Por Eduardo Marcial Ferreira Jardim*
Sumário: 1. Introdução. 2. Fechamento de praias. 3. Isolamento e reflexões sobre a cogitada flexibilização pelo governo federal. 4. Inobservância do isolamento e a sua indevida criminalização. 5.Síntese conclusiva. 6. Conclusões
- Introdução
Temos visto com frequência uma ampla cobertura midiática em relação ao novo coronavírus, também denominado Covid 19. Preliminarmente, não se pode deixar de tecer elogios ao esforço e comprometimento dos jornalistas no sentido de informar a opinião pública acerca do assunto em todos os seus desdobramentos. Realmente, uma lição em prol da cidadania.
Pois bem, dentre outros aspectos no noticiário, merece estaque o fechamento de praias no Estado de São Paulo e outros, bem como a existência de um suposto conflito de Poderes entre o Governo Federal e alguns Estados, na medida em que o primeiro propugna pela flexibilização do isolamento e retomada da atividade econômica, enquanto algumas unidades federadas, a exemplo do Estado de São Paulo, de revés, pugnam em prol da manutenção do isolamento com eventual exacerbação do rigor em seu disciplinamento.
Ao demais, não raro, ante esse debate, muitos cometem o equívoco no sentido de imaginar que a Lei editada pelo Governo Federal se sobreporia à Legislação Estadual ou mesmo Municipal, o que significa um total desconhecimento da essência do pacto federativo, no qual, a contrário de haver hierarquia, existe, sim, uma inegável igualdade entre a União Federal, Estados e Municípios, configurando, assim, o princípio cristalizado na isonomia entre as pessoas constitucionais.
Nessa vereda, aliás, em julgamento prolatado na ADI nº 6341, no dia 15 de abril deste ano de 2020, em decisão unânime, o Pretório Excelso reconheceu a competência concorrente de Estados, Distrito Federal, Municípios e União no combate ao Covid 19.
O decisum harmoniza-se com o postulado da isonomia entre as pessoas constitucionais, o que entreplica refusar a suposta e equivocada supremacia da União no pacto federativo, cabendo ressalvar que, em tese, somente a legislação nacional teria o apanágio de subordinar a legislação local ao seu raio de abrangência, nos termos do disposto no artigo 24, § 4º, da Constituição, em que as normas gerais da lei nacional suspendem a eficácia da legislação local. Nessa hipótese, a União estaria desempenhando a função de legislador do Estado brasileiro e não como uma das pessoas constitucionais.
Ao demais, importa ressaltar que o presente ensaio preordena-se a bordar o assunto sob o prisma jurídico, fazendo-o inspirado nas lições da Teoria Pura do Direito, de Kelsen, passando ao largo, portanto, da boa intenção dos governantes e de suas medidas, senão também fazendo abstração de postulados da medicina ou da política ou quaisquer outros, circunscrevendo-se, pois, ao universo do Direito.[1] Com efeito, o que se quer é refletir e aquilatar sobre dimensão de competência constitucional dos múltiplos planos do Poder, tudo na busca de verificar a constitucionalidade ou não das providências governamentais já efetivadas e outras cogitadas ou em andamento.
- Fechamento de praias
A propósito, dentre outros conflitos, vê-se o Governo do Estado ou do Município fechando as praias, caracterizando, assim, uma indevida invasão de competência, porquanto as praias marítimas são bens da União, conforme o disposto no art. 20, inciso IV, da Constituição Federal, a saber:
Art. 20. São bens da União:
IV as ilhas fluviais e lacustres nas zonas limítrofes com outros países; as praias marítimas; as ilhas oceânicas e as costeiras, excluídas, destas, as que contenham a sede de Municípios, exceto aquelas áreas afetadas ao serviço público e a unidade ambiental federal, e as referidas no art. 26, II; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 46, de 2005). [2]
Por outro lado, não se pode olvidar que os Municípios podem e devem disciplinar a utilização das praias com fundamento no interesse local e com o desígnio de implementar a legislação federal aplicável à espécie, o que, nem por hipótese, autorizaria vedar o acesso às praias, como sói acontecer.
