Artigo publicado no livro coletivo editado pela Marcial Pons.
Adilson Abreu Dallari1
I. Consideração preliminar
Antes de tudo, é forçoso explicitar o que se entende por consequencialismo.
Com base na vetusta teoria tridimensional do direito, pode-se afirmar que a ponderação das consequências é necessariamente inerente à atividade jurídica:
Onde quer que haja um fenômeno jurídico, há, sempre e necessariamente, um fato subjacente (fato econômico, geográfico, demográfico, de ordem técnica, etc.); um valor, que confere determinada significação a esse fato, inclinando ou determinando a ação dos homens no sentido de atingir ou preservar certa finalidade ou objetivo; e, finalmente, uma regra ou norma, que representa a relação ou medida que integra um daqueles elementos ao outro, o fato ao valor.2 (Miguel Reale, Lições Preliminares de Direito, Bushatsky, Ed. da Universidade de São Paulo, 1973, p. 87).
Em síntese, o objetivo a ser alcançado, a consequência almejada, é que determina a edição da norma, diante de certa realidade fática.
Entre os diversos métodos de interpretação das normas jurídicas, destaca-se, justificadamente, o da interpretação teleológica, que se baseia, como o nome indica, em se procurar o melhor significado do mandamento, em função do objetivo a que ele está preordenado.
Atualmente, porém, como um passo avante, passou-se a designar como consequencialismo o método hermenêutico que procura dar ao enunciado da norma jurídica o significado que pode levar à produção de melhores resultados, conforme registra a doutrina:
O consequencialismo (...) é aquele estilo de julgamento do juiz que reflete sobre as consequências metajurídicas, indo além do processo e adentrando no impacto social e econômico de suas decisões. Não é que o juiz possa julgar fora da lei, mas dentro de uma margem de abertura que a própria lei confere. Ao juiz torna-se permitido graduar as determinações, considerando as peculiaridades do caso concreto e os efeitos ociais e econômicos da sentença.3
Registre-se que em sua redação atual, dada pela Lei no 13.655, de 25/04/18, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB, determina, em seu art. 20:
Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.
Como se pode notar, a interpretação que leva em consideração as consequências do mandamento não é uma novidade, mas está em perfeita consonância com a atual redação da LINDB.
II. O Texto do Art. 142 da Constituição Federal
Convém transcrever o caput do dispositivo constitucional em análise, em sua integralidade, para, depois, destacar a parte que tem gerado controvérsias.
Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.
A parte controvertida na doutrina é a que se refere ao papel das Forças Armadas para a “garantia dos poderes constitucionais”. No entendimento da doutrina predominante, sendo subordinadas ao Presidente da República, elas não estariam habilitadas a exercer funções inerentes a um poder político.
Aqui cabe um parêntesis. Dependendo do que se entenda como poder político, o Judiciário não seria um poder do Estado, pois, nos termos do parágrafo único do art. 1o da CF, “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos”. Ora, a cúpula do Poder Judiciário não recebeu, do povo, qualquer poder, posto que não é eleita. Portanto, é preciso, mediante interpretação direta do texto constitucional, verificar qual poder, prerrogativa, atribuição ou função a CF conferiu às Forças Armadas.
A lei não tem palavras inúteis e, muito menos, mandamentos inúteis. Note-se que, embora subordinadas ao Presidente da República, as Forças Armadas são “instituições nacionais permanentes”. Ou seja, não são meros órgãos administrativos, que poderiam ser extintos. Embora integrantes do Executivo, as Forças Armadas desfrutam de uma posição sobranceira, especial, qualificada. Diante dessa relevante qualificação, não é possível simplesmente ignorar que a “garantia dos poderes constitucionais” é algo que precisa ser devidamente examinado, para que se desvende seu conteúdo e sua finalidade.
III. Um esclarecimento necessário
O argumento mais utilizado pelos que sustentam a posição contrária à defendida nesta exposição é o de que a Constituição Federal não conferiu ao Presidente da República, ou diretamente às Forças Armadas, um Poder Moderador. Retiram daí a inocuidade ou a falta de operatividade à garantia dos poderes constitucionais. Isso é uma meia verdade.
