Entre o ensino e a educação jurídica
(Aula Magna na Faculdade de Direito da USP)
Por Fernando Facury Scaff*
Saúdo os calouros que começam sua jornada no 1º semestre de 2020 nesta quase bicentenária Academia, sempre renovada com o sangue, suor e lágrimas de seus discentes, docentes e servidores. Lembro a todos que aqui começa uma trajetória que jamais se findará, pois esta Faculdade não tem ex-alunos, mas antigos alunos – eles se tornam perenes na memória e no coração de todos.
O tema que escolhi para saudá-los diz respeito ao ensino jurídico, pois transversal aos aqui presentes. O assunto, conforme divulgado, é por que estudar Direito nos dias atuais.
A bem da verdade, a expressão ensino jurídico, consagrada no meio acadêmico, é incompleta. O correto seria dizer educação jurídica, mais precisa e mais ampla.
Nossa Constituição determina que a educação é direito de todos e dever do Estado e da família, e será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (art. 205, caput). O ensino é que será ministrado com base em diversos princípios, dentre eles o da igualdade de condições para o acesso e permanência na escola e o da liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber (art. 206, I e II).
Vê-se, portando, que a expressão educação é mais ampla do que ensino, pois abrange, além de um direito de todos, um dever por parte do Estado e da família, em colaboração com a sociedade.
Qual a importância desta distinção no âmbito jurídico?
Entendo que a educação jurídica não deve ser obrigação apenas do ensino formal, como o que vocês iniciam hoje nesta Faculdade. A educação jurídica é também um dever do Estado e da família, com a colaboração da sociedade. As Faculdades de Direito além de serem o exclusivo local da formação profissional, do ensino da técnica jurídica, do conhecimento e uso dos manuais, é também um dos diversos locus onde se deve educar para o Direito, que não se resume ao conhecimento das normas. Saber Direito é conhecer da Justiça e do justo, identificar onde uma norma, ou uma ordem jurídica, se constitui em um instrumento de opressão, e não de liberdade e de isonomia. E isso é muito mais amplo do que apenas ensinar – o que é exclusividade das Faculdades de Direito. Educar para a identificação do justo, para a liberdade e a igualdade entre os seres humanos, para o respeito aos direitos fundamentais é dever do Estado e da família, com a colaboração da sociedade.
Talvez um exemplo ilustre o que busco expressar. Muito pouco adiantarão as aulas sobre direitos fundamentais, que serão ministradas ao longo do Curso, se o aluno não conseguir olhar ao seu redor, ao sair no Largo de São Francisco, a qualquer hora do dia ou da noite, e não se indignar com o quadro desolador de exclusão humana que se verifica quotidianamente, há muitos anos. Não existirá plenitude do Direito em nosso país enquanto houver um nível de exclusão social como a que se presencia em nosso entorno privilegiado. Projete isso para os demais locais em que cada qual de vocês vive, ou transita, e verificará que o Direito ensinado nos livros necessita ser aplicado à toda a sociedade, não apenas a uma pequena porção dela.
Os exemplos poderiam se multiplicar, alcançando níveis familiares ou mesmo profissionais. Poderia falar da indignação com as disseminadas práticas excludentes, tão presentes em nosso quotidiano, como na arquitetura de nossos lares, com os elevadores de serviço, que não são bem de serviço, mas destinados à exclusão e segregação. Ou mesmo da sonegação fiscal, praticada e justificada como um antídoto para a ineficiência do Estado. Exemplos não faltam.
A educação jurídica, portanto, não é exclusividade das Faculdades de Direito, embora o ensino jurídico seja ínsito a elas. Deve ser ministrada nos lares e na convivência social, sendo, também um dever do Estado, que, através de seus diversos governos, sucessivos no tempo e no espaço federativo, deveriam ser mais éticos e obedientes às leis, utilizando-se da máquina pública para consolidar direitos, e não para agir contra eles. Basta ver que a esmagadora maioria das lides que entopem nossos Tribunais são travadas tendo o Estado em um de seus polos.