Na verdade, em tempos de crise ou não, os Municípios poderiam disciplinar e cuidar da adequada e boa utilização das praias, senão também deveriam proibir a navegação de quaisquer embarcações aquáticas na área de banhistas, o que poderia evitar a ocorrência de acidentes trágicos. O que não podem, isto sim, é proibir o acesso a algo que não lhes pertence, no caso, as praias, nos termos do comando constitucional retrocitado.
Por oportuno, cumpre comentar o caso da interdição das praias de Santos no litoral do Estado de São Paulo, pois, afora a vedação genérica conforme as regras constitucionais ora suscitadas, há um convênio celebrado entre o Município de Santos e a União, o qual estabelece como uma das condições o livre acesso à praia, tudo com fulcro em legislação de conteúdo nacional, no caso a Lei nº 9.636, de 15 de maio de 1998, que, em seu artigo 4º, § 1º, assim preceituou, a saber:
Art. 4o Os Estados, Municípios e a iniciativa privada, a juízo e a critério do Ministério da Fazenda, observadas as instruções que expedir sobre a matéria, poderão ser habilitados, mediante convênios ou contratos a serem celebrados com a SPU, para executar a identificação, demarcação, cadastramento e fiscalização de áreas do patrimônio da União, assim como o planejamento e a execução do parcelamento e da urbanização de áreas vagas, com base em projetos elaborados na forma da legislação pertinente.
- 1o Na elaboração e execução dos projetos de que trata este artigo, serão sempre respeitados a preservação e o livre acesso às praias marítimas, fluviais e lacustres e a outras áreas de uso comum do povo. [3]
- Isolamento e reflexões sobre a cogitada flexibilização pelo governo federal
É de mister reafirmar que, em harmonia com o pacto federativo, o Governo Federal não é dotado de competência para flexibilizar a economia no sentido de legislar sobre a matéria e, com isso, paralisar a eficácia da legislação estadual ou municipal no que lhe for contrário.
A afirmação se justifica em nome da mencionada isonomia ou igualdade entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, premissa, aliás, tipificadora do Estado Federal. A título de exemplo, não demasia insistir, a legislação da União Federal não reveste o condão de sobrepor-se à legislação de um dado Estado ou Municipalidade, mercê da autonomia das unidades federadas, cujos Poderes encontram-se devidamente partilhados na Carta da República.
A confusão talvez decorra de uma impropriedade terminológica segundo a qual toda legislação produzida pelo Congresso Nacional em conjunto com o Presidente da República é indevidamente denominada de Lei Federal, quando, na verdade, dependendo de dadas circunstâncias haverá de ser Federal ou Nacional, as quais hospedam traços diferençais claramente distintos.
Em veras, a legislação federal é aquela concernente à União, a exemplo da Justiça Federal, da Polícia Federal, da emissão de moeda, do imposto sobre a renda e os demais gravames inscritos no art. 153, incisos I usque VII, da Constituição da República e assim avante.
Por outro lado, o Código Civil ou o Código Tributário Nacional ou a Lei de Responsabilidade Fiscal, dentre muitas, embora produzidas pelo mesmo Congresso Nacional e pelo Presidente da República, não são leis federais, mas, sim, leis nacionais, porquanto reveste o caráter de diplomas do Estado brasileiro e não apenas da União que é um de seus componentes.
Uma das lições pioneiras acerca do tema foi propugnada por Geraldo Ataliba inscrita em seu clássico Sistema Constitucional Tributário Brasileiro. Ouçamo-lo, pois:
A lei nacional é lei do Estado Brasileiro, dirige-se a todos quantos estejam no território nacional. A lei federal é lei da União, só atingindo seus súditos. Logo, não tem o poder de obrigar os Estados e os Municípios, nem seus funcionários. Não obriga, também, seus súditos, enquanto considerados nessa qualidade. [4]
A título de exemplo, cumpre atremar que a Lei de Responsabilidade Fiscal tem como destinatárias e subordinadas as pessoas constitucionais, ao passo que, cada qual, a seu turno, produz a lei orçamentária federal, distrital, estadual ou municipal, tudo sob a égide do mencionado diploma normativo e, obviamente, sob o crivo da Carta da República.