Com efeito, é fora de dúvida de que a Constituição Federal vigente não conferiu Poder Moderador nem ao Presidente da República, nem às Forças Armadas. Nem teria sentido que o fizesse num sistema de governo presidencialista. Para melhor entendimento desse Poder é forçoso ir até a Constituição do Império, de 1824:
Art. 98. O Poder Moderador é a chave de toda a organização Política, e é delegado privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da Independência, equilíbrio, e harmonia dos mais Poderes Políticos.
Nos termos do art. 10 dessa Constituição, eram quatro os poderes do Estado: Legislativo, Moderador, Executivo e Judicial. O Imperador era chefe do Poder Executivo, que, entretanto, era exercido pelos Ministros, numa espécie de quase parlamentarismo, pois o Ministério dependia da maioria no Legislativo. Já o Imperador, como titular do Poder Moderador, sendo inviolável, sagrado e não sujeito a responsabilidade alguma, era o que se chamaria, hoje, de Chefe de Estado.
Vê-se, portanto, que o cenário constitucional de 1824 era completamente diferente do atual, posto pela Constituição de 1988, não fazendo qualquer sentido igualar a atribuição das Forças Armadas de garantir o exercício dos poderes constitucionais, com o antigo Poder Moderador.
IV. Intervenções militares na República
Proclamada a República e promulgada a Constituição de 1891, o Estado brasileiro passou a ter, como até hoje, apenas três Poderes, sendo o Presidente da República chefe do Poder Executivo e chefe da Nação; ou seja, chefe do governo e chefe de Estado, podendo, entretanto, nos termos do art. 53, ser responsabilizado por seus atos.
Não é o caso de se proceder, aqui, a uma análise detalhada, bastando lembrar apenas que a primeira república se caracterizou por muita instabilidade política, com uma série de revoltas e intervenções militares que culminaram com a ditadura de Getúlio Vargas, de 1930 a 1945, com duas Constituições outorgadas nesse período, em 1934 e 1937. Restaurada a democracia, com a Constituição de 1946, retorna Getúlio Vargas à presidência da república, de 1951 a 1954, quando se suicidou, para não ser deposto. Com maior ou menor intensidade as presidências da república que se sucederam também se caracterizaram por revoltas e instabilidade política, sendo marcante a renúncia do presidente Jânio Quadros, a instituição do parlamentarismo, de 1961 a 1963, e finalmente a chamada ditadura militar de 1964 a 1985.
A experiência adquirida pelas Forças Armadas durante todo esse período certamente influenciou ou mesmo determinou a redação dada ao atual Art. 142, sendo necessário um breve comentário sobre os governos militares.
Os governos militares se iniciaram com a edição do Ato Institucional de 09/04/64, que modificava a Constituição de 1946 e mantinha o Congresso Nacional, o qual deveria eleger, de imediato (em dois dias), o Presidente e o Vice-Presidente, cujos mandatos terminariam em 31/01/66, já determinando, também, a realização de eleições em 03/10/65 para os mesmos cargos, cujos eleitos deveriam tomar posse em 31/01/66. Fica patente, em sua redação, que esse Ato Institucional foi editado para ser único e temporário, mas circunstâncias supervenientes (como a suspensão das eleições marcadas para 03/10/65) fizeram com que ele fosse posteriormente designado como Ato Institucional no 1, pois outros atos institucionais se tornaram necessários diante das dificuldades enfrentadas pelos militares.
O Ato Institucional no 2, de 27/10/65, assinado pelo então Presidente da República (Castello Branco) em sua justificativa dizia que “Não se disse que a revolução foi, mas que é e continuará”. “A revolução está viva e não retrocede”. Logo adiante, aponta a razão de ser de sua edição:
Agitadores de vários matizes e elementos da situação eliminada teimam, entretanto, em se valer do fato de haver ela reduzido a curto tempo o seu período de indispensável restrição a certas garantias constitucionais, e já ameaçam e desafiam a própria ordem revolucionária.
