Por:Ruy Altenfelder e Claudia Buzzette Calais, O Estado de S. Paulo 29 de abril de 2021 03h00
A determinação da educação básica como direito de todos e dever da família e do Estado foi uma garantia da Constituição federal promulgada em 1988. Mas a educação pública obrigatória até o ensino médio só foi regulamentada há pouco mais de 20 anos, com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1999, e a partir da criação de mecanismos de financiamento e de diminuição das desigualdades territoriais, como o Fundeb – uma evolução do Fundef –, criado em 2006 e renovado no ano passado com novos elementos também para aumentar a equidade. Não podemos negar que, embora a passos aquém do ideal, tivemos avanços ao longo das últimas décadas. Segundo o relatório do 3.º ciclo de monitoramento das metas do Plano Nacional de Educação (PNE) de 2020, 98,1% da população de 6 a 14 anos frequenta ou já concluiu o ensino fundamental e 73,1% dos adolescentes de 15 a 17 anos frequentam ou já concluíram o ensino médio. Embora o País tenha tido avanços na universalização da educação pública e também na qualidade, com melhorias no Ideb 2019, toda essa evolução pode ser perdida se não forem criadas políticas públicas para atacar os efeitos da pandemia e a paralisação das aulas. Desde a 2.ª Guerra Mundial, nunca houve um período tão longo de suspensão de aulas e é a primeira vez na
História que temos um número tão grande de estudantes distantes da escola. Segundo a Unesco, a pandemia de covid-19 já impactou cerca de 91% do total de estudantes no planeta. No começo de abril deste ano o Brasil viveu um novo recorde de escolas fechadas em função da segunda onda de covid-19. Ao contrário do esperado, muitos municípios não conseguiram garantir o acesso às aulas, mesmo no formato remoto, a crianças e adolescentes. Essa lacuna de oferta do ensino remoto faz as desigualdades educacionais, que o Brasil tenta há décadas solucionar, se ampliarem ainda mais. Muitos municípios localizados longe dos grandes centros urbanos, com dificuldade de acesso a recursos e corpo técnico, até mesmo sem sinal de internet, não conseguirão sozinhos oferecer o básico necessário para seu estudante continuar o processo de aprendizagem. Internet acessível, infelizmente, não é a realidade vivida pelos estudantes da maioria dos municípios do interior do País e das regiões periféricas das grandes cidades. Como tendência, o ensino híbrido pode se tornar um legado educacional da pandemia, mas para que isso realmente se torne realidade será necessário um redesenho das políticas públicas capazes de reduzir as desigualdades e promover a recuperação desses estudantes que estão sem acesso à educação e, consequentemente, com seus direitos violados. O problema é que no momento em que a comunidade educacional mais precisa do suporte de políticas públicas, lamentavelmente, o Ministério da Educação (MEC) segue inexistente, apático. Assiste à distância ao drama vivido por secretários de Educação, educadores e estudantes. Na contramão das necessidades de Estados e municípios, o governo federal vetou integralmente o projeto de lei que prevê o acesso à internet, com fins educacionais, a alunos e professores da rede pública de educação, agravando ainda mais a situação de redes, que não estão dando conta de solucionar esse gargalo. Uma pesquisa feita pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) mostrou que houve atrasos significativos na adoção de programas apropriados para o ensino remoto. Até julho de 2020, 90% das unidades da Federação usaram a internet para oferecer as aulas da rede pública. No entanto, até abril, três meses antes, apenas cerca de 50% a 60% dos governos puseram à disposição as aulas pela internet, o que evidencia a demora de adaptação à nova realidade. Outro levantamento, desta vez realizado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pela Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, apontou que as crianças da pré-escola estão com déficit no desenvolvimento de habilidades. A diferença no ambiente de aprendizagem dentro de casa chega a 20 pontos porcentuais entre famílias ricas e pobres. Isso porque atividades como pintar, desenhar, recortar papéis e ouvir histórias são mais frequentes em lares de nível socioeconômico mais alto e mais raras nos grupos mais vulneráveis. Atrelada à questão, a pandemia também fez o papel do professor mudar. Acúmulo de funções, deslocamento entre áreas, criação de conteúdos adaptados ao digital foram algumas novas funções que eles tiveram que absorver rapidamente e muitas vezes sem o treinamento adequado. Hoje a rede pública atende mais de 80% dos alunos do ensino básico. Na pandemia esse porcentual está crescendo, uma vez que muitas famílias estão perdendo renda e transferindo os filhos para o ensino público. Cabe agora maior atenção a essas instituições, que abrangem a maior parcela da população estudantil do País, mas ainda vivem grandes desafios estruturais que interferem no aprendizado. E só é possível melhorar a qualidade da educação do País, com investimento em educação pública. O MEC precisa voltar à cena.
Respectivamente, Curador dos Prêmios Fundação Bunge, presidente do Conselho Superior de Estudos Avançados (Consea-Fiesp); e Diretora Executiva da Fundação Bunge.