O asserto trazido à baila faz coro com a lição de Harada, que ressalta a distinção entre legislação de âmbito nacional e local. São suas palavras:
As normas da lei sob comento obrigam a União, Estados, Distrito Federal e Municípios, por ser uma lei de vocação nacional, destinada a controlar as finanças públicas de todos os entes componentes da Federação e suas autarquias, fundações e empresas estatais. [5]
Celso Bastos, a seu turno, observa que a União se equipara às demais pessoas constitucionais que gozam de autonomia, cabendo-lhe a soberania apenas no plano internacional[6], na medida em que lhe compete manter relações com Estados estrangeiros e participar de organizações internacionais, conforme o disposto no art. 21, inciso I, da Constituição da 1967, então em vigor quando a referida obra foi escrita.
Ante a arguta reflexão do eminente constitucionalista, torna-se imperioso dessumir que no plano do direito interno, ao produzir legislação que subordina as leis federais, estaduais, distritais e municipais, a União assume a função de legislador do Estado brasileiro. Deveras, a legislação com tais matizes não se confunde com a lei federal, pois afigura-se decididamente lei nacional.
Em estreita síntese, poder-se-ia afirmar que a lei nacional tem como subordinados quaisquer pessoas físicas ou jurídicas, públicas ou privadas, inclusive as próprias pessoas de direito público interno, no caso a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.
Nessa vereda, por exemplo, ao demandar em juízo, a União se subordina ao Código de Processo, assim como qualquer outra pessoa, o que acentua a preeminência e a universalidade da legislação nacional em relação à federal.
Ante os argumentos trazidos à colação, força é depreender que a legislação federal, a qualquer título seja, falece de poderes para superpor-se à lei local, convindo ponderar, no entanto, que na hipótese de ser editada legislação estadual ou municipal na contramão do figurino constitucional, o caminho adequado seria a judicialização do caso, simpliciter et de plano.
Outrossim, em face da adveniente disseminação do Covid 19, o Congresso Nacional em conjunto com o Presidente da República editou a Lei nº 13.979, datada de 6 de fevereiro de 2020, a qual dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do coronavírus, conforme consta de seu preâmbulo.
O referido diploma normativo prevê uma série de providências excepcionais, a exemplo de isolamento, quarentena e restrição à liberdade de locomoção interestadual e intermunicipal, nos termos do disposto no art. 3º, incisos I, II e VI, alínea b. [7]
Liberdade de locomoção
Cumpre advertir que a restrição à liberdade de locomoção in casu, se válida fosse, seria restrita ao espaço interestadual e intermunicipal e não ao intramunicipal, conforme prática adotada em inúmeras cidades do país.
Assim, tirante a dimensão espacial questionada, a Constituição Federal versa o assunto com clareza solar, em consonância com o disposto no inciso XV, de seu art. 5º, a saber:
XV - é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens. [8]
Em veras, por se tratar de direito e garantia individual e, portanto, pétreo, resta evidente que não pode ser modificado, alterado, ou coarctado nem mesmo por Emenda à Constituição, donde, a fortiori, jamais poderia sê-lo por meio da Lei Nacional nº. 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, a qual, por esse motivo, não se escoima de invalidade pleno jure.
Destarte, é necessário destacar que somente a Decretação de Estado de Sítio é que teria o condão de restringir a liberdade de locomoção, cujo conteúdo significa o direito de ir, vir e também de ficar, conforme a abalizada lição de Manoel Gonçalves Ferreira Filho. [9]
Dado a flagrante descompasso entre a lei em apreço e a liberdade de locomoção, força é admitir que o bloqueio de acesso a cidades, senão também o impedimento de frequentar as praias, conforme está ocorrendo no país, traduzem hipóteses que afrontam o direito ora analisado.