Estudar Direito, portanto, não é apenas aprender a mecânica das leis, conhecer os códigos e saber localizar a jurisprudência que se aplica às normas, sendo que muitas vezes é aplicada contra as normas. Estudar Direito é ter os olhos e as ações voltadas para a liberdade e a isonomia, sempre em equilíbrio dinâmico, em busca de justiça – que muitas vezes pode não estar na ordem jurídica posta à disposição da sociedade.
2 Seguramente haverá, dentre os calouros, quem esteja desde já com os olhos voltados para as profissões jurídicas, usualmente bem remuneradas e com grande prestígio social.
É um olhar legítimo para seu próprio futuro. Quero propor um olhar de horizontes mais largos, pois pensar o próprio futuro, sem olhar para a sociedade que nos circunda, será como fincar estacas em solo movediço.
Para tanto, destaco um aspecto que diferencia as Faculdades de Direito dentre todas as demais. É delas que necessariamente se origina um dos Poderes do Estado, o Poder Judiciário. Tanto o Poder Legislativo, quanto o Poder Executivo, são eleitos, e daí podem surgir composições mais ou menos oligárquicas, corporativas ou populares. Todavia, advogados, juízes, promotores e delegados de polícia necessariamente são oriundos das Faculdades de Direito, o que destaca sua importância no contexto da organização do Estado e no cumprimento da ordem jurídica, em prol da sociedade.
Observando a história do Brasil, contudo, vemos que nem sempre esta vinculação às Faculdades de Direito produz ordenamentos jurídicos que busquem liberdade e igualdade. Em diversos momentos tivemos ordens jurídicas formais, cujas normas eram produzidas e obedecidas sob força.
Antes de 1930 tivemos a República Velha, prenhe de fraudes eleitorais. Com o golpe de 1930, de Getúlio Vargas, ocorre a quebra dessa velha ordem jurídica. Pressionado pelo movimento constitucionalista paulista de 1932, no qual esta Faculdade teve papel relevante, foram convocadas eleições e surge a Constituição de 1934, violada por Getúlio Vargas em novo golpe em 1937, instalando o Estado Novo. O país foi redemocratizado em 1946, havendo plenitude democrática até a ocorrência do golpe de 1964. Nova redemocratização ocorreu com a Constituição de 1988, cujas conquistas civilizatórias devem ser preservadas contra os ataques que vem sofrendo. Em síntese, vivemos liberdades democráticas entre 1946 e 1964, e de 1988 até os dias atuais. E, durante todos esses períodos, democráticos e de ditaduras, existiram juristas, oriundos de diversas Escolas de Direito, para elaborar e justificar as normas que foram editadas.
Dentre os construtores do apartheid sul-africano havia juristas. O mesmo ocorreu nas ditaduras e nos regimes autoritários mundo afora, de antes e de hoje. Juristas apoiaram Vargas durante o Estado Novo e na ditadura militar. As soluções jurídicas nem sempre buscam o equilíbrio entre igualdade e liberdade.
É nesse sentido que se deve alertar para a educação jurídica. Para que se tenha uma ordem jurídica que busque mais equilíbrio entre as liberdades públicas e a isonomia social não é suficiente o que se ensina nas escolas de Direito; é necessário que haja amparo também na sociedade e nas famílias, qualquer que seja sua forma de organização.
Educação ocorre no presente, mas corresponde ao futuro de um país, sendo necessário, além de outros saberes, aqueles que constituem as ciências sociais, dentro das quais o Direito se situa. Não construímos prédios, como os engenheiros, e nem cuidamos da saúde humana, como os médicos, mas trabalhamos para que nas sociedades, nas quais todos, ou, pelo menos, a maioria de seus habitantes, tenham condições de ter uma convivência feliz. Foi através do Direito que construímos a sociedade em que vivemos – os limites da propriedade e de sua função social; os limites contratuais e a intervenção do Estado; a separação de poderes e os instrumentos para o controle dos governos; o sistema tributário e financeiro, a proteção ambiental. Foi através do Direito que foi inventada a república e extinta a escravidão, e é através do Direito que são buscados instrumentos para reduzir o impacto desta em nossa sociedade – o que já tarda. Enfim, há uma interação de forças entre a sociedade e o Direito, na qual o jurista deve ser o construtor de soluções em prol da boa convivência humana. O Direito deve servir ao homem, e não ao dinheiro – este, aliás, é outra construção jurídica.
