Por Ivan Barbosa Rigolin - advogado administrativista
I – Voltamos a este tema, importante entre os mais importantes do direito público.
Somos frequentemente procurados por clientes, ex-servidores públicos aposentados, que pelas mais variadas razões, das mais discretas às mais estapafúrdias, tiveram reduzida sua aposentadoria mantida por regime próprio de previdência.
Vez que outra fica a impressão de que para o poder público nos últimos tempos virou moda brincar com as aposentadorias já concedidas como se tal fosse lícito, constitucional ou admissível, ou que o tema se prestasse a aventuras. Imagine-se, com todo efeito, o que significa ao inativo um corte na sua aposentadoria, perpetrado do dia para a noite sem aviso e sem a menor expectativa!
Tudo em verdade deve ser reflexo, em ponto maior ou menor, mediata ou imediatamente, da monumental crise financeira que o país atravessa, que arrasta toda a economia privada e o todo setor público a situação que por vezes beira a de penúria, se comparada àquela de outros tempos.
Essa crise inquestionavelmente obriga a nação, dentre a outras, às reformas trabalhista, previdenciária e tributária, a primeira mais ou menos já realizada, mas que ainda terá seqüência, e as outras em curso, mas todas tão certas quanto ao dia suceder a noite sob risco de o país parar de vez, pateticamente nocauteado pela sua própria incúria e pela irresponsável leviandade de engendrar semelhante armadilha para si mesmo. A inexistência de estadistas que pensem à frente e não somente na eleição seguinte é outra tragédia nacional.
Porém, contudo e entretanto, com crise, sem crise ou apesar da crise as instituições precisam ser respeitadas, e não será crise financeira alguma que justificará impedir ou obstar a correta a execução do direito na forma do ordenamento nacional.
Crise nenhuma, lá do que for, justifica a prática de violências antijurídicas e anticonstitucionais contra o cidadão, o qual, sobretudo nas crises, mais e mais depende da ação segura e firme do estado, dentro da ordem institucional e da normalidade democrática.
Se a crise financeira tiver condão de interferir no cumprimento do direito, então de financeira passará a ser crise moral do estado – o que ao fim e ao cabo resultará muito pior.
II - Quanto especificamente à questão previdenciária, dizemos há algumas décadas em livros, aulas, seminários e por toda parte que nenhum sistema no planeta suportaria aposentadorias a) integrais; b) acrescidas de inúmeras vantagens, incorporadas com a leveza do sorriso de uma criança e o mais absoluto descompromisso com a ciência matemática e atuarial, e c) até 1.998, acredite-se se se quiser, não-contributivas pelo servidor, mas mero encargo patronal do Estado.
Não se deram conta os governantes de que não chove dinheiro dentro das repartições públicas, nem que as minas de ouro não estão em suas mãos. O país das maravilhas de Alice e de Lewis Carroll não teria condição de ser tão pródigo quanto o Brasil em matéria de aposentadoria de servidores estatuários. Quebraria em dois tempos.
Hoje, ano da graça de 2.019, particularmente não sabemos nem imaginamos como esse mesmo sistema já não desmoronou há muitos anos, nos três níveis de governo da nossa república. Ter resistido integra o chamado milagre da sobrevivência.
Se tudo acima parece ser verdade, o que, entretanto, não se pode admitir é violar as regras que até hoje existiram e ainda existem, quase sempre em desfavor de aposentados.
III - Como é nítido, não nutrimos nenhuma simpatia pela aposentadoria integral e privilegiada dos estatutários quando a enorme massa dos trabalhadores ganha uma aposentadoria do regime geral que lhe assegura apenas miséria e fome; mas muito mais antipatia nutrimos pela idéia de quebrar as regras que serviram para a concessão da primeira.
