Mário Frota

Fundador e primeiro presidente da AIDC – Associação Portuguesa de Direito do Consumo

Fundador e primeiro presidente da apDC – associação portuguesa de DIREITO DO CONSUMO - Coimbra

Menos leis, melhor lei!”

Nada pior que a dispersão. Nada melhor que a condensação, que a fusão da multitude de diplomas esparsos que por aí campeiam, em consequente esforço tendente à simplificação, à eliminação das excrescências que poluem o ordenamento.

Um Código é, segundo as enciclopédias: colecção, compilação de leis, regulamentos, preceitos, convenções, fórmulas, regras…

O vocábulo código vem do latim codexou caudex.

Os comerciantes designavam codicesacceptietrecepti os seus livros de escrituração e os simples títulos ou documentos públicos eram também codices: daí advém o nome por que se intitulavam os maços de documentos antigos recolhidos nos arquivos e bibliotecas.

Porém, só no século III é que o termo codex foi aplicado a colecções de leis.

Daí que se registem os Códigos Gregoriano, Teodoniano e Justinianeu”.

A palavra código reveste hoje, porém, um sentido eminentemente técnico.

Não lhe quadra tão só o conceito que visa a exprimir simples colecções, compilações ou incorporações de leis: código é um corpo jurídico ordenado sintética e sistematicamente de harmonia com um plano, metodológico e científico, susceptível de abarcar as regras que a determinado ramo de direito ou acervo normativo, segundo os melhores juízos, compitam.

Um Código de Direitos do Consumidor afigurar-se-nos-ia, ao tempo, adequado: nele se compendiariam as regras, de harmonia com um quadro próprio, vertidas em inúmeros domínios susceptíveis de recondução à temática do consumo e à sua interconexão com os consumidores (para abarcar os que Jean Calais-Auloy, emérito Mestre, considera constituírem o núcleo essencial da disciplina).

O direito do consumo é considerado em diferentes latitudes como um ramo de direito, dotado de autonomia, com particulares complexidades, é facto, dada a sua transversalidade.

O direito do consumo tem objecto próprio, método próprio, dispõe de princípios contradistintos dos mais ramos de direito privado. Tal como o direito comercial e o direito do trabalho. E, no entanto, continua a negar-se-lhe, entre nós, autonomia e a pretender-se que o Código é ou utopia ou rematado disparate de uma perspectiva lógico-construtiva.

O Código seria o modelo de organização mais simples em que se enunciariam e desenvolveriam princípios e nele se plasmariam congruentes regras.

Milhares de diplomas esparsos, incoerentes na sua concepção, no seu desenho original, incongruentes nas soluções a que tendem, sobreponíveis, plenos de brechas, de lapsos, de omissões, de lacunas, dominam este peculiar segmento do universo jurídico.

Há quem entenda, num seguidismo germânico de proscrever, que tais matérias (residualmente?) deveriam figurar no Código Civil porque a tanto vocacionadas.

Há quem entenda que a solução da codificação é catastrófica porque de direito em constante mutação se trata. Que as normas não são definitivas. Que se não pode cristalizar em acervo de regras estanque algo que é volúvel e voga ao sabor da evolução, do progresso da ciência, em constante fluir, em mutação contínua, das apetências das políticas legislativas…

Afinar por um tal diapasão significa ignorar a capacidade de previsão do direito, as técnicas de modelação ou de plasticização de que o direito se socorre para captar condutas e lhes definir o sentido. A generalidade e abstracção da norma jurídica. De outro modo, ignora-se não só a realidade e a mutabilidade dos factos como as técnicas de que o legislador se socorre para acudir às situações do quotidiano.

Um Código de Direitos do Consumidorseria um primeiro passo para a dignificação do direito do consumo, como o imaginávamos nos primórdios.

Com a ponderação que decorre de anos de profunda reflexão, inclinamo-nos, de momento, não para um Código de Direitos do Consumidor, antes para um Código de Contratos de Consumo. Tal o acervo resultante de inúmeros diplomas avulsos com a chancela da obra regulamentar e legislativa das instâncias legiferantes da União Europeia.

O facto é que a dispersão de diplomas no particular dos contratos típicos de consumo (e tantos são, e disso nem sempre o vulgo se apercebe), ampliados superlativamente, conduz hoje em dia a que obtemperemos.

Ainda agora, mais um diploma veio a lume – o de certos aspectos da compra e venda (e da empreitada e de outras prestações de serviços, como da locação), para além dos conteúdos e serviços digitais e das plataformas digitais, a engrossar a fileira da legislação avulsa que por aí grassa: quando se poderia entrever o ensejo como o da disciplina, em extensão e profundidade, do contrato de compra e venda de consumo. Proposta que carreámos, mas a que se não deu qualquer importância nas esferas do poder.

A ruinosa experiência havida, entre nós, com um anteprojecto bizarro, que marinou durante mais de uma década à mercê de uma comissão de pretensos “experts” que soçobrou perante um dilúvio de críticas, remeteu fragorosamente ao silêncio Parlamento, Governo (com o providencial ‘veto de gaveta’ de Fernando Serrasqueiro, ao tempo secretário de Estado da Defesa do Consumidor) e jurisconsultos de vulto, como se a solução vigente (a do cúmulo de diplomas legais que recrudesce, que exponencia a “obesidade” do sistema a cada dia) fosse a mais curial…

Na Europa, o exemplo da França, o de um código-compilação, que não de um código de raiz, mercê de dificuldades formais que tendiam a tornar ciclópica a tarefa, é, a todas as luzes, de uma grandeza plena de significações.

