Mario Frota*
I
GENERALIDADES
O regime do fornecimento de conteúdos e serviços digitais está em vias de ser transposto para o ordenamento jurídico pátrio, de harmonia com o que consta do projecto de Decreto-Lei n.º 1049/XXII/21, do 1.º de Julho transacto.
E corresponde a um normativo emanado do Parlamento Europeu - a Directiva (UE) n.º 2019/770, de 20 de Maio.
Os contratos de fornecimento de conteúdos e serviços digitais passarão, por conseguinte, a estar disciplinados de modo estrito, entre nós, como nos demais Estado-membros da União Europeia. Com o início de vigência protraído para o 1.º de Janeiro de 2022.
O regime jurídico a que a enunciada directiva confere relevância visa oferecer adequada resposta à célere evolução tecnológica observada neste domínio de molde garantir o enquadramento devido às questões suscitadas no desenvolvimento do conceito e suas repercussões no ordenamento.
Ora, por conteúdos e serviços digitais se entende, designadamente, os programas informáticos, as aplicações, os ficheiros de vídeo, de áudio e de música, os jogos digitais, os livros electrónicos e outras publicações electrónicas, bem como serviços digitais que permitam a criação, o tratamento ou o armazenamento de dados em formato digital ou o respectivo acesso, nomeadamente o software enquanto serviço, de que são exemplo a partilha de ficheiros de vídeo e áudio e outro tipo de alojamento de ficheiros, o processamento de texto ou jogos disponibilizados no ambiente de computação em nuvem, bem como as redes sociais.
Como o previne o preâmbulo da Directiva UE 2019/770, de 20 de Maio de 2019, do Parlamento Europeu e do Conselho, “uma vez que há várias maneiras de fornecer um conteúdo ou serviço digital, como por exemplo através de um suporte material, de descarregamentos feitos pelos consumidores para os seus dispositivos, de difusões em linha, de concessão de acesso a unidades de armazenamento de conteúdos digitais ou de acesso ao uso de redes sociais”, o presente instrumento deverá aplicar-se independentemente do meio utilizado para a sua transmissão ou para permitir o acesso aos conteúdos ou serviços digitais.
Exclui-se, porém, a sua aplicação aos serviços de acesso à Internet.
“A fim de corresponder às expectativas dos consumidores e de proporcionar aos fornecedores de conteúdos digitais um regime jurídico simples e bem definido, a dos Conteúdos e Serviços Digitais deverá ser igualmente aplicada aos conteúdos digitais fornecidos num suporte material, tais como os DVD, os CD, as chaves USB e os cartões de memória, bem como ao próprio suporte material, desde que… funcione exclusivamente como meio de disponibilização de conteúdos digitais.”
No entanto, em lugar da aplicação das suas disposições à obrigação que pende sobre o fornecedor e aos meios de ressarcimento ao consumidor em caso de não fornecimento, entende-se de aplicar o disposto na Directiva Direitos do Consumidor no que tange às obrigações que se prendem com a entrega de bens e os meios de ressarcimento em caso de incumprimento.
Além disso, as disposições da designada directiva acerca, entre outros, do direito de retractação e da natureza do contrato ao abrigo do qual são fornecidos os bens, deverão igualmente continuar a aplicar-se a tais suportes materiais e aos conteúdos digitais neles fornecidos.
O projecto, no capítulo de que se trata, desdobra-se em 2 secções, a saber:
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I - Do fornecimento e da conformidade dos conteúdos e serviços digitais
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II - Responsabilidade do fornecedor, ónus da prova e direitos do consumidor
A primeira das secções versa sucessivamente sobre:
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Obrigação de fornecimento de conteúdos e serviços digitais
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Conformidade dos conteúdos e serviços digitais
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Requisitos subjectivos de conformidade
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Requisitos objectivos de conformidade
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Integração incorrecta dos conteúdos ou serviços digitais
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Direitos de terceiros restritivos da utilização de conteúdos ou serviços digitais
A segunda secção consagra a disciplina atinente a:
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Responsabilidade do fornecedor pelo não fornecimento e pela não conformidade
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Ónus da prova nos conteúdos e serviços digitais
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Direitos do consumidor em caso de não fornecimento
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Direitos do consumidor em caso de não conformidade
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Obrigações do fornecedor em caso de resolução do contrato
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Obrigações do consumidor em caso de resolução do contrato
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Prazos e modalidades de reembolso pelo fornecedor
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Alterações aos conteúdos ou serviços digitais
II
BREVE REFERÊNCIA AOS REQUISITOS DE CONFORMIDADE
Os requisitos de conformidade desdobram-se em subjectivos e objectivos:
Eis os subjectivos:
São conformes com o contrato, os conteúdos ou serviços digitais que:
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Correspondam à descrição, à quantidade e à qualidade e detenham a funcionalidade, a compatibilidade, a interoperabilidade e as demais características previstas no contrato;
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Sejam adequados à finalidade específica, previamente acordada, a que o consumidor os destine;
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Sejam fornecidos com todos os acessórios e instruções, inclusivamente de instalação, e suporte ao consumidor, tal como exigidos pelo contrato; e
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Sejam actualizados, de acordo com o estipulado no contrato.