Temos que ser os construtores de soluções que sejam democráticas e republicanas para nosso país. Democráticas para podermos ouvir a todos e levar em consideração a opinião de cada qual, e republicanas para dirigir tais soluções em busca de um bem comum. A dignidade da pessoa humana não pode ser apenas buscada individualmente; trata-se de uma construção social. Repito: enquanto sairmos no Largo de São Francisco, nosso microcosmo, e encontrarmos pessoas sem-teto e ao abrigo de caixas de papelão, não haverá dignidade da pessoa humana como um todo no Brasil.
É em busca da formação desse jurista, comprometido com as liberdades públicas e com a igualdade social que as Faculdades de Direito devem se empenhar, e a sociedade, as famílias e o Estado devem apoiar. Trata-se de educação jurídica, e não de mero ensino jurídico.
3 É nesse contexto que destaco uma das profissões jurídicas menos valorizadas, porém das mais importantes. A do docente. Se advogados (públicos e privados), juízes, promotores e delegados de polícia saem necessariamente das Faculdades de Direito, também dela saem os professores que ensinam o Direito.
Os docentes são as peças mais importantes de toda essa engrenagem de educação e ensino jurídicos, pois eles formarão as condições e as experiências capazes de identificar o justo, dentro da ordem jurídica, e apresentá-las aos alunos ao longo de cinco anos de convívio, nem sempre amigável e fraterno.
A função docente é uma das mais difíceis em toda essa engrenagem, pois implica em um processo de ensino e aprendizagem, onde um dos atores tem que primordialmente se comprometer a ensinar, e, o outro, primordialmente em querer aprender. Trata-se de uma relação de mão dupla, pois nós, docentes, também aprendemos com nossos alunos – tenham certeza.
Seguramente haverá ruído nessa relação, o que implicará para as partes envolvidas saber como ultrapassá-lo, inserindo-o no processo de ensino. Eventuais demonstrações de preconceito ou de intolerância, dentre outras, deverão servir de alavanca para reforçar os laços, e não para seu estremecimento, devendo os docentes estar preparados para tais ruídos, que seguramente ocorrerão.
A conflituosidade mencionada na relação entre docentes e discentes se destaca também pelo fato de que um necessariamente terá que avaliar o outro, tarefa nem sempre fácil, e por certo delicada, exigindo das partes um esforço de compreensão de seus papeis. Os docentes de Direito não podem esquecer que, como docentes, sua função se assemelha muito mais a de jardineiros do que a de julgadores. Os juízes julgam, decidindo o que é certo e errado; os jardineiros cultivam jardins, abrindo espaços para que as plantas cresçam e deem frutos e flores, mas também cuidam de afastar as ervas daninhas daquele espaço. Os docentes, portanto, são como jardineiros, pois a relação de ensino é algo a ser cultivada, e não julgada.
Por outro lado, está fadado ao insucesso o aluno que tiver a expectativa de que aprenderá Direito apenas nas salas de aula. Este é apenas um momento do processo de transmissão do conhecimento. Serão necessárias muitas horas de leitura e reflexão para que o conteúdo das disciplinas ministradas seja devidamente compreendido além das salas de aulas, o que deverá ocorrer tanto nas praças (na ágora, em público), quanto no recôndito dos jardins, em locais privados. Isso implica na presença ativa dos discentes em congressos, reuniões e manifestações – o que inclui, claro, uma boa dose de ócio criativo.