Já ficava assim aberta a possibilidade de edição de novos Atos Institucionais.
Esse mesmo Ato Institucional no 2 instituía o bipartidarismo e tornava indiretas as eleições para Presidente e Vice-Presidente da República. Seguiu-se o Ato Institucional no 3, de 05/02/66, tornando indiretas as eleições para Governador do Estado (sendo automática a eleição do vice com ele inscrito), determinando que o Prefeito da Capital de cada Estado fosse nomeado pelo Governador, ficando mantidas as eleições normais para Prefeitos e Vereadores, restringindo-se a disputas entre os dois partidos existentes.
Nessa mesma linha de continuidade e de intervenção nas instituições no mínimo possível, o Ato Institucional no 4, de 12/12/66, ainda também assinado pelo Presidente Castello Branco, convocava o Congresso Nacional para discussão, votação e promulgação do Projeto de Constituição, apresentado pelo Presidente da República, e viria a ser a Constituição de 1967.
Esse clima de moderação mudou completamente com a edição do Ato Institucional no 5, de 13/12/68, assinado pelo Presidente Costa e Silva, cuja ementa se transcreve:
Suspende a garantia do habeas corpus para determinados crimes; dispõe sobre os poderes do Presidente da República de decretar: estado de sítio, nos casos previstos na Constituição Federal de 1967; intervenção federal, sem os limites constitucionais; suspensão de direitos políticos e restrição ao exercício de qualquer direito público ou privado; cassação de mandatos eletivos; recesso do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas e das Câmaras de Vereadores; exclui da apreciação judicial atos praticados de acordo com suas normas e Atos Complementares decorrentes; e dá outras providências.
A justificativa para essa sensível mudança de rumo está nos Considerando desse Ato Institucional, bastando, para os fins deste estudo, que se transcrevam dois deles:
CONSIDERANDO, no entanto, que atos nitidamente subversivos, oriundos dos mais distintos setores políticos e culturais, comprovam que os instrumentos jurídicos, que a Revolução vitoriosa outorgou à Nação para sua defesa, desenvolvimento e bem-estar de seu povo, estão servindo de meios para combatê-la e destruí-la; CONSIDERANDO que, assim, se torna imperiosa a adoção de medidas que impeçam sejam frustrados os ideais superiores da Revolução, preservando a ordem, a segurança, a tranqüilidade, o desenvolvimento econômico e cultural e a harmonia política e social do País comprometidos por processos subversivos e de guerra revolucionária.
O que se procurou, com os Atos anteriores era enfrentar a oposição política; este novo ato tinha, claramente, o propósito de vencer a guerra revolucionária.
Vencida a guerra revolucionária, os governos militares se prepararam para a restauração da democracia, mas todas as experiências vividas nesse anos de governo militar levaram as Forças Armadas à convicção de que uma nova ordem constitucional deveria conter instrumentos que possibilitassem o pleno e regular funcionamento das instituições democráticas, de maneira a tornar desnecessária qualquer intervenção mais acentuada, como as ocorridas no passado e, muito especialmente, nesse passado recente.
V. O Congresso Constituinte de 1988
A Constituição de 1988 cumpriu seu papel de assegurar a estabilidade institucional, muito embora não tenha sido fruto de uma verdadeira Assembleia Nacional Constituinte, mas, sim, em um arranjo político então possível. Cabe lembrar que em 1985 Tancredo Neves foi eleito Presidente da República em eleição indireta, por um colégio eleitoral, tendo como vice-presidente José Sarney (que, como candidato a vice-presidente, não teve voto algum). Com a morte de Tancredo Neves, antes de tomar posse, depois de muitos acertos políticos, José Sarney assumiu a presidência da república. Nessa condição, Sarney propôs uma emenda constitucional (EC 26/85), que conferiu poderes constituintes aos membros do Congresso Nacional, os quais, após a conclusão dos trabalhos, continuaram sendo deputados e senadores. Entre os senadores estavam os chamados senadores biônicos, que não receberam voto algum, mas foram nomeados pelo Presidente da República. O resultado mais direto e imediato desse arranjo foi que os “constituintes” legislaram para si mesmos, zelando precipuamente por seus interesses políticos eleitorais.
