“Assediado por uma empresa de cobranças por dívida inexistente. E porquê inexistente? Porque após o telefonema nem assinei o contrato nem dei o meu consentimento quer oralmente quer por escrito.
A empresa de cuidados de saúde cedeu-lhes os meus dados pessoais. E agora perturbam-mesistematicamente, exigindo que pague.
Pelo Natal, até me “ofereceram um presente”: um desconto muito ao jeito da época, espécie remissão parcial da “dívida”.”
Apreciados o factos, eis o que se nos oferece:
- Se o contacto for da iniciativa da empresa, o contrato só se considerará válido se o consumidor o subscrever ou der o seu consentimento por escrito (DL 24/2014: n.º 8 do artigo 5.º).
- Não havendo contrato nem dívidas dele emergentes, nem se pode dizer que a transmissão de dívidas esteja ferida de nulidade pelo não consentimento expresso do consumidor.
- Donde, não ser invocávelcláusula absolutamente proibida, em contrato de adesão, já que passíveis de nulidade as que “consagrem, a favor de quem as predisponha, a possibilidade de cessão da posição contratual, de transmissão de dívidas…, sem o acordo da contraparte…” (DL446/85: alínea l) do art.º 18)
- A transmissão de dados pessoais está vedada, nos termos do Regulamento Geral de Protecção de Dados:“o tratamento só é lícito se e na medida em que se verifique pelo menos uma das seguintes situações:
- O titular dos dados tiver dado o seu consentimento para o tratamento dos seus dados pessoais para uma ou mais finalidades específicas;
- O tratamento for necessário para a execução de um contrato no qual o titular dos dados é parte, ou para diligências pré-contratuais a pedido do titular dos dados;
- O tratamento for necessário para o cumprimento de uma obrigação jurídica a que o responsável pelo tratamento esteja sujeito…” (Reg.to2016/679: art.º 6.º).
- Constituem contra-ordenações económicas muito graves as violações ao invocado artigo (Lei 58/2019: al. b) do n.º 1 do art.º 37).
- A moldura sancionatória é a que segue:
- Grande empresa: de 5.000 a 20 000 000 € ou 4 % do volume anual de negócios, a nível mundial (o mais elevado dos valores),
- PME: de 2.000 a 2 000 000 € ou 4 % do volume anual de negócios, a nível mundial (idem)(Lei 58/2019: n.º 2 do art.º 37).
- Além do mais, as “comunicações não solicitadas” (estratégias mercadológicas) carecem de consentimento prévio e expresso do destinatário, desde que pessoa singular, sob pena de ilícito de mera ordenação social (Lei 41/2004: n.º 1 do art.º 13 – A)
- Coima aplicável:de 5.000 €a 5 000 000 €, se perpetrado o ilícito por empresa (Lei 41/2004: al. f) do n.º 1 do art.º 14)
- Considera-se agressiva, em qualquer circunstância, e, por isso ilícita, a práticanegocial, a saber, “solicitações persistentes e não solicitadas, por telefone, fax, e-mail ou qualquer outro meio de comunicação à distância…”, punível como contra-ordenação económica grave (DL 57/2008: al. c) do art.º 12: n.ºs 1 e do art.º 21; DL 9/2021: al. b) do art.º 18).
- A coima para um tal ilícito depende do talhe da empresa: se micro, pequena, média ou grande (respectivamente, de 1 700 a 3 000 €; de 4 000 a 8 000 €; de 8 000 a 16 000 € e de 12 000 a 24 000 €);para infracções transversais a nível europeu, cálculo com base em 4% do volume anual de negócios, salvo se se não puder apurar, circunstância em que o máximo cifrar-se-á em 2 000 000 € (DL 57/2008: n.ºs 1 e 2 do art.º 21; DL 9/2021: al. b) do art.º 18).
- O assédio é ainda susceptível de constituir crime com prisão até 3 anos ou multa (Cód. Penal: art.º 154-A).
- O consumidor deve lavrar o seu protesto no livro de reclamações electrónico para que a entidade de supervisão no mercado possa agir consequentemente.
EM CONCLUSÃO
Constitui ilícito de mera ordenação social, a distintos títulos, contactar de forma obsessiva, assediante um cidadão para que cumpra uma dívida inexistente em razão de contrato por comunicação à distância que não passou dos preliminares, não se tendo, pois, celebrado. No limite, poderá constituir um crime.
Este é, salvo melhor juízo, o nosso parecer.
Mário Frota
presidente da apDC – DIREITO DO CONSUMO - Portugal