Dois erros básicos ocorrem nos dias atuais. O primeiro: A crença de que se pode aprender Direito obtendo informações pela internet. Isso é falso. Se a busca for apenas por dados objetivos, eles podem ser encontrados; porém, qual análise contextual, histórica, social e ética será feita a partir dessas informações? É necessário pensar e construir soluções a partir do Direito, e com os olhos voltados às normas, para encontrar respostas adequadas aos problemas apresentados. É importante o debate de ideias e de convicções, o que não ocorre em um ambiente tão somente informatizado. O segundo (erro): A crença de que a jurisprudência diz o Direito. Teoria igualmente falsa. As decisões judiciais terminam litígios processuais, porém, à luz do Direito, podem estar erradas. Quem dirá do erro ou acerto são os professores, que, analisando aquela decisão e com base em seus estudos jurídicos, terão que justificar onde o Tribunal errou ou acertou. Em síntese: A doutrina, que é produzida nas Faculdades, deve doutrinar, apontando os erros e acertos das decisões judiciais, e não as adotando como dogmas. Isso não implica em afirmar que se deve desprezar a lei e a jurisprudência – elas devem ser conhecidas, obedecidas e ser objeto de análise crítica. É desse modo que o Direito se move. Não fosse assim, as Faculdades de Direito deveriam fechar e as aulas serem transferidas para os Tribunais.
É nesse sentido que se aponta para a necessidade de um verdadeiro e desassombrado debate acadêmico entre ideias conflitantes, atualmente mais polarizadas do que nunca. Sendo o Direito uma ciência argumentativa, é imperioso considerar que, como regra, para a solução de verdadeiros problemas jurídicos raramente são identificadas respostas exatas. Existem algumas respostas corretas, e um oceano de respostas erradas. Logo, o debate de ideias válidas, que buscam soluções para problemas jurídicos de nossa sociedade, não pode ocorrer nas redes sociais, mas nas academias, local onde se deve ouvir e ser ouvido, sem sectarismos.
4 Dentre as profissões jurídicas existe outra que merece ser destacada: é a de docente de pós-graduação – cursos de mestrado e doutorado. Os cursos de pós-graduação são o locus da formação dos formadores, isto é, os mestrandos e doutorandos de hoje serão os qualificados professores das Faculdades de Direito de amanhã. Tais professores têm sua importância e responsabilidade redobradas no âmbito da educação e do ensino jurídico, pois o que ensinarão será projetado além das atuais salas de aula, na formação daqueles que formarão os demais alunos para as profissões jurídicas.
Exatamente por isso que o nível de comprometimento e de pesquisa no âmbito da pós-graduação deve ser muito mais intenso do que na graduação, possuindo tais docentes redobrada importância dentro do sistema, pois eles não apenas ministram aulas para os futuros profissionais da área jurídica, mas o fazem para quem formará os futuros formadores. Aqui se insere a multidisciplinariedade, rompendo os esquemas clássicos da graduação, pois necessariamente devem ser mesclados saberes de diversas disciplinas, sejam ou não jurídicas. É a pesquisa realizada no âmbito da pós-graduação que alimentará as disciplinas de graduação das diversas Faculdades de Direito.
Mantendo a metáfora do jardim, os docentes de pós-graduação seriam os que cuidam das sementes que farão germinar outros jardins no futuro.
Por isso é preciso muita cautela em dois âmbitos, ao menos. Primeiro: No aprendizado através de manuais jurídicos. Só um excelente e experiente professor, que tenha formado gerações de outros mestres e doutores, é capaz de elaborar um manual jurídico de qualidade, que contenha adequadamente as informações necessárias ao conhecimento daquela matéria. Tais obras são o ápice de uma carreira, e não seu início. Afinal, esses manuais é que guiarão os primeiros passos dos graduandos. Segundo: Os concursos públicos para as carreiras jurídicas deveriam dar mais atenção a estes conteúdos qualificados, deixando de lado aspectos periféricos, ou de simples memorização, nas questões formuladas. Isso selecionaria melhor quem deseja ingressar nessas carreiras, através de profissionais mais qualificados, que já assumiriam suas funções com melhor conhecimento do que se estuda nas academias. Afinal, o conhecido aforisma que diz na prática a teoria é outra, decorre da constatação de que, ou a prática é ilegal, ou a teoria está desconectada da realidade.