O texto original da Constituição Federal em vigor foi produzido nesse cenário, com pouco rigor técnico e muita negociação para atender interesses de pessoas e segmentos da sociedade. É perfeitamente possível entender que a redação do Art. 142 tenha sido proposta pela Forças Armadas, para atender a seus interesses e, certamente, pelo menos, para evitar os percalços e dissabores experimentados quando assumiram o poder.
Quem acompanhou os trabalhos da Constituinte sabe que até um determinado momento a orientação predominante era no sentido de implantação de um sistema parlamentarista de governo. Não é improvável que o papel assinalado para o Presidente da República no Art. 142 tenha levado em consideração sua condição de Chefe de Estado, ficando a chefia do governo a cargo de um primeiro-ministro.
O que se pode afirmar com segurança é que a redação do Art. 142 assegura a autonomia das Forças Armadas, destacando seu papel precípuo de defesa da Pátria, afirmando sua possibilidade de atuação para defesa da lei e da ordem e, no que diz respeito a este estudo, possibilitando a atuação interventiva para garantir o regular funcionamento dos poderes executivo, legislativo e judiciário, em caso de conflitos ou invasões de competências, sempre para assegurar o fiel cumprimento da Constituição Federal.
No momento atual, algo que parecia uma simples hipótese, se apresenta como uma dura realidade: os abusos, atentados contra a Constituição e invasões de competências perpetradas pelo Poder Judiciário, ou, mais exatamente pelo Supremo Tribunal Federal. Cinco exemplos são suficientes para demonstrar essa realidade:
1. Em 2016, o Ministro Ricardo Lewandowski, contrariando o texto expresso do parágrafo único do Art. 52 da CF, deixou de aplicar à “Presidenta” Dilma Rousseff a pena de “inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública”;
2. Em decisão monocrática, contrariando o entendimento de um juiz, três desembargadores e cinco ministros do STJ, em simples embargos de declaração, o Ministro Fachim anulou todas as condenações do ex-presidente Lula, alegando um suposto vício processual deveras inexistente;
3. A decisão do Ministro Dias Toffoli determinando a instauração de um processo administrativo, designando arbitrariamente o Ministro Alexandre de Moraes como presidente, para apurar as supostas “Fake News”, contrariando o Art. 5o, XXXIX, da CF (“não há crime sem lei anterior que o defina”) e o Art. 43 do Regimento Interno do STF, que autoriza a instauração de inquérito para a apuração de “infração penal”, desde que ocorrida “na sede ou dependência do Tribunal”;
4. Esse mesmo Ministro Alexandre de Moraes, por conta própria e sem qualquer respaldo jurídico, mas alegando suposto risco para a democracia, determinou a violação do sigilo das comunicações e o sequestro das contas bancárias de oito empresários, com base apenas em uma conversa informal entre eles, pela Internet, sem qualquer suporte fático, sem o menor indício de qualquer crime e com indisfarçável e inegável facciosismo político; e
5. O vereador da Câmara Municipal de Curitiba, Renato Freitas, que é negro, acompanhado de um grupo, invadiu uma igreja e interrompeu o culto, a pretexto de fazer uma manifestação contra o racismo e, por causa desse patente ato de violência, que atenta contra a liberdade de culto e “a proteção aos locais de culto” (art. 5o, VI, da CF), teve seu mandato cassado, mas o Ministro Roberto Barroso, sem ter competência para isso, violentando a autonomia do Município do Poder Legislativo local, anulou a cassação do mandato, invocando vício formal, mas movido por sua pessoal suposição de que a cassação do mandato teria tido motivação racista, viabilizando, com isso, a candidatura desse vereador a deputado Estadual, pelo PT.