Se a regra não é boa, então que se a altere; mas que não se a descumpra, ao pretexto que for. Um direito ruim deve ser melhorado, mas não descumprido, na medida em que o único cidadão livre é, efetivamente como se diz, o escravo da lei, e sendo sempre aplicável a lição de Voltaire: - não concordo com nada do que dizeis, mas lutarei até o fim da vida pelo vosso direito de falar.
Simpáticas ou antipáticas; agradáveis ou desagradáveis; confortáveis ou desconfortáveis que sejam, as regras e as normações existem tão somente para serem cumpridas, porque, se não forem aberrações incompreensíveis, ao menos alguma motivação social deve ter tido.
Qualquer norma técnica ou jurídica é sempre suscetível de aperfeiçoamento, como toda obra humana o é; só o que não se admite é a sua deturpação voluntária e consciente, em nome do interesse que for. Ataque-se a raiz do problema, não os resultados regulares de normas que, acaso, podem mesmo ser ruins; porque se são normas válidas, então precisam ser observadas e respeitadas.
IV – O caso muito recente – ainda em curso, e em fase inicial do processo judicial – que inspirou estas considerações diz respeito a servidores de Prefeituras, Câmara e autarquias de um Município paulista, que tiveram cortada significativa parte de suas aposentadorias públicas em face de uma, entendemos que absolutamente equivocada, leitura da decisão de uma ação direta de inconstitucionalidade recentemente julgada pelo Tribunal de Justiça do Estado e ainda em fase de recurso em Brasília.
Aquela ADIn declarou inconstitucionais dois artigos de uma lei municipal de 1.992, que criou e atribuiu aos servidores um adicional por escolarização média e superior. Os motivos e os fundamentos da decisão são de diversa natureza, como falta de interesse público na lei, indiferenciação do mérito dos beneficiários, e pouco mais que isso.
A ADIn não pleiteou devolução de valor nenhum pelos beneficiários ativos e inativos – até porque isso não deve ser objeto primário de ações de inconstitucionalidade -, e o Tribunal corretissimamente não determinou devolução nenhuma, reconhecendo a boa-fé dos beneficiários no episódio, assim como a sua isenção na formação da lei.
Os chefes dos Poderes e das autarquias locais, em cumprimento à decisão, cortaram o pagamento dos adicionais aos servidores ativos, reduzindo com isso a sua remuneração, e - agora o ponto crucial -, também cortaram das aposentadorias e das pensões pagas pelo Município o valor relativo aos adicionais, que estava incorporado, em diversos casos, havia 26 (vinte e seis) anos!
Algo incorporado há 26 anos porque a lei mandava incorporar, de um momento para outro desaparece como num infausto passe de mágica, sem aviso, sem anestesia e sem misericórdia. Seria talvez um golpe de mágica...
Uma importante parte dos proventos foi cancelada, e com isso o equilíbrio financeiro de quem a recebia sofreu abalo de grande monta. A assim chamada estabilidade financeira do servidor, defendida a ferro e fogo por muitos autores publicistas uma vez que não cai do céu, mas se deve a legislação específica, fez água. A justa expectativa de se receber o que havia mais de um quarto de século se recebia simplesmente desabou, esfarelou-se.
Foi justo, foi correto ou jurídico o que aconteceu aos inativos?
V – Um tema técnico de direito: efeito ex tunc versus efeito ex nunc.
Ex tunc é o efeito produzido desde o nascedouro de algum ato, e efeito ex nunc é aquele a ser produzido de ora em diante, para doravante e não se espraiando para o passado ([1]).
O próprio Tribunal de Justiça declarou que sua deliberação tinha efeito ex tunc, porém a realidade dos fatos não o confirma. Sim, porque se os efeitos da lei de 1.992 não foram anulados por inteiro através da condenação de os beneficiários devolverem o que receberam; então o efeito ex tunc deve ser para inglês ver, ou seja, nenhum. Simplesmente não existiu, do mesmo modo como não existe anulação daqui para frente, o que é apenas revogação, ou rescisão.