Em abono ao alegado no tocante ao Estado de Sítio, vejamos a sua previsão constitucional específica imersa no art. 139, inciso I:
Art. 139. Na vigência do estado de sítio decretado com fundamento no art. 137, I, só poderão ser tomadas contra as pessoas as seguintes medidas:
I - obrigação de permanência em localidade determinada;[10]
Isolamento e quarentena
Demais disso, não se pode olvidar que o isolamento, bem assim a quarentena, traz empeços à atividade econômica consubstanciada no exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, em obséquio ao disposto no art. 5º, inciso XIII, da Constituição Federal, o qual, a exemplo da liberdade de locomoção, não poderia ser restringido nem mesmo por Emenda Constitucional, em virtude de sua petreidade contemplada no art. 60, § 4º, inciso IV, do Texto Magno. Vejamos, pois:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]
XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer. [...]
Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: [...]
- 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I - a forma federativa de Estado;
II - o voto direto, secreto, universal e periódico;
III - a separação dos Poderes;
IV - os direitos e garantias individuais. [11]
- Inobservância do isolamento e a sua indevida criminalização
O Código Penal estabelece a criminalização da propagação de germes patogênicos, bem como qualifica como crime, também, a infração de medida sanitária preventiva destinada a impedir a transmissão de doenças contagiosa, consoante estipulado nos artigos 267 e 268 contidos no Capítulo denominado “Dos Crimes contra a Saúde Pública.”
A propósito, relatos dessa natureza são frequentes no discurso de autoridades governamentais, os quais, bem-intencionados embora, afirmam que se houver necessidade de preservar o isolamento poderão tomar providências mais incisivas, incluindo a criminalização de condutas que descumpram as regras sanitárias concernentes ao isolamento.
A codificação penal, a bem ver, foi produzida por meio do Decreto-lei nº 2.848, de 7 de fevereiro de 1940, tendo por fundamento de validade a Constituição Federal de 1937. O Código Penal, em sua generalidade, bem assim as normas ora examinadas, guardavam harmonia com o Texto Constitucional de então, tanto que, ao versar sobre direitos e garantias por intermédio do artigo 122, havia uma série de exceções, dentre as quais, a possibilidade de edição de leis destinadas à proteção do interesse público, bem-estar do povo e segurança do Estado, o que representava um verdadeiro cheque em branco em prol do legislador.
Como se vê, a hipótese de alguém locomover-se publicamente ou desobedecer a regra sanitária de distanciamento, à época, poderia render margem às penas previstas nos comandos normativos questionados, porquanto compatíveis com a ordem constitucional de antanho.
Entrementes, tais mandamentos não foram recepcionados pela Constituição de 1988, cujo texto e contexto contempla com cores escarlates o direito à liberdade de locomoção – o ir e vir e o ficar – fazendo-o em sua plenitude, sem contar o primado da atividade econômica preordenado a assegurar uma existência digna, nos termos do caput do artigo 170 e seus desdobres.
Não se pode colocar no rol do esquecimento a existência de outros valores sacramentais explicitados no Texto Supremo, como a dignidade da pessoa humana, o direito à vida e ainda os direitos sociais relativos à educação, à saúde, à alimentação, à moradia, ao transporte e outros.
Em verdade, ressalta à evidência que o plexo de valores ora expostos não se compagina com a disposição dos artigos 267 e 268 do Código Penal, cujo preceito proíbe a liberdade e locomoção sob pretexto de impedir a propagação de doença contagiosa.
Conforme antedito, não demasia insistir e reafirmar que a liberdade de locomoção somente pode ser restringida por meio da decretação de Estado de Sítio, inexistindo qualquer outra possibilidade, sob pena de cometimento de ilegalidade ou abuso de poder.
Realmente, o problema do coronavírus representa pressuposto pelo qual o Presidente da República poderia solicitar ao Congresso Nacional a competente autorização para decretar o Estado de Sítio, desde que ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional.
De conseguinte, se decretado o Estado de Sítio, daí, sim, haveria legitimidade no sentido de serem estabelecidas uma série de medidas restritivas de direito, as quais vem sendo aplicadas e concretizadas mesmo à míngua de fundamento constitucional.
- Síntese conclusiva
Deveras, é necessário reconhecer, por um lado, que a eventual liberação do isolamento em sua plenitude estaria na contramão dos postulados constitucionais e legais que dizem respeito à saúde, enquanto direitos do cidadão e dever do Estado.