Um código-compilação `”à droitconstant”, susceptível, pois, de actualização permanente, um código aberto, apto a recolher todas as inovações, como ora se observa.

Que, entre nós, não tarde um Código-compilação do estilo, mas em que se expurguem as excrescências e se sistematize uma parte geral que discipline a mancheia de contratos típicos e, depois, se ocupe autonomamente das especificidades de cada um quanto à constituição, modificações e extinção, é algo de que carecemos instantemente em Portugal em obediência à máxima: “menos leis, melhor lei”!

Um código do jaez destes cumpriria, entre nós, um papel de largo alcance em termos de inteligibilidade das leis, da sua acessibilidade, da sua efectiva vigência, da sua observância em todos os estratos do cosmos jurídico.

Também neste particular Portugal carece de ordem e disciplina para que os direitos se sustentem e efectivem e o direito triunfe!

Direito que se não conhece é direito que se não aplica!

Inclinamo-nos ora, por conseguinte, mais por um Código-compilação de Contratos de Consumo do que por um código de raiz de Direito do Consumo ou de Direitos do Consumidor. Mas com uma estrutura singular.

A menos que os detentores do poder entendam que preferível será enveredar pela tipologia de um código de raiz, conquanto se não adultere nem subverta a essência dos instrumentos normativos da União Europeia que lhes servem de suporte, mormente quando se trata de directivas-quadro, a saber, de normas maximalistas de protecção, insusceptíveis de flutuações com a outorga de níveis de tutela tanto inferiores como superiores.

É uma tarefa exaltante que o CEDC - Centro de Estudos de Direito do Consumo de Coimbra, adstrito à apDC, estará em condições de empreender se uma tal missão lhe for cometida.

Dos contratos de fornecimento de serviços de interesse económico geral aos de serviços fúnebres sociais há um largo espectro a regular de forma consequente, que o quadro actual (mal) oferece de modo avulso, incongruente, desconexo… e a que há que pôr cobro instantemente!

De modo breve e, em síntese, poderemos estabelecer a disciplina peculiar de um ror de contratos, para além da sua disciplina geral.

E o esquema de raiz seria muito simples:

Livro I – Dos Contratos de Consumo em Geral

Título I – Disposições Comuns

Título II – Formação do Contrato

Título III – Conteúdo do Contrato

Título IV – Efeitos do Contratos

Título V – Execução do Contrato

Título VI – Modificações do Contrato

Título VII – Extinção do Contrato

Livro II – Dos Contratos de Consumo em Especial

EIS O ROL DOS CONTRATOS TÍPICOS DE CONSUMO

Contratos de Compra e Venda em Geral

Contratos “ad gustum” (a contento)

Contratos sujeitos a prova

Contratos de compra e venda a prestações

Contratos de Locação

Contratos de Empreitada

Contratos de Fornecimento de Conteúdos e Serviços Digitais

Contratos de Consumo e Quadro de Garantias Conexas

Contratos de Fornecimento de Serviços de Interesse Económico Geral

Água

Energia eléctrica

Gás natural

Gás de petróleo liquefeito canalizado

Comunicações electrónicas

Saneamento

Resíduos sólidos

Contratos de Transportes Públicos

o Rodoviário

o Ferroviário

o Aéreo

o Marítimo e Fluvial

Contratos Fora de Estabelecimento

Contratos por Comunicação à Distância

Contratos Electrónicos em Particular

Contratos à Distância de Serviços Financeiros

Contratos de Crédito ao Consumidor

Contratos de Emissão de Cartões de Crédito

Contratos de Crédito Hipotecário

Contratos de Seguro

Contratos de Viagens Turísticas

o Contratos de Viagens sob medida

o Contratos de Viagens organizadas

Contratos de Promoção Imobiliária

Contratos de Mediação Imobiliária

Contratos de Habitação Periódica e Turística (time-share)

Contratos de Cartões Turísticos ou de Férias

Contratos de Serviços Funerários

o Serviços Funerários Regulares

o Serviços Funerários Sociais.

Afigura-se-nos, porém, que em termos de ambição se pode ir mais além e propor a ilustres jusprivatistas europeus que se congracem em redor de uma Comissão com um objectivo definido: oferecer à Comissão Europeia e ao Parlamento Europeu um texto base para uma discussão em torno de um Código Europeu dos Contratos de Consumo. À semelhança do que ocorreu com o Código Europeu dos Contratos que sob a égide da Accademia dei GiusprivatistiEuropei, de Pavia, veio a lume, sob a batuta de Giuseppe Gandolfi, há uma vintena de anos.

E afigura-se-nos que a tarefa de coordenação dos trabalhos deve ser cometida ao catedrático da Facultad de Derecho de la Universidad de Granada, GuillermoOrozco Pardo, em homenagem ao trabalho notável ali desenvolvido neste particular.

Envidaremos doravante esforços nesse sentido.

É algo de empolgante a que nos pretendemos consagrar devotadamente!

Em Portugal, porém, poder-se-ia encetar o passo primeiro, longe dos corredores que “eternizam” o labor e servem de freio aos mais nobres propósitos!

Mário Frota

antigo presidente da apDC - DIREITO DO CONSUMO - Portugal

(in “Vida Judiciária, última edição: Novembro de 2021)