Por Everardo Maciel*.

Sistemas tributários não são meras técnicas de extração de renda da sociedade para financiar o bem comum, mas escolhas políticas, balizadas por princípios constitucionais, que encerram conflitos de razão e de interesse. É inevitável, portanto, que sejam imperfeitos.

Mais que isso, ao longo do tempo, essas imperfeições se amplificam, em virtude de mudanças no ambiente econômico, obsolescência das formas de extração, controvérsias conceituais, adoção de regimes especiais, etc.

É nesse contexto que se inscrevem as reformas tributárias. Não como um evento, mas como um processo permanente.

Uma proposta de reforma tributária deve estar centrada, com clareza, nos problemas que pretende enfrentar, dispensando chavões e dogmatismos.

No debate sobre as soluções possíveis, a sociedade tem o direito de conhecer os respectivos custos e benefícios para que haja uma escolha consciente. Parodiando Ortega y Gasset, clareza é a cortesia do legislador para com o seu povo.

Nas autodesignadas propostas de reforma tributária, em tramitação no Congresso Nacional, os problemas que se pretende resolver não estão adequadamente formulados. Tampouco, são apresentadas simulações que permitam aquilatar as repercussões setoriais e os impactos sobre preços.

O Projeto de Lei nº 3.887, especificamente, pretende criar uma Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), fundindo Cofins e PIS. Alega-se, preliminarmente, a simplicidade como pretexto para fusão.

Ocorre que, ressalvados casos muito especiais, aqueles tributos têm uma mesma legislação, além de documento de arrecadação único.

A diferenciação se dá na destinação das receitas, por força de mandamentos constitucionais: a Cofins financia o orçamento da seguridade social e o PIS, o seguro-desemprego, o abono salarial e o BNDES.

Na perspectiva estritamente tributária, fica evidente que se trata da fusão de dois tributos idênticos, por isso mesmo usualmente referidos como PIS/Cofins. Portanto, em nada aproveita ao contribuinte e inaugura uma desnecessária controvérsia sobre a destinação dos recursos, inclusive em termos de possível inconstitucionalidade.

Todos os contribuintes optantes do regime do lucro presumido são tributados no regime cumulativo do PIS/Cofins. Essa opção se dá justamente pela simplicidade do regime, porque o tributo devido é tão somente o produto de uma alíquota sobre o faturamento. Não há registro de litígio nesse modelo, nem qualquer queixa de contribuinte quanto à complexidade.

O art. 11 do PL que propõe a CBS admite a coexistência de receitas que permitem a apropriação de créditos com as que não permitem. Para solucionar as respectivas vinculações, prevê um método que consiste na “apropriação direta por meio de sistema de contabilidade de custos integrada e coordenada com a escrituração”. Isso contrasta com o vigente modelo, que consiste em uma singela operação de multiplicar. Seria isso uma simplificação?

Curiosamente, o regime cumulativo do PIS/Cofins, que se pretende extinguir, tem a mesma natureza do modelo que inúmeros países da Europa pretendem adotar para tributar serviços digitais, com o objetivo de prevenir a erosão das bases tributárias pelo deslocamento de lucros para paraísos fiscais. Quem sabe, esse fato venha a mitigar nosso “complexo de vira-latas”.

Afastada a pretensão de simplificar, ao menos em relação ao regime cumulativo, é preciso explorar as repercussões da proposta sobre margens e preços, ainda que não tenham sido disponibilizadas simulações.

É evidente que atividades que têm poucos créditos a aproveitar seriam as mais impactadas, como por exemplo os serviços prestados a pessoas por escolas, clínicas médicas, escritórios de profissionais liberais, etc. Em decorrência, haveria inevitável aumento nos preços desses serviços.

Admitindo-se, como anunciado, que a carga tributária total permaneça constante, pode-se presumir que o aumento da tributação sobre serviços implique redução da tributação de bens. Por exemplo, haveria elevação da carga tributária da mensalidade escolar e consulta médica e redução na do automóvel de luxo. Há razoabilidade nisso?

É certo que haverá, também, aumento de carga no processamento de produtos de origem animal e vegetal, nos serviços de telecomunicações, no setor de radiodifusão, etc.

Argumentou-se que as instituições financeiras teriam uma alíquota inferior à básica, porque têm poucos créditos a aproveitar. Faz sentido, mas por que somente elas?

Alegou-se, também, que a maioria das empresas de serviços se encontram no Simples. Pode ser verdadeiro. Esse entendimento, contudo, é também confissão de que as que não se encontram no Simples serão penalizadas. Imaginemos a hipotética frase: o povo não deve se preocupar com a Covid-19, pois afinal apenas 5% dos infectados morrem. Esse raciocínio parece encerrar alguma perversidade.

Claro que existem problemas no PIS/Cofins, como a equivocada interpretação dos direitos creditórios dos insumos no regime não cumulativo, a controvérsia sobre o conceito de receita e a utilização abusiva dos regimes especiais. Por que não se debruçar sobre esses problemas e elaborar soluções? O que não se deve, como no dito popular, é matar a vaca para acabar o carrapato.

Há muitos outros problemas tributários como: a excessiva litigiosidade e insegurança jurídica, decorrentes de patologias do processo tributário; o burocratismo que estressa os custos de conformidade; as irresolvidas indeterminações conceituais, como o planejamento tributário abusivo e o ágio; e problemas específicos de alguns tributos.

Nada disso, entretanto, supera a inoportunidade do debate sobre “reforma tributária”, quando estamos vivendo, como afirmou Kristalina Georgieva, diretora-geral do FMI, “uma crise como nenhuma outra, porque mais complexa, mais incerta e verdadeiramente global”.

São reais, no Brasil, as ameaças de elevado aumento do desemprego e da pobreza, crise fiscal desproporcional sobretudo nos Estados e Municípios, problemas de toda ordem para empresas, especialmente as micro e pequenas.

Relatório da ONU, divulgado pelo secretário-geral António Guterres, prevê para o Brasil, em 2020, a elevação da taxa de pobreza (de 20% para 26,4%) e a de extrema pobreza (de 5% para 10%).

O mundo inteiro está focalizado na crise, em suas diferentes dimensões. As soluções não serão fáceis e exigirão muita criatividade, flexibilidade, cooperação e sacrifício.

A despeito desse dramático quadro, optamos por práticas diversionistas. É o negacionismo em estado puro.

 

* Consultor tributário, vice-presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF), foi Secretário da Receita Federal (1995-2002).