Para que essa conduta abusiva do STF não fique apenas como opinião do autor deste artigo, é conveniente registrar a opinião do respeitável jornalista Carlos Alberto Di Franco no seguinte sentido:
(...) a destruição da ordem jurídica, que no Brasil de hoje é visível a olho nu e, infelizmente, está sendo causada pela conduta de alguns ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), que é – ou ao menos deveria ser – o principal responsável pela garantia do cumprimento e da estabilidade do ordenamento jurídico. O que se vem observando, lamentavelmente, é exatamente o contrário: várias decisões de ministros do STF (na maioria das vezes monocráticas) que, em vez de estabilizarem a ordem jurídica, a destroem, atropelando direitos fundamentais e, muitas vezes, também as instituições incumbidas da preservação e do cumprimento do Direito junto com o Poder Judiciário, como é o Ministério Público.4
Neste exato momento é oportuno lembrar a advertência de Ruy Barbosa: “A pior ditadura é a ditadura do poder judiciário. Contra ele não há a quem recorrer”. É bastante provável que essa advertência de Ruy Barbosa tenha inspirado as Forças Armadas na redação do Art. 142 da CF. Alguém poderia perguntar: por que atribuir esse papel à Forças Armadas? A resposta é simples: porque são a instituição pública de maior credibilidade entre os brasileiros, por sua inquestionável neutralidade política e por serem instituições nacionais permanentes, cujos comandantes só chegam ao topo da carreira depois de muitos anos de aprofundados estudos e de intensos trabalhos em defesa dos interesses nacionais, sempre com absoluto respeito às instituições democráticas.
VI. Considerações doutrinárias
Para iniciar este segmento e eliminar qualquer dúvida remanescente, é preciso deixar claro que o desvio de poder ocorre (e deve ser combatido) mesmo na prática de atos legislativos e jurisdicionais, conforme a mais autorizada doutrina:
Acolhida, amplamente, na generalidade dos sistemas administrativos, a noção de desvio de poder como tipo de ilicitude administrativa alcançou entre nós consagração legislativa e jurisprudencial. Sustentamos, em estudo especial sobre o tema, que a teoria do desvio de poder como vício de legalidade vai além do controle dos atos e contratos administrativos.Tanto o desvio de poder legislativo, como o desvio de poder jurisdicional, se podem caracterizar na medida em que o legislador ou o juiz destoem, de forma manifesta, do âmbito de seus poderes que, embora de reconhecida amplitude, não são ilimitados e atendem a fins que lhe são próprios e definidos.5
Diante dessa advertência doutrinária, fica perfeitamente assentado que atos jurisdicionais, mesmo praticados no âmbito da cúpula do Judiciário, não são insuscetíveis de controle e não geram qualquer inimputabilidade. O que não se pode admitir são subterfúgios para criar imunidade ao controle ou dificuldades interpretativas do texto constitucional com a mesma finalidade.
A interpretação do art. 142 da CF sustentada neste artigo, tem respaldo na mais respeitável doutrina tradicional, conforme as duas passagens que se transcrevem, respectivamente de Celso Ribeiro Bastos e José Afonso da Silva, sobre as funções das Forças Armadas:
Compostas pela Marinha, Exército e Aeronáutica, têm como autoridade suprema o Presidente da República e como objetivos a defesa da Pátria, a garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer um dos poderes, a defesa da lei e da ordem.
Vê-se assim que a missão das Forças Armadas não é apenas a de repelir a ação de potências estrangeiras, mas inclui também a de reprimir movimentos que ponham em risco a estabilidade dos poderes constituídos.6
A Constituição vigente abre a elas um capítulo do Título V sobre a defesa do Estado e das instituições democráticas com a destinação acima referida, de tal sorte que sua missão essencial é a da defesa da Pátria e a garantia dos poderes constitucionais, o que vale dizer defesa, por um lado, contra agressões estrangeiras em caso de guerra externa e, por outro lado, defesa das instituições democráticas, pois a isso corresponde a garantia dos poderes constitucionais, que, nos termos da Constituição, emanam do povo (art. 1o, parágrafo único).7
Ambos os consagrados autores registraram o papel das Forças Armadas na defesa ou na garantia dos poderes constitucionais, ou seja: das prerrogativas e competências de cada um dos poderes do Estado. A doutrina mais moderna vai um pouco mais longe, reforçando o entendimento no mesmo sentido. Como sustenta Samantha Ribeiro Meyer-Pflug Marques:
A Constituição Federal de 1988 dedicou o Capítulo II do Título V, que trata da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas, para dispor sobre as Forças Armadas. A inserção do capítulo das Forças Armadas nesse título tem por finalidade estabelecer que o papel dela deve ser interpretado à luz da defesa do Estado e das instituições democráticas.