Não existe efeito ex tunc que não reponha o direito ao patamar anterior, com o desfazimento e a reparação de todos os efeitos produzidos pelo ato anulado. Como neste caso não o foi, e os servidores, ativos e inativos, que se haviam beneficiado dos adicionais criados pela lei de 1.992 não tiveram de devolver nada, então o efeito foi para o futuro, doravante, e não para o passado. E a isso se denomina efeito ex nunc, e não outra coisa.
E qual a importância desses conceitos para este caso?
VI - Diga o que disser o próprio Tribunal expedidor do acórdão, feliz ou infelizmente os problemas da dogmática não se resolvem pela taxinomia, como asseveram os mestres ([2]).
Não é por se alterar o nomen iuris, o rótulo, o título ou a designação de um instituto que ele se transforma em outro, nem que alguma coisa se transmuta em outra.
Em direito – como na vida – as coisas valem pelo que são, não pelo nome que ocasionalmente se lhes dê. Uma garrafa d´água com um rótulo de cerveja lamentavelmente não se transforma em uma garrafa de cerveja.
E um instituto jurídico que alguém um dia denomina de um modo, se acaso não contiver os requisitos daquele modo, simplesmente não corresponde á denominação, e por isso, sic et simpliciter, não é aquilo.
De nada vale pretender que o efeito da ADIn foi retroativo à origem do diploma combatido se todos os mesmos efeitos que aquele diploma produziu foram intocadamente preservados!
Algo assim será tudo o que se quiser em direito, menos efeito ex tunc! Falemos mais.
O egrégio Tribunal de Justiça do Estado considerou tão sagrado o conjunto dos proventos recebidos pelos autores – ininterruptamente graças a uma lei municipal do ano de 1.992 até o corte, em agosto de 2.018 -, e ainda sabendo o que significa uma aposentadoria para a vida do aposentado, que preservou como válidos todos os recebimentos, em face da circunstância bem conhecida e também dada a boa-fé dos autores.
E assim um tal efeito que preserva o passado, por tudo que se conhece em direito, jamais pode ser considerado ex tunc!
O efeito ex tunc desfaz, destrói, anula, aniquila, desmonta, cancela, elimina, desconstitui todo o resultado substantivo e prático produzido por um diploma que venha a ser invalidado.
Se não o fizer então simplesmente não é ex tunc, mas o que se denomina ex nunc, ou seja, para doravante e não para o passado, que se preserva. Não é demolida uma casa que seja preservada...
É evidente que a anulação de uma lei retroage à sua origem, porque não teria lógica imaginar anular daqui para a frente; isso não é anular, mas revogar ou rescindir.
Se, porém, o efeito da ADIn foi daqui para a frente, apenas impedindo a continuidade do pagamento dos adicionais, mas jamais afetando tudo quanto já foi pago, então à meridiana clareza estamos diante de efeitos ex nunc da decisão, que opera para o momento e para o futuro, mas jamais de efeito ex tunc.
Pouco servem alusões a excertos da decisão, ou a doutrina, ou ao que quer que seja neste caso: uma coisa é simplesmente o que é, não como ocasional ou circunstancialmente se a denomina.
VII – De nada vale negar, evadir-se ou se esquivar de reconhecer que a aposentadoria, antes de ser um ato administrativo complexo que somente se aperfeiçoa em caráter final com a homologação pelo Tribunal de Contas – como é amplamente sabido e ninguém nega – é um ato jurídico perfeito, que uma vez concedido com atendimento dos seus requisitos quita de parte a parte eventuais pendências, saliências, diferenças ou expectativas de qualquer natureza.
Quaisquer daquelas pendências ou diferenças precisam ser resolvidas antes de concedida a aposentadoria do servidor, jamais depois, como numa aposentadoria “condicional” que não faz nem faria nenhum sentido em direito.