5 Hoje vocês iniciam sua jornada em uma Universidade Pública, que está sob constante ameaça.
De um lado, ataca-se a liberdade acadêmica, a liberdade de ensino e a liberdade de pensamento. Isso é uma ameaça que deve ser combatida, pois completamente obscurantista. Retorna-se ao ensino de conteúdos que diversas ciências já abandonaram – como o criacionismo (ao invés da teoria evolucionista), ou o terraplanismo. A seguir esse exemplo, corre-se o risco de as Faculdades de Direito serem obrigadas a buscar justificativa jurídica para a escravidão, o que seria inaceitável. Não se pode admitir retrocessos. O sistema de quotas, por exemplo, é um compromisso da uma universidade pública e plural, que não pode ser afastado.
Por outro lado, existe a ameaça financeira, de corte de verbas públicas. Em outros níveis de ensino ameaçam até mesmo revogar as vinculações financeiras para os direitos sociais, o que seguramente violaria uma cláusula pétrea de nossa Carta de 1988. Uma alternativa que foi apresentada, da unificação dos percentuais de financiamento para educação e saúde, igualmente compromete a educação, pois esta representa o futuro, enquanto a saúde é sempre um problema presente – havendo urgência presente, quem priorizará recursos para gastos futuros? Isso seguramente fará minguar as já reduzidas verbas para a educação. É como se os dois direitos fossem colocados como feras para disputar verbas no Coliseu, para deleite da plateia privilegiada.
É inegável que, em face da escassez de recursos, o ensino privado supre uma lacuna importante, em todos os níveis educacionais. Porém não se há de esquecer que a lógica do mercado é a do lucro, enquanto a do Estado é, ou deveria ser, no caso brasileiro, a de reduzir as desigualdades e ampliar a isonomia, conforme prevê nossa Constituição.
O ensino público não é uma despesa, mas um investimento no futuro do país. E, para tanto, é preciso valorizar os docentes, financeiramente e em seu status social.
6 Enfim, estudar Direito nos dias atuais é muito mais importante do que nunca, em face das dificuldades pelas quais passa o país. Muito mais do que uma bela carreira a ser trilhada em benefício pessoal, o que se deve buscar é educação jurídica, aqui, junto às famílias e com o apoio do Estado e da sociedade, a fim de que possamos construir um país mais justo e solidário, em que as ameaças à democracia e aos direitos fundamentais sejam expurgadas de nosso horizonte e para que possamos, enfim, deixar de ser um país do futuro, e possamos, aqui e agora, sermos os construtores de soluções jurídicas para o tempo presente – o que se faz urgente.
Neste ponto se insere um conceito que me é muito caro, o de liberdade igual, pois só quando todos tivermos o mesmo grau de liberdade, é que teremos uma sociedade mais equânime, com a redução das desigualdades sociais e regionais. Hoje, a liberdade dos que dormem nas calçadas não é a mesma dos que estão neste salão. É preciso que seja alcançado um nível de liberdade igual para todos, o que implica em mais, e não menos, gastos sociais em nossa sociedade tão profundamente desigual.
É interessante notar a distinção entre educação e ensino jurídico neste âmbito. A justiça equitativa é lócus privilegiado para atuação do Poder Judiciário, pois é nela que se busca dar a cada um o que é seu.
Aqui se insere primordialmente a função de ensino jurídico, própria das Faculdades de Direito. Já a justiça distributiva tem por lócus privilegiado, no âmbito público, o Poder Legislativo e o Poder Executivo, e no âmbito privado, a sociedade e as famílias. Estes são os locais prioritários para se realizar a educação jurídica. A justiça distributiva visa redistribuir os bens em sociedade, e, nas relações de governo, tem o orçamento como o local mais apropriado para sua realização, pois, idealmente, arrecada-se de todos e distribui-se em benefício de todos, o que deve ocorrer de forma desigual, na medida das necessidades de cada qual, buscando igualar a todos para o exercício de suas liberdades. Trata-se da busca da liberdade igual, que é a liberdade para todos. O que ocorre no Brasil atual é justamente o inverso disso: arrecada-se mais de quem ganha menos, e gasta-se mais com quem ganha mais.
