Por Everardo Maciel, Ex Secretário da RFB e consultor tributário

 

A ecoar título do afamado ensaio de Freud, há um claro mal-estar na civilização, que se traduz na eclosão de revoltas populares, graves tensões nos sistemas de representação política, exacerbação da intolerância, guerra comercial e, na percepção de argutos analistas, iminência de crise econômica internacional.

Já o Brasil prossegue com sua histórica prática de formulação displicente dos problemas, crença em soluções mágicas e relutância para abandonar maus hábitos.

Esse temerário contexto estimula a geração de ideias ruins. Neste artigo pinço duas delas.

Elisabeth Warren, postulante democrata à Presidência dos Estados Unidos, na pretensão de reduzir as desigualdades naquele país, defende uma tributação sobre “grandes fortunas”, desconsiderando que essa modalidade de tributação está praticamente extinta no mundo, porquanto ineficaz.

A simples oneração dos mais ricos por meio da criação ou majoração de tributos se inviabiliza em virtude da enorme flexibilidade que os afortunados têm para eleger domicílios fiscais generosos.

Na França, o imposto sobre grandes fortunas e a malsucedida elevação desproporcional do imposto de renda, promovida pelo governo de François Hollande, produziram o mais espetacular fiasco de política tributária contemporânea, acompanhado de vexatórias consequências, a exemplo da mudança de domicílio fiscal e cidadania do celebrado ator Gérard Depardieu  e a constatação de que Laetitia Casta, escolhida em 1999 para encarnar a Marianne (efígie que personifica a República Francesa) tinha domicílio fiscal na Grã-Bretanha, daí dizer-se que ela tinha o busto em Paris e a poupança em Londres.

Para deter a virtual mudança de domicílios fiscais, a postulante democrata propõe a criação de um “imposto de saída” (Exit Tax), consistindo na incidência de uma alíquota de 40% sobre o patrimônio dos ricaços que ameaçarem migrar para outros domicílios fiscais. Confesso que ainda não entendi a piada.

A iníqua contribuição dos tributos à expansão das fortunas decorre principalmente da sofisticada engenharia dos planejamentos tributários abusivos e da indiferença dos países ricos às práticas deletérias dos paraísos fiscais.

Alguns exemplos: Jeff Bezos, principal acionista da Amazon, que tem uma fortuna estimada em US$ 135 bilhões, recolheu, no último exercício fiscal, a relativamente modesta quantia de US$ 100 mil de impostos; Ugland House, edifício de cinco pavimentos nas Ilhas Cayman, é sede de cerca de 40 mil empresas, o que foi qualificado pelo ex-presidente Barak Obama como a maior fraude tributária do mundo; estatísticas veiculadas pelo FMI mostram que Luxemburgo, minúsculo país e tolerado paraíso fiscal, hospeda tanto investimentos estrangeiros diretos (US$ 4 trilhões) quanto os Estados Unidos e mais que a China, e que os investimentos anuais em empresas de fachadas (US$ 15 trilhões) equivalem à soma dos PIB da China e Alemanha; a engenharia tributária que envolve transferências de lucros entre subsidiárias na Irlanda, Holanda e outros paraísos fiscais no Caribe é tão sofisticada que recebeu o criativo apelido de “duplo irlandês com sanduíche holandês”.

O enfrentamento das desigualdades objetivas é tema complexo e não tem uma solução simples.

Ainda que não seja uma bala de prata, a política fiscal pode contribuir para mitigar o problema pela combinação de medidas voltadas para deter a erosão das bases tributárias com a efetivação de gastos centrados na redução da pobreza e na educação pública de qualidade.

Com risco de errar pela exuberância das concorrentes, elegi como a ideia ruim, nos debates tributários brasileiros, a bandeira da simplificação fundada na simplória proposta de fusão de tributos, que, como atesta a experiência, pode resultar em maior complexidade. Curiosamente, os que acenam com a bandeira da simplificação têm uma indisfarçada má vontade com o regime do lucro presumido e o Simples, justamente as raras e bem-sucedidas iniciativas de simplificação tributária no Brasil. Não é estranho?

 

SP, 13-12-19.