Tanto isso é fato que os estatutos de funcionários ([3]) impedem a concessão de aposentadoria ao servidor que estiver sendo processado administrativamente, e por mais que o processo dure: é porque o poder público sabe que uma vez concedida a aposentadoria por idade ou por tempo de contribuição se torna irreversível - repita-se, salvo se se provar defeito na c sua concessão, hipótese em que é simplesmente anulado o ato concessivo.
A aposentadoria é, sim e inquestionavelmente, um ato jurídico perfeito até ser eventualmente anulado por órgão de controle administrativo ou judicial; enquanto não o for, constitui ato jurídico perfeito e acabado, imune por completo a alterações dos fundamentos da sua concessão, e não é porque o reconhecimento final do ato juridicamente perfeito se dá apenas com a homologação pelo TC que perde a característica de ato jurídico perfeito.
VIII – Relatou-se que neste caso diversos ex-servidores do Executivo receberam por mais de 26 (vinte e seis) anos a aposentadoria integrada pelos adicionais em questão. Então, se o Tribunal de Contas ainda não houvesse homologado aquelas aposentadorias o ato jurídico da sua concessão não estaria aperfeiçoado... não seria ato jurídico perfeito, mas algo como “ato jurídico condicionalmente perfeito”, ou monstruosidade desse quilate?...
Seria isso? Se o TC levar quinze anos para homologar, então enquanto isso os aposentados desfrutariam de um “ato jurídico mais ou menos perfeito”, ou de um ato “quase perfeito”, ou de um ato jurídico “a caminho de ser perfeito”, ou algo assim?...
Uma postulação semelhante respeitosamente não tem pé nem cabeça, carecendo da mais primitiva lógica e destoando de qualquer instituição regular, ou de qualquer sistema jurídico equilibrado e razoável.
Então, querer apenas reconhecer, para todos os efeitos, que a aposentadoria é um ato jurídico perfeito se é depois de o TC a homologar – quando nada existe de irregular na concessão, e ninguém jamais alegou irregularidade nenhuma, e quando o problema apenas surgiu porque um agente do Ministério Público, mais de um quarto de século após a lei concessiva resolveu questionar a constitucionalidade da lei... ora, é forçar por demais as categorias jurídicas, e fazer tabula rasa do princípio constitucional da razoabilidade!
Parece que para o poder público como um todo, a lei de 1.992 era linda, toda perfeita como inserta no ordenamento, admirável e absolutamente redonda – até o Ministério Público a questionar, e ingressar com a ADIn.
E parece, tudo o indica, que se o v. MP não tivesse movido a ADIn, aquela lei ainda estaria sendo considerada admirável, magnífica e invejável!
IX - Se ao invés de esperar 26 ou 27 anos o autor da ADIn esperasse 50 (cinqüenta) anos para movê-la, ou 70 (setenta) anos, então por cinqüenta ou por setenta anos os aposentados deveriam viver sob a espada de Dâmocles, e o risco de que de repente viesse a desabar sobre suas cabeças?
Faz algum sentido, num estado institucionalizado, e democrático de direito, uma hipotética situação como essa?
Segurança jurídica... que vem a ser, então?
Isso é o direito, e isso acaso é direito? Foi para algo assim que o homem instituiu o direito – verdadeiramente para destruir e para abalar a crença nas instituições e não para construir, será para isso que serve a ciência jurídica?
O zeloso professor universitário terá coragem de defender uma tal idéia ante seu filho adolescente e sinceramente interessado na profissão de seu pai? Será esse o ensinamento institucional jurídico que lhe pretenderá transmitir?
Não deve ser, e não foi assim que já decidiu por mais de uma vez o e. Tribunal Regional Federal – 3, neste acórdão:
TRF - 3 – APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA AMS 56732 SP 97.03.05673-2 (TRF-3) Data de publicação: 18/04/2000.