Os requisitos objectivos perfilam-se como segue:
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Sejam adequados ao uso a que os bens de análoga natureza se destinam;
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Correspondam à descrição e possuam as qualidades da amostra ou modelo que o fornecedor haja apresentado em momento prévio ao da celebração do contrato,sempre que aplicável;
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Sejam entregues com os acessórios, incluindo a embalagem, instruções deinstalação ou outras instruções,expectáveis na perspectiva do consumidor. sempre que aplicável, e;
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Correspondam à quantidade e possuam as qualidades e outras características, inclusiveno que tange à durabilidade, funcionalidade, compatibilidade e segurança,habituais e expectáveis nos bens do mesmo tipo. considerando, designadamente, asua natureza e qualquer declaração pública feita pelo fornecedor, ou em seu nome, ou por outras pessoas em fases anteriores da cadeia negocial, em que se inclui oprodutor, nomeadamente na publicidade ou na etiquetagem.
De significar que o fornecedor não fica vinculado às declarações públicas a que se refere o último ponto em realce no passo precedente, se mostrar que:
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Não tinha, nem deveria razoavelmente ter, conhecimento da declaração pública emcausa;
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No momento da celebração do contrato, a declaração pública em causa tinha sidocorrigida de forma igual ou comparável à forma por que tinha sido feita; ou
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A decisão de contratar não poderia ter sido influenciada por uma tal declaração.
Sempre que o contrato estipule um único ato de fornecimento ou uma série de actos individuais de fornecimento, o fornecedor deve assegurar que as actualizações, incluindo as de segurança, necessárias para manter os conteúdos ou serviços digitais em conformidade, são comunicadas e facultadas ao consumidor, durante o período razoavelmente expectável, tendo em conta o tipo e finalidade dos conteúdos ou serviços digitais, as circunstâncias e natureza do contrato.
No caso de o contrato prever o fornecimento contínuo de conteúdos ou serviços digitais, o dever de comunicação e de fornecimento das actualizações vigora pelo período durante o qual os conteúdos ou serviços digitais devam ser fornecidos, nos termos do contrato.
Se o consumidor não proceder à instalação, em prazo razoável, das actualizações que lhe forem facultadas, o fornecedor não responderá pela não conformidade que resulte exclusivamente da omissão de um tal dever, desde que:
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O fornecedor comunique ao consumidor a disponibilidade da actualização e as consequências da sua não instalação; e
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A não instalação ou a instalação incorrecta da actualização pelo consumidor não resulte de deficiências nas instruções de instalação transmitidas pelo fornecedor.
Se o contrato estipular um fornecimento contínuo de conteúdos ou serviços digitais, estes devem ser conformes durante o período correspondente à duração do contrato.
Não se considera existir, porém, não conformidade quando, no momento da celebração docontrato, o consumidor tiver sido inequivocamente informado de que uma característicaparticular do bem se desviava dos requisitos enunciados e houver aceite de forma expressa e em documento separado, autónomo, tal desvio.
Salvo acordo em contrário, os conteúdos ou serviços digitais devem ser fornecidos na versão mais recente disponível no momento da celebração do contrato.
III
DIREITOS DO CONSUMIDOR EM CASO DE NÃO FORNECIMENTO
Em caso de não fornecimento dos conteúdos ou serviços digitais, o consumidor deve interpelar o fornecedor a que proveja ao fornecimento.
Se o fornecedor, interpelado, não fornecer os conteúdos ou serviços digitais sem demora injustificada ou de acordo com um prazo adicional, expressamente acordado, o consumidor tem direito à extinção do contrato através da resolução.
Tal não obsta à imediata resolução do contrato sempre que:
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O fornecedor declarar, ou resultar claramente das circunstâncias, que não irá fornecer os conteúdos ou serviços digitais;
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O consumidor perca o interesse na realização da prestação, considerando a existência de prévio acordo das partes acerca da essencialidade do prazo certo para o seu cumprimento.