Portanto, por consequência lógica, o conteúdo do art. 142 está indubitavelmente atrelado à defesa e manutenção das instituições democráticas e não ao fim delas. Em outras palavras, para se compreender o mister das Forças Armadas, é imprescindível levar-se a cabo uma interpretação sistemática da Constituição para apreender toda a dimensão da sua função.
O dispositivo é claro ao estabelecer que as Forças Armadas são uma instituição nacional, permanente e regular, isso significa que ela é uma instituição da Pátria e atrelada à existência do próprio Estado, uma vez que não pode ser dissolvida. Possuem relevância para o País, tanto em dimensão política quanto histórica e jurídica. Ao mencionar que sua atuação será regular implica dizer que deve ser contínua, restando vedada qualquer forma de interrupção.8
Outro jurista moderno, Amauri Saad, que teve a oportunidade de acompanhar os trabalhos do Congresso Constituinte, traz um testemunho da sua experiência e conclui no sentido de que o propósito do dispositivo em exame é exatamente evitar os problemas ocorridos no passado, ao longo da primeira república e, muito especialmente no período do governo militar, de 1964 a 1985:
Os constituintes tinham consciência do papel histórico das forças armadas na garanta da estabilidade das instituições, sobretudo, após o advento da república, e com base em tal consciência o que se procurava era garantir que a sua participação no regime a ser instituído pela nova constituição fosse sempre subordinado aos poderes civis. Constitucionalizar a participação das forças armadas foi a maneira encontrada para evitar que rupturas constitucionais ocorressem por iniciativa dos militares: somente assim se poderia evitar um novo regime militar como o que vigorou entre 1964 e 1985.
É muito mais importante, para a manutenção da atual ordem constitucional, analisar sem preconceitos o art. 142 e extrair dele o sentido que sirva para garantir o regime democrático, inclusive de forma a evitar interferências inconstitucionais de um poder sobre o outro – sobretudo quando tais eventos obstruam a realização da vontade popular. O povo é a fonte do poder que a constituição disciplina e não se pode admitir que um dos poderes possa atuar fora dos limites que lhe são traçados. O judiciário, assim como os demais poderes, não possui a prerrogativa de violar a constituição.9
Um dos mais experientes, respeitados e respeitáveis juristas da atualidade, o Prof. Ives Gandra da Silva Martins, em depoimento à imprensa,10 sustenta, com muita propriedade e com a experiência de ter acompanhado os trabalhos da Constituinte, ao lado do relator, Bernardo Cabral, que o art. 142 pode ser aplicado se o STF desobedecer, confrontar ou conflitar com os mandamentos constitucionais, destacando que as Forças Armadas nunca podem descumprir a CF; sua atuação não seria para romper a ordem, mas, sim, para recompor a ordem constitucional. Para ele, eis a finalidade político-institucional do art. 142:
(...) prever uma intervenção pontual das Forças Armadas, uma espécie desidratada de poder moderador, para garantir os poderes da República e também a lei e a ordem, sempre que convocadas por esses mesmos poderes e nos estritos limites do chamamento.
Note-se que o consagrado mestre não atribuiu às Forças Armadas um Poder Moderador, mas, sim, a possibilidade de exercício de “uma espécie desidratada de poder moderador”, como um instrumento para resolver o problema da suposta intangibilidade das decisões inconstitucionais do STF.