Ementa: PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA, ATO JURÍDICO PERFEITO CONVALIDADO PELO TEMPO. IMPOSSIBILIDADE DE REVISÃO. PROVIMENTO AO APELO DO IMPETRANTE. – O ordenamento jurídico brasileiro acolhe o princípio da segurança jurídica, buscando assim assegurar a estabilidade e a paz social, como corolário lógico do Estado do Direito. – O ato jurídico perfeito, uma vez consumado, não pode ser revisto pelas partes e sequer pelo própria Estado. – A legislação de regência condiciona o poder-dever da Administração Previdenciária de rever seus atos da concessão de benefícios, no lapso temporal de 5 anos a contar da data do deferimento da prestação, sob pena de não mais ter competência para fazê-lo. – Verifica-se in casu ser inadmissível a cassação do benefício previdenciário de aposentadoria após decorrido aquele prazo de que trata a lei. – Apelação do impetrante a que se dá provimento”.
Segurança jurídica é expressão que resume boa parte do que o cidadão espera do Estado e, quando é preciso, do Poder Judiciário. E decisões como esta acima correspondem à expectativa de todo cidadão honesto de propósito.
X – Mas não é só.
Num caso como este, em que a ação de inconstitucionalidade foi proposta mais de um quarto de século após a lei impugnada ser editada e começar a produzir efeito, sobre o processo incidem dois incontornáveis institutos de limitação temporal: um é a prescrição, e o outro é a decadência.
Em primeiro lugar seja observado que a ação não foi de ressarcimento, pois que não pediu isso nem isso foi dado pelo acórdão, e, portanto, não sendo de ressarcimento de valores aos cofres públicos, prescreve normalmente, já que a única imprescritível é aquela, na forma do art. 37, § 5º, o que recentemente o Supremo Tribunal Federal confirmou.
Desse modo a ADIn é prescritível como qualquer ação, exceção feita apenas à de ressarcimento. E o prazo prescricional é de 10 (dez) anos, conforme prevê o art. 205 do Código Civil, que é regra geral das prescrições dentro do mais importante código jurídico brasileiro.
Então, se a lei visada pela ADIn é de 1.992, então deveria a ação ter ingressado até 2.002, porque após isso estava prescrita. Nada importa que o autor integre pessoa de direito público, porque a prescrição opera indiferentemente contra todas as pessoas.
XI –E o outro instituto incidente sobre esta matéria é a decadência, que diz respeito ao direito em si e não à ação que o assegura. Decadência é a perda do direito, e prescrição é a perda do prazo da ação; a primeira é de direito substantivo e material, e a segunda de direito adjetivo, ou processual.
Denota-se que o autor da ADIn simplesmente decaiu do direito de anular artigos de uma lei municipal (Lei nº 2.458) datada de 25 de março de 1.992, por força do disposto no art. 54, da Lei federal nº 9.784, de 29 de janeiro de 1.999, que reza:
“Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé.” (Grifamos)
Dessa vez, tratando-se de decadência e não mais prescrição, não mais se fala em 10 (dez) anos, mas apenas em 5 (cinco) anos.
Sobre esse dispositivo o e. Superior Tribunal de Justiça, nos autos da Mandado de Segurança nº 6.566/DF, julgado em 15/5/00, já decidira irrepreensivelmente que
“PROCESSUAL CIVIL – MANDADO DE SEGURANÇA – PORTUÁRIOS – ANISTIA – APOSENTADORIA EXCEPCIONAL DO INSS – CANCELAMENTO DO BENEFÍCIO – DECADÊNCIA DO DIREITO – LEI 9.784, DE 29.01.99, E SÚMULA 473 DO STF “Após decorridos 5 (cinco) anos não pode mais a Administração Pública anular ato administrativo gerador de efeitos no campo de interesses individuais, por isso que se opera a decadência. Segurança concedida.” (com caixa alta original, e grifos nossos).
Observa-se portanto, e de resto já era bem sabido, que qualquer ente público decai do direito de anular atos de que decorreram efeitos favoráveis a alguém, mesmo que esses atos sejam decorrentes de uma lei municipal, se o prazo decadencial se completa.
