que é procedente. Repete-se a máxima de que “sabedoria quando é demais engole o dono”. Consta que, quando Osvaldo Aranha era ministro da Fazenda de Getúlio Vargas, abriu-se uma sindicância para apurar o desvio de uma pequena quantidade de dinheiro. Ao final, não se conseguiu identificar os culpados e os gastos com a sindicância superaram o valor desviado. O Ministro Aranha teria encerrado o caso, com o seguinte despacho: “Quem começou esta m...?”

 

Exame da INRFB nº 2.219/2024

Kiyoshi Harada

 

A IN da SRF de nº 2.219, de 17-12-2024, contém 32 artigos e inúmeros parágrafos, incisos e alíneas redigidas de forma bastante detalhista e com inusitado sadismo burocrático, muito ao gosto da normas subalternadas da SRF, formando um todo complexo e confuso com preceitos até repetitivos.

Obriga as instituições financeiras em geral e as demais pessoas jurídicas, entre elas, aquelas que operam com planos e benefícios de previdência complementar e empresas que tenham como principal atividade ou acessória a captação, intermediação de recursos financeiros próprios ou de terceiros a prestar informações de dados bancários (art. 2º).

Essas informações devem ser prestadas à SRF por meio de eFinanceira, dentro do prazo regulamentar, sob pena de pesadas multas previstas no art. 30 da Lei nº 10.637/2002 e arts. 35 e 57 da MP nº 2.158-35/2001 (arts. 4º e 5º).

As informações a serem prestadas compreendem à identificação dos titulares das operações financeiras e comitentes finais devendo incluir:

I – nome, nacionalidade, residência fiscal, endereço e número das contas ou equivalentes, individualizados por conta do contrato na instituição declarante;

II – número do CPF/CNPJ;

III – número de Identificação Fiscal – NIF no exterior, caso tenha sido adotado pelo país de residência fiscal;

IV nome empresarial;

V saldos e montantes globais mensalmente movimentados;

VI moeda utilizada; e

VII – demais informações cadastrais (art. 10 cc art. 12).

As entidades financeiras e outras equiparadas deverão informar as operações financeiras quando o montante global movimentado ou o saldo em cada mês for superior a:

I – R$5.000 (cinco mil reais) se for pessoa física; e

II – R$15.000 (quinze mil reais) em caso de R$15.000 (quinze mil reais) em caso de pessoa jurídica (art. 15).

Não se trata de informar apenas as movimentações de recursos financeiros por meio eletrônicos, inclusive, por via pix ou cartões de crédito/débito, mas também, quando o saldo bancário em cada mês for superior ao limites previstos nos incisos I e II retroapontados.

Trata-se de uma verdadeira devassa generalizada bisbilhotando toda a vida financeira das pessoas.

Houve reação negativa da população, inclusive, vítima de ação de golpistas que acenavam com a necessidade de pagar uma taxa de pix juntando boleto de pagamento com documento com sinal da SRF nas mensagens disparadas por meio de aplicativos ou por e-mails aos incautos correntistas.

A confusão se instaurou de tal forma que o governo determinou a revogação dessa IN, o que aconteceu no dia 15-1-2025.

Deixando de lado as paixões que dominaram na abordagem desse assunto e os equívocos em torno da taxação do pix temos para nós que a IN 2.219/2024 violava o sigilo bancário.

Em suas “perguntas e respostas” a SRF informava que a determinação contida na IN nº 2.219/2024 tinha amparo na Lei Complementar nº 105, de 10-1-2001.

Na verdade, não tinha, pelo contrário, violava ostensivamente o seu art. 6º que assim prescreve:

Art. 6o As autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios somente poderão examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente.

Parágrafo único. O resultado dos exames, as informações e os documentos a que se refere este artigo serão conservados em sigilo, observada a legislação tributária.

 

Como se verifica, as autoridades administrativas e agentes do fisco somente podem ter acesso a documentos, livros e registros das instituições financeiras quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente.

Esse art. 6º em que se fundou a IN nº 2.219/2024 pressupõe um caso concreto, individualizado. Sem pendência de processo ou procedimento fiscal contra determinado contribuinte não será possível acessar seus dados bancários diretamente ou por meio de informações obrigatórias a serem prestadas pelas instituições financeiras.

A interpretação desse art. 6º pelo STF sofreu vacilações ao longo do tempo, ora pela constitucionalidade da norma, ora pela sua inconstitucionalidade, sendo certo que, em 2017, a Corte Suprema em sede de repercussão geral (tema 225) fixou a seguinte tese:

 

O art. 6º da Lei Complementar nº 105/01 não ofende o direito ao sigilo bancário, pois realiza igualdade em relação aos cidadãos, por meio do princípio da capacidade contributiva, bem como estabelece requisitos objetivos e o traslado do dever de sigilo da esfera bancária para a fiscal (RE nº 601.314/RG-SP, Rel. Min. Edson Fachin, DJe de 16-9-2017).

 

Duas são as condições impostas pelo STF: a) observância de requisitos objetivos; e b) transferência do sigilo da instituição bancária para o fisco.

Esse julgado do Pretório Excelso Nacional não autoriza requisições de informações bancários de formas genérica e abstrata como fez a malsinada IN revogada, mas, exige requisitos objetivos, quais sejam a existência de processo administrativo ou de procedimento fiscal contra determinado contribuinte-correntista, ainda assim, se essa requisição for reputada indispensável a juízo da autoridade administrativa competente. Quanto ao traslado do sigilo, difícil o seu não rompimento se os dados bancários extraídos forem utilizados no processo administrativo de natureza pública.

Em que pese o legítimo interesse do fisco de evitar a ocorrência de sonegação de impostos nada autoriza a uma norma subalterna da SRF requisitar informações bancárias por atacado, ofendendo, às escâncaras, o direito do cidadão assegurado pelo art. 5º inciso XI da CF.

Tanto a jurisprudência do STJ, como a do STF considera o sigilo bancário como espécie do direito à privacidade consagrado no citado inciso constitucional.

Em boa hora foi revogado esse instrumento normativo da SRF que tanta confusão gerou no seio da sociedade durante os poucos dias de sua vigência.