De outra parte, contudo, consoante exposto, uma série de restrições estabelecidas por governos estaduais e municipais não resistem a um contraste de constitucionalidade ou de legalidade, a teor do acesso a cidades ou às praias, bem como as vedações em relação ao exercício da atividade econômica, senão também a vedação à liberdade de locomoção.
Por conseguinte, em homenagem ao Texto Excelso, o que se quer seria a adoção de políticas públicas tendentes a compatibilizar o binômio substanciado na proteção à saúde conjugado com o exercício disciplinado e moderado da atividade econômica e pessoal, assim como o trabalho e a liberdade de locomoção.
Obviamente seria uma missão sobremodo complexa e muito acima do simples “tudo pode” ou “nada pode” que não requer nenhuma ciência, mas o que se espera é o enfrentamento desse grande desafio e a busca de soluções.
Sobremais, tudo haveria de ser feito sob o império do Direito, compreendendo todo o universo normativo, onde avulta a preeminência da Constituição, a qual, como visto, não tem sido observada, ad exemplum de medidas restritivas que foram impostas por leis e decretos, ao contrário de fazê-lo por decretação de Estado de Sítio, que seria o único meio compatível com o ordenamento constitucional.
Mesmo nessa hipótese, não se pode olvidar que os direitos e garantias poderiam ser restringidos e disciplinados de tal sorte que as medidas buscassem compatibilizar o distanciamento social com um mínimo de atividade econômica, tudo com o desígnio de assegurar o direito à vida, máxime porque, se ao contrário, teríamos uma incontida geração de falências, desempregos e outras vicissitudes, a exemplo da alimentação como forma de sobrevivência, comprometendo, assim, de maneira inexorável, a qualidade da vida e o próprio direito de viver.
Decididamente, o que se vê configura um desconcerto a um plexo de valores constitucionalizados, os quais, na percepção deste Estudo, passam ao largo do Texto Magno e do império da lei em sua acepção lata. A primazia da lei foi argutamente sintetizada por Aristóteles que, em sua obra Política, opôs-se a Platão, pugnando então pela preeminência do império da lei. São suas palavras: “A Lei deve governar preferencialmente a qualquer indivíduo”.[12]
Há mais de 200 anos, Marcus Tullius Cícero, nos brindou com uma lição eternizada do culto à lei, sintetizada com mestria na frase “somos todos servos das leis para que possamos ser livres. [13] Em verdade, o texto original na íntegra encontra-se assim redigido: "Legumministrimagistratus, legum interpreta instrumentos, legumdeniqueidcirco omnes servi sumus uti liberi esse possimus." Em tradução livre: “Os magistrados que administram a lei, os juízes que atuam como porta-vozes, todos nós que vivemos como seus servos concedem nossa lealdade como garantia de nossa liberdade." [14]
A Constituição de Massachussets de 1770, por sua vez, consagrou o primado da lei que foi devidamente explicitado em seu artigo XXX ao firmar que o Estado Democrático é caracterizado pelo “Governo das Leis e não dos homens”, conforme disposto em sua versão original:
Art. XXX. In the government of this commonwealth, the legislative department shall never exercise the executive and judicial powers, or either of them; the executive shall never exercise the legislative and judicial powers, or either of them; the judicial shall never exercise the legislative and executive powers, or either of them; to the end it maybe a government of laws, and not of men”.[15]
A propósito, impende pontuar que o artigo 1º da Constituição Federal define o Brasil como um Estado Democrático de Direito, o que, na abalizada lição de Alexandre de Moraes configura o chamado Estado Constitucional, o qual transcende o Estado de Direito, porquanto o Estado Democrático introduz no constitucionalismo a garantia de legitimação e limitação do poder.[16] Ao demais, o renomado jurista aduz que num Estado com esse perfil as autoridades públicas devem respeitar os direitos e garantias fundamentais.[17]
Por derradeiro, força é reiterar que na percepção do presente Estudo as providências ora analisadas afiguram-se descomedidas e maculam os direitos e garantias constitucionais ora suscitados, cabendo obtemperar que seria de mister a busca de um ponto de equilíbrio objetivado a conjugar a preservação da saúde com a atividade econômica.