Sim, e não é porque os atos benéficos aos servidores decorreram de uma lei local que deixa de prevalecer para o caso, e de incidir sobre o caso, a disposição fulminante da Lei federal nº federal nº 9.784, de 29 de janeiro de 1.999, art. 54.
Por outro lado está hoje assente que aquela lei federal sobre o processo administrativo, pela generalidade quase principiológica das suas estatuições, tem aplicação não apenas à União mas a todos os entes públicos brasileiros, como já decidiu a jurisprudência superior, como nesta decisão do e. Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial nº 628.524 – RS, proferido contra uma autarquia estadual gaúcha, o Instituto de Previdência do Estado do Rio Grande do Sul, por aplicação analógica daquela referida Lei federal nº 9.784/99, a lei do processo administrativo federal:
“ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. FILHA SOLTEIRA MAIOR DE 21 ANOS. DEPENDÊNCIA. ASSISTÊNCIA MÉDICO-HOSPITALAR. INÉRCIA DA ADMINISTRAÇÃO. DECADÊNCIA ADMINISTRATIVA.
- Não pode o administrado ficar sujeito indefinidamente ao poder de autotutela do Estado, sob pena de desestabilizar um dos pilares mestres do Estado Democrático de Direito, qual seja, o princípio da segurança das relações jurídicas. Assim, no ordenamento jurídico brasileiro, a prescritibilidade é a regra, e a imprescritibilidade exceção.
- Na ausência de lei estadual específica, a Administração Pública Estadual poderá rever seus próprios atos, quando viciados, desde que observado o prazo decadencial de cinco anos. Aplicação analógica da Lei nº 9.784/99.
- Recurso Especial não conhecido” (Grifamos).
Se a autarquia era estadual, então fica evidente que o e. STJ entende que os efeitos da lei federal do processo administrativo são nacionais e não apenas federais. E não foi isolada aquela magnífica decisão, eis que o próprio acórdão cita diversos precedentes do mesmo Tribunal.
XIII - O direito não socorre os que dormem, assevera o adequado adágio latino.
Com todo efeito não faz o mínimo sentido imaginar alguém ingressando com ação que vise anular ato de que resultou benefício a alguém oitenta anos após ter sido praticado. Nem o Código Civil nem a jurisprudência, nem a doutrina nem qualquer noção de lógica jurídica, nem o bom-senso humano o admite.
O Estado tem regras a seguir e tem limites na sua conduta, e não é porque é Estado que tudo pode executar, se ao arrepio da regra de regência e do amplo sistema em que se inclui. Assim pudera, então melhor seria viver sem o Estado.
O único ser livre é o escravo da lei, como dissera o antigo pensador. Se o Estado, que faz as regras, for o primeiro a descumpri-las, então, tal qual já no pórtico do inferno de Dante, desde logo percamos toda esperança.
[1] Nunc significa “agora” (inglês now, alemão nun), e tunc quer dizer “a seguir”, de modo que o velho e extremamente sintético latim não é muito explicativo quanto a estas expressões. O latim, de tão sintético, raramente explica à suficiência as suas expressões até a forma como hoje são traduzidas, e para a maneira moderna de as pessoas pensarem e se expressarem.
[2] Dentre os quais, por excelência e insistentemente, Márcio Cammarosano.
[3] Como exemplo seja citada a Lei federal nº 8.112/90, cujo art. 172 impede a aposentação do servidor que esteja sendo processado administrativamente. Tal quer dizer: uma vez concedida a aposentadoria, entende o serviço público que todas as condições para esse ato estão preenchidas, o que faz configurar um ato jurídico perfeito. E com atos jurídicos perfeitos, por gentileza, não se brinque... ou se demonstra que afinal o ato jurídico não foi perfeito, ou que se o respeite e preserve ad aeternum.