VII. Conclusões
Conforme foi afirmado nas primeiras linhas deste artigo, a busca do melhor entendimento possível para o disposto no art. 142 da CF foi feita mediante intepretação teleológica, com a convicção de que toda norma jurídica é instrumental, no sentido de que busca ou indica uma determinada finalidade, compatível com o contexto do sistema jurídico. O método adotado está em perfeita sintonia com a redação atual do art. 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB.
O problema examinado não está no art. 142 em sua inteireza, mas, sim, num segmento, que se refere à função, das Forças Armadas, de “garantia dos poderes constitucionais”. Há uma grande controvérsia na doutrina quanto ao exato significado dessa prescrição, sendo certo, entretanto, que é preciso desvendar o seu significado e identificar o que e como as Forças Armadas podem exercer tal competência, sendo certo, entretanto, que não é possível entender que a prescrição é inócua; desprovida de qualquer significado, pois a Constituição não tem palavras ou mandamentos inúteis.
O grande problema que se apresenta atualmente para o intérprete e aplicador das normas constitucionais é a questão de abusos ou desvios de poder cometidos no exercício da atividade jurisdicional pela cúpula do Poder Judiciário, dada a extensão de seus poderes. Conforme o ensinamento de Lord Acton, “o poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente”. A possibilidade da prática de abuso ou desvio de poder é inerente ao ser humano; a investidura em um cargo elevado no Poder Judiciário não gera imunidade absoluta quanto a essa possibilidade.
Não há dúvida de que eventuais abusos cometidos pelo Legislativo ou pelo Executivo podem ser corrigidos pelo Judiciário: em última análise, pelo STF, sem necessidade de se recorrer às Forças Armadas. Mas o grande problema surge quando se trata de ilicitudes, abusos e arbitrariedades cometidas no âmbito do Judiciário, especialmente em sua cúpula. Não basta afirmar a obviedade de que a Constituição não conferiu, nem ao Presidente da República, nem às Forças Armadas, o Poder Moderador, tal como previsto na Constituição Imperial de 1824. É essencial que se procure uma solução para corrigir decisões do STF que violam, ou mesmo violentam, a Constituição. A suposta, mas infelizmente real, intangibilidade das decisões inconstitucionais proferidas pelos membros do STF é apenas de fato; não jurídica.
Neste artigo se sustenta que a menção expressa à “garantia dos poderes constitucionais” pode significar a possibilidade de se recorrer às Forças Armadas para a defesa da integridade de um dos poderes contra a invasão perpetrada por qualquer dos outros poderes. Quando o STF, desbordando dos limites constitucionais profere decisões gritantemente inconstitucionais, está invadindo a esfera dos outros poderes. Na prática, o que se tem observado nos últimos tempos é o Judiciário legislando (inovando na ordem jurídica) ou interferindo na atividade tipicamente administrativa, seja proibindo, seja determinado ações de competência do Executivo. Além disso, como se observou na crise aguda da pandemia gerada pela Covid-19, o Judiciário interferiu também na distribuição de competências entre os níveis de governo.
A doutrina tradicional, num eloquente silêncio, se conforma em que não há solução para o problema de decisões inconstitucionais do STF, pois haveria uma lacuna, insuscetível de ser preenchida, no sistema jurídico brasileiro. Sem dúvida é uma posição bastante cômoda, mas que não pode ser aceita pela moderna doutrina. Cabe a esta buscar a solução, mediante um exame mais aprofundado do texto constitucional.
A experiência adquirida com as agitações e tumultos da República Velha, com a instabilidade e a insegurança experimentada quando vigente a Constituição de 1946, até mesmo com a tentativa frustrada de implantaçãodo parlamentarismo, e, muito especialmente, com os percalços enfrentados pelas Forças Armadas durante o regime militar, de 1964 a 1985, evidenciaram a necessidade de se buscar um meio ou instrumento de assegurar a estabilidade e a plenitude do regime democrático e, mais exatamente, a independência e harmonia dos poderes.