- Conclusões
- Mercê da isonomia imanente ao pacto federativo, a legislação federal não desfruta de competência constitucional para se sobrepor à legislação de quaisquer das unidades federativas.
- A legislação nacional, diferentemente da lei federal, tem por súditos todas as pessoas físicas e jurídicas, públicas e privadas, inclusive as pessoas constitucionais, pois reveste a roupagem de Lei do Estado brasileiro.
- A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios desfrutam de competência para o combate ao Covid 19, consoante consagrado pelo Pretório Excelso ao julgar a ADI nº 6341, respeitados os limites constitucionais firmados neste ensaio, bem como a supremacia das normas gerais editadas pela União em nome do Estado brasileiro, em obséquio ao disposto no art. 23, § 4º, da Constituição Federal.
- A vedação à circulação de pessoas ou de acesso a cidades ou praias traduz restringência a direito e garantia fundamental que somente poderia ser firmado e disciplinado por meio da Decretação de Estado de Sítio, com duração de tão somente trinta dias.
- O isolamento exacerbado afronta o direito consubstanciado no exercício de liberdade de trabalho, ofício ou profissão (art. 5º, XIII, CF) e culmina por ofender o postulado da liberdade da atividade econômica (art.170, CF), potencializando um caos irreparável na vida profissional e pessoal da sociedade.
- A derradeira, lembremos a memorável lição de Ruy Barbosa que, numa apologia ao culto da legalidade, assim averbou: “Com a lei, pela lei e dentro da lei; porque fora da lei não há solução”.[18]
* Mestre e Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor Titular de Direito Tributário na Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie e Professor nos Cursos de Especialização do IBET, bem como no Damásio Educacional, sob a Coordenação da Professora e Ministra do STJ Regina Helena Costa. Palestrante e Conferencista com participação em Congressos Nacionais e Internacionais. Membro da Academia Paulista de Letras Jurídicas, Cadeira n. 62. Membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário. Autor de inúmeros Estudos e Artigos Acadêmicos publicados em Revistas Especializadas, bem assim Capítulos de Livros e, sobretudo, Livros de Direito publicados pelas Editoras Saraiva, Noeses e Mackenzie.
[1]KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Coimbra: Armênio Amado – Editor, 1974, p. 17-18.
[2]BRASIL. Constituição Federal de 05 de outubro de 1988. Diário Oficial da União - Seção 1 - 5/10/1988,p. 1 (Publicação Original). Brasília/DF.
[3]BRASIL. Presidência da República.Casa Civil.Subchefia para Assuntos Jurídicos.Lei nº 9.636, de 15 de maio de 1998.Brasília/DF Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9636.htm. Acesso em: 17 abr. 2020. (grifos nossos).
[4]ATALIBA, Geraldo. Sistema Constitucional Tributário Brasileiro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1968, p. 95.
[5]HARADA, Kiyoshi. Responsabilidade Fiscal. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2002, p.12.
[6]BASTOS, Celso. Elementos de Direito Constitucional. São Paulo: EDUC: Saraiva, 1976, p. 78-79.
[7]BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020.Brasília/DF. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/L13979.htm. Acesso em: 17 abr. 2020.
[8]BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 9.636, de 15 de maio de 1998. Brasília/DF Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9636.htm. Acesso em: 17 abr. 2020. (grifos nossos).
[9]FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 40. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 329.
[10]BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 9.636, de 15 de maio de 1998. Brasília/DF Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9636.htm. Acesso em: 17 abr. 2020. (grifos nossos).
[11]Op. cit.
[12]ARISTÓTELES. Política. 3ª reimpressão. São Paulo: Martin Claret, 2019, p. 131.
[13]CÍCERO, Marcus Tullius. www.thelatinlibrary.com53: 146. Acesso em: 5 mar. 2018.
[14] Op. cit., p. 217.
[15]UNITED STATES OF AMERICA. Massachusetts Constitution. Disponível em: malegislature.gov/laws/constitution. (grifos nossos).
[16]MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 24. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2009, p. 6.
[17] Op. cit., p. 6.
[18]BARBOSA, Ruy. Discursos parlamentares. Tomo I. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1892, 19 v, Obras Completas, cap. XII, p. 285-289.