O consumidor exerce o direito de resolução do contrato através de uma declaração ao fornecedor em que comunique a sua decisão de pôr termo ao contrato.
Em caso de resolução do contrato, o fornecedor deve reembolsar o consumidor de todos os montantes pagos.
O reembolso dos pagamentos deve ser efectuado sem demora indevida e, em qualquer caso, no prazo de 14 dias a contar da data em que o fornecedor tiver sido informado da decisão do consumidor de proceder à resolução do contrato.
O reembolso dos pagamentos deve ser efectuado por meio análogo ao do adoptado pelo consumidor na transacção inicial, salvo acordo expresso em contrário e desde que o reembolsado não incorra em quaisquer custos como consequência do reembolso.
O fornecedor não pode impor ao consumidor qualquer encargo referente ao reembolso.
IV
DIREITOS DO CONSUMIDOR EM CASO DE NÃO CONFORMIDADE
Em caso de não conformidade dos conteúdos ou serviços digitais, e de acordo com as condições neste passo estabelecidas, o consumidor tem direito à:
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Reposição da conformidade;
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Redução proporcional do preço; ou
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Resolução do contrato.
O consumidor tem direito à reposição da conformidade, salvo se tal for impossível, ou, impuser ao fornecedor custos desproporcionados, tendo em conta as circunstâncias concretas, incluindo:
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O valor que os conteúdos ou serviços digitais teriam se não se verificasse a não conformidade; e
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A relevância da não conformidade.
O fornecedor deve repor a conformidade dos conteúdos ou serviços digitais, de harmonia com o que se enunciou, tendo em conta a natureza dos conteúdos ou serviços digitais e a finalidade a que o consumidor os destina e de acordo com os seguintes requisitos:
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Num prazo razoável, desde o momento em que tiver sido informado da não conformidade pelo consumidor;
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A título gratuito; e
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Sem grave inconveniente para o consumidor.
O consumidor tem um direito de escolha entre
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a redução proporcional do preço
sempre que os conteúdos ou serviços digitais forem fornecidos contra o pagamento de um preço, e
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a resolução do contrato,em qualquer dos seguintes casos, quando:
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O profissional:
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Não tiver reposto a conformidade dos conteúdos ou serviços digitais, como se dispôs;
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Tiver declarado ou resulte evidente das circunstâncias que não irá repor os conteúdos ou serviços digitais em conformidade num prazo razoável ou sem graves inconvenientes para o consumidor.
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A solução de reposição da conformidade for impossível ou desproporcionada;
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A não conformidade tiver reaparecido apesar da tentativa de reposiçãodos conteúdos ou serviços digitais em conformidade;
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Ocorrer uma nova não conformidade;
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A gravidade da não conformidade justificar a imediata redução do preço ou a resolução do contrato.
A redução do preço deve ser proporcional à diminuição do valor dos conteúdos ou serviços digitais em comparação com o que teriam se estivessem em conformidade.
Nas situações em que o contrato estipular o fornecimento contínuo ou uma série de actos individuais de fornecimento de conteúdos ou serviços digitais contra o pagamento de um preço, a redução do preço é correspondente ao período durante o qual os conteúdos ou serviços digitais se mantiveram desconformes.
Nos casos em que o fornecimento dos conteúdos ou serviços digitais tiver sido efectuado contra o pagamento de um preço, o consumidor tem direito à resolução do contrato apenas se a falta de conformidade não for menor: há neste passo uma ideia de proporcionalidade ou, noutra formulação, de contenção ao abuso do direito.
Cabe ao fornecedor a prova de que a não conformidade é menor.
O consumidor exerce o direito de resolução do contrato, como noutro passo se evidenciou, através de uma declaração ao fornecedor em que comunique a sua decisão de pôr termo ao contrato.
Tal declaração pode ser efectuada, designadamente, por carta, correio electrónico, ou por outro meio susceptível de prova, nos termos gerais.
O consumidor tem direito de recusar o pagamento de qualquer parte remanescente do preço ou de parte do preço até que o fornecedor cumpra as obrigações até então enunciadas.
Os direitos que se vêm de evidenciar são transmissíveis a terceiro adquirente do conteúdo ou serviço digital, seja a título gratuito, seja oneroso.
Eis, pois, em breve síntese, o regime a que o diploma em gestação sujeitará o fornecimento dos conteúdos e serviços digitaisnum avanço significativo, em termos de tutela da posição jurídica do consumidor, de obtemperar.
* apDC – DIREITO DO CONSUMO – Coimbra (Portugal)