Esta é a função de quem estuda Direito, hoje e sempre: buscar a justiça, equilibrando igualdade e liberdade, seja nos haveres, seja nos deveres sociais. Havendo desequilíbrio entre haveres e deveres, é necessário que juridicamente a balança da justiça distributiva aponte para a correção de rumos. Assim, mais do que artífices de soluções individuais, que deságuam no Poder Judiciário em busca de justiça equitativa, é necessário que os juristas se tornem protagonistas de soluções para os problemas sociais que afligem o país, através de soluções de justiça distributiva. O papel do jurista deve ultrapassar a análise da atuação do Poder Judiciário, voltando seus olhos também à dinâmica dos demais Poderes, junto aos quais se deve buscar a justiça social.
Eis a razão pela qual devemos continuar a estudar Direito nos dias atuais.
7 Gostaria de destacar, por fim, que minhas palavras de boas-vindas não são de abertura das portas de uma das mais importantes e destacadas Faculdades de Direito, que faz parte da Universidade de São Paulo. É mais do que isso. E, para tanto, conto (rapidamente) um pouco de minha trajetória.
Conclui meu bacharelado em Direito na Universidade Federal do Pará, no já longínquo ano de 1982. Vim para esta Faculdade cursar pós-graduação, onde convivi com colegas dos mais distintos lugares do Brasil e do mundo. Formávamos um grupo de estudantes de pós-graduação oriundos do Pará, Piauí, Ceará, Paraíba, Rio Grande do Sul, e também de Angola, Moçambique e da Bélgica. E, claro, muitos colegas paulistas e paulistanos. Ao final do curso muitos se tornaram docentes em diversos Estados do Brasil e do exterior, levando as lições e a doutrina aqui aprendidas para seus alunos que, ao longo do tempo, também já se graduaram e se tornaram profissionais do Direito e também docentes, construindo novos saberes e replicando antigos ensinamentos. De minha parte, ingressei por concurso público na docência de minha Universidade de origem, a Universidade Federal do Pará, da qual me tornei Professor Titular de Direito Financeiro e Tributário até me aposentar. Hoje, também por concurso público, ingressei e me tornei Professor Titular de Direito Financeiro desta Faculdade. E sempre advoguei na área financeira e tributária, em todos os rincões deste país.
Relato esses fatos para destacar que esta Faculdade, embora seja de São Paulo, como consta em seu nome, se caracteriza como uma Faculdade que abriga alunos dos mais distintos locais do Brasil, em face da diversidade e do pluralismo que a caracteriza, inclusive no âmbito federativo e de referência internacional. Tenho a honra, hoje, de presidir a Comissão de Pós-Graduação desta Faculdade, em conjunto com a Profa. Titular Ana Elisa Bechara, e, nessa atividade, assino os certificados de conclusão de curso de centenas de novos mestres e doutores formados em nossa Faculdade a cada ano. Pois posso afirmar que a maioria deles se graduou em Instituições de Ensino Superior que não são desta capital, mas espalhadas Brasil afora, o que reforça minha afirmação.
Portanto, caros alunos, sejam bem-vindos à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, que, embora localizada no centro da cidade de São Paulo, no Largo de São Francisco, não é apenas a Universidade de São Paulo – é hoje a verdadeira Universidade do Brasil.
Bom curso a todos. Aproveitem a inestimável oportunidade que a vida lhes concede, a custa de seu esforço pessoal e familiar, sob o financiamento da sociedade, que espera retribuição. Esta Casa lhes recebe de braços abertos.
Agradeço a atenção. Muito obrigado.
* Professor Titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo. Professor Titular de Direito Financeiro e Tributário da Universidade Federal do Pará (aposentado). Livre docente e Doutor em Direito pela USP. Advogado, sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro e Scaff – Advogados.