A oportunidade para a busca e o encontro de uma solução surgiu com a instalação do Congresso Constituinte, que aprovou, em 1988, o texto constitucional ora vigente. A história mostrou que as Forças Armadas sempre desempenharam papel fundamental, tanto para a ruptura quanto para a restauração do regime democrático. O que se fez, com a aprovação da redação dada ao Art. 142, foi, reconhecendo essa realidade histórica, conferir às Forças Armadas um instrumento hábil para evitar ou corrigir atitudes que possam colocar em risco a harmonia e independência dos poderes, da maneira menos traumática possível, sem ruptura da ordem constitucional, mas, sim, com plena observância dos mandamentos constitucionais.
Por último, é preciso destacar que a solução encontrada não coloca o Poder Executivo, exercido pelo Presidente da República, Chefe das Forças Armadas, como um superpoder, acima dos demais. Cabe lembrar que, no sistema constitucional republicano presidencialista brasileiro, o Presidente da República é Chefe do Poder Executivo e, também, Chefe de Estado, e é nessa condição (de Chefe de Estado) que ele pode invocar a aplicação excepcional do disposto no Art. 142, para a garantia dos poderes constitucionais.
Enfim, é pacífico o entendimento de que as normas jurídicas comportam uma pluralidade de interpretações. Diferentes juristas, partindo de diferentes premissas e valorando de maneira diferenciada determinados princípios jurídicos, podem dar à mesma norma interpretações totalmente divergentes. A interpretação consequencialista sustentada neste artigo é apenas uma das interpretações possíveis e, como se sabe, se alinha a uma corrente minoritária. A única ambição do autor é a de ter dado uma contribuição no processo de busca de uma interpretação que assegure a intangibilidade do estado democrático de direito.
1. Adilson Abreu Dallari é Doutor e Professor Titular de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Membro do conselho científico da Sociedade Brasileira de Direito Público – SBDP, do Conselho Consultivo da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico – ABRADADE; do Conselho Superior de Orientação do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário – IBEDAFT e do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP), integrou a Comissão que elaborou o anteprojeto da lei federal do processo administrativo (Lei 9.784/1999). Pareceirista e advogado com inúmeras obras de referência publicadas, é sócio proprietário de Dallari Associados Advocacia.
2. Miguel Reale, Lições Preliminares de Direito, Ed. da Universidade de São Paulo, 1973, p.87.
3. Maurício José Machado Pirozzi, Consequencialismo judicial – Uma realidade ante o impacto socioeconômico das sentenças. (2008, Belo Horizonte). Arquivo em PDF. Disponível em http://www.ejef.tjmg.jus.br/home/files/publicacoes/artigos/conse-quencialismo_judicial.pdf> Acesso em 01 nov.2011).
4. O Estado de São Paulo, 19/09/22, pg. A5
5. Caio Tácito, Temas de Direito Público – Estudos e Pareceres. 1o Volume, Editora Renovar,
Rio de Janeiro, 1997, p. 340.
6. Celso Ribeiro Bastos. Curso de Direito Constitucional. 22a. edição, Malheiros Editores, São
Paulo, 2010, p. 602.
7. José Afonso da Silva. Curso de Direito Constitucional Positivo. 36a. edição, Malheiros
Editores, São Paulo, 2013, p. 778.
8. Samantha Ribeiro Meyer-Pflug Marques. O Papel das Forças Armadas e o art. 142 da Constituição de 1988. In: Antonio Carlos Rodrigues do Amaral e Mariana Passos Beraldo (Coord.). Estudos Jurídicos: Constitucional e Empresarial em homenagem ao Professor Fernando Passos. UNIARA, São Carlos, 2020. pp. 482-483.
9. Amauri Saad. O Art. 142 da Constituição de 1988 – Ensaio sobre a sua interpretação e aplicação. Editora E.D.A., Londrina, 2021. pp. 29 e 30.
10. https://www.gazetadopovo.com.br/vozes/cronicas-de-um-estado-laico/o-stf-o-poder-moderador-e-as